segunda-feira, 8 de março de 2010

Para que da Memória se faça História

Apontamentos de um soldado em África - 19
A Sanzala
A sanzala é o habitat característico da gente africana que vive no mato. É constituída por um grupo de cubatas, habitações pequenas com um ou dois compartimentos apenas. Há cubatas feitas só de capim seco, cuidadosamente disposto e atado sobre uma armação de paus finos; outras, de barro amassado atirado à mão sobre paredes de pequenas pedras seguras por varas entrelaçadas; algumas, de adobes, numa construção mais adiantada, que são blocos secos feitos de barro misturado com capim. Vêem-se sanzalas com tectos de telha, mas, na maior parte, as cubatas são cobertas de capim e folhas de palmeira, numa disposição adequada, e não há água que por aí penetre.
O chefe da sanzala é o soba, eleito pelo povo e com autoridade sobre todos. Para questões delicadas, há um conselho de anciãos, que funciona como um tribunal... E eles zangam-se, se a autoridade administrativa é preferida à sua douta opinião. Sobre os sobas das várias sanzalas de um aglomerado importante, existe ainda um regedor, indivíduo de grande consideração entre o seu povo.
Em cada sanzala existe, geralmente, um edifício mais espaçoso, construído de adobos, destinado a capela-escola, onde o missionário reza missa e ensina, ajudado pelos catequistas, nativos escolhidos e preparados para esse mister.
Antigamente, o preto vivia em núcleos dispersos situados segundo as condições naturais que melhor serviam as suas necessidades primárias. E, além destas, pouco mais ele tinha para lhe dar preocupação. Por influência da autoridade administrativa, os nativos passaram a habitar ao longo das estradas, em sanzalas mais ou menos ordenadamente construídas, deixando, embora com relutância, e nem sempre definitivamente, as aldeias do interior. A sua capacidade de adaptação e de construção, graças aos processos simples empregados e à facilidade de obtenção de materiais, que buscam no meio que os rodeia, ajudou-os a formar, aldeamentos mais vastos e bem localizados, que emolduram as estradas de Angola.
Alguns povos não deixaram de vez a mata, aí arraigados pelo seu primitivismo ancestral, naturalmente renitente às exigências das ordens administrativas, ou presos a ela pelas vantagens várias, como as condiç6es de solo e água para as suas lavras (hortas). Aquando da confusão, muita gente fugiu para essas aldeias antigas, instigada pelos elementos subversivos, deixando o triste espectáculo das sanzalas abandonadas, que se pode admirar ao longo das vias de comunicação do norte de Angola. Nestes três anos últimos, muitos povos voltaram, recuperados, aos seus aldeamentos, a fim de, refeitos ou arrependidos, iniciarem um nova vida, e com este objectivo se tomam medidas destacáveis, particularmente na zona de Carmona. Recordo com saudade a minha chegada a estas maravilhosas paragens africanas (vai fazer já quase dois anos, e parece que foi ontem; ao mesmo tempo, parece também que foi nos primeiros dias da minha vida…, tal é a marca que esta minha passagem pelo Ultramar deixa na minha alma, que tanto quer amar as coisas simples, mas plenas de sentido e de beleza):
Com um punhado de rapazes, íamos à lenha para o rancho geral... A tarde, soalheira e quente, convidava a andar no exterior, apesar do medo de qualquer façanha terrorista inesperadamente surgida de qualquer canto, do capim ou de uma rocha mais agressiva. Havia poucos dias que a África nos tinha no seu seio. Não admirava, pois, o medo que nos invadia a todo o minuto e em todo o lado. Angola, e, nesta, a região que nos calhava, era ainda para nós um autêntico Adamastor, cheio de terror e de incógnitas.
O machado, a golpes certeiros, manobrado por mãos firmes de um bravo soldado do Alto Douro, ia deitando aos poucos por terra uma árvore seca à beira da picada. Ao longe, divisavam-se alguns tectos de cubatas... A curiosidade e o espírito de patrulha puseram-nos a caminhar até lá. Passos lentos e seguros... mãos crispadas na espingarda - que em nós incutia uma sensação forte de defesa...-, espaçados e mudos..., de olhos fitos em redor e meios cobertos pelo capim, fomos avançando.
À nossa frente, ficou, dentro em pouco, uma sanzala abandonada, com cubatas alinhadas de um e de outro lado da estrada, algumas em ruína, outras semi-destruídas e queimadas pelo fogo posto. Era a sanzala “Santa”, uma de tantas que se podiam encontrar ao longo dos caminhos, marcadas com as insígnias da fúria do terrorismo. Mas era bela... poética... Acolhedor o seu conjunto ambiental. Frutos pendiam rosados das mangueiras frondosas... Flores silvestres enfeitavam o terreiro onde as cubatas se erguiam… Palmeiras dendém a chamar as galinhas do mato para o fruto caído no chão e ressequido...
A tarde finava. O sol aproximava-se bastante da linha do horizonte, oferecendo matizes alaranjados ao céu azul que nos cobria. A sua luz dourada beijava também pela última vez no dia aquele capim pardacento das cubatas envelhecidas pelo abandono, e o chão, duro como cimento, de batida terra amarelada. Um tiro de reconhecimento por nós disparado cortou o silêncio daquele ambiente paradisíaco, mas depressa ele se fechou novamente atrás da trajectória daquela bala sem resposta. O medo desvanecera-se já... Antes, uma atracção enorme me infundia o desejo de ali ficar. Paz, sossego, beleza... Porque estava aquele lugar sem ninguém?... Porque tinha o povo fugido?... Que mais ele queria além do... tudo?...
Eram as perguntas que me bailavam no cérebro, ainda pouco a par das manobras insidiosas do inimigo. E a resposta viria, nestes dois anos... Clara, por vezes dura, contundente.
Angola – Outubro, 1964