sexta-feira, 22 de julho de 2011

Para que da Memória se faça História

A Cruz, ...da Memória
Tínhamos chegado há pouco tempo a Tomboco, onde ficara a sede do Batalhão. Ocupávamos instalações remanescentes de uma missão católica, de que restavam ainda dois missionários espiritanos: um holandês e outro alsaciano. Habitavam a cerca de duzentos metros, do nosso aquartelamento, e ali havia uma capela onde podíamos assistir à missa dominical. Estabelecemos bom relacionamento com eles.
A área em redor era amena e exuberante. Não havia, naquela altura, ameaça de guerrilha activa. Mesmo assim, efectuávamos patrulhamentos de rotina, e desenvolvíamos, nas sanzalas próximas, actividades de apoio às populações, dentre as quais a catequese e a instrução escolar.
Recordo que o General Venâncio Deslandes, pouco antes Governador de Angola, e recentemente demitido, havia promovido uma “revolução” no Ensino, em todas as vertentes, desde o primário à criação da Universidade de Luanda. Tal contrariou o Governo central de Portugal e originou a “queda” do Governador, que também assumia as funções de comandante-chefe das Forças Armadas, no território.
Ora, tendo eu pedido ao missionário que me fornecesse material de apoio para o ensino das crianças, na escola, foi ele buscar alguns manuais que achava muito a propósito, dentre eles a “Cartilha Maternal”, de João de Deus, mas recomendou sigilo, pois os métodos do “Deslandes” já não estavam em vigor... De facto, quando Venâncio Deslandes deu em Angola o “pontapé de saída” para uma “revolução” pacífica na Província, parecia ter começado uma nova era... Não logrou êxito, porém. A Politica é uma coisa complicada... O que parece, pode não ser. E ficámos, nessa altura, com a manutenção do “statu quo”, sem saber o que viria a dar o empenho e desassombro do general governador. O poder entendeu... que ele tinha ido longe de mais, à revelia de quem mandava! Mas voltemos ao fio da meada.
De Tomboco, avistava-se, a uma distância de seis a sete quilómetros, em linha recta, para oeste, uma pequena elevação, de cume escalvado. E o nosso comandante de batalhão idealizou que ali, como marco de referência e símbolo da nossa identidade cristã, ficaria bem uma “cruz”, que se visse ao longe. Em consequência, e para concretizar a ideia, era mister fazer um reconhecimento do local, e avaliar as possibilidades de lançar mãos à obra.
Organizou-se, então, uma pequena expedição... Um jeep, um unimog 411 (um “pincha”) e uma secção de sapadores. Lá fomos, guiados pela carta e pela bússola, picada fora e a “corta capim”, à procura do morro preferido.
Atingimos o ponto de destino, e tentámos vislumbrar, ao longe, o aquartelamento. Desilusão! Àquela distancia, e por comparação com o que divisávamos dali, uma “cruz”, assim tão longe, e para o efeito pretendido, tinha de ser muito grande... (hoje podemos avaliar o problema, observando esses “viraventos” das “Eólicas” que nos rodeiam por aí).
Cumprida a missão, havia que empreender o regresso... Jeep à frente, pincha atrás, toca a andar, que a tarde cai. Mas nestas andanças há sempre imprevistos: o unimog, na dianteira, cortava o capim, abrindo trilho para o jeep, que o seguia. O capim era alto e denso ( - Que riqueza se isto fosse trigo!... – alguém comentava). Às tantas, o pincha começou a levantar-se à direita, ficou em diagonal, e tombou para a esquerda, num abrir e fechar de olhos. O pessoal foi projectado ao solo, atónito com o acontecido, mas ninguém se molestou. A viatura ficou tombada de lado. A roda dianteira direita tinha apanhado um monte da formiga “Salalé” (Térmitas), e a “gincana” não resultou. O tombar do unimog foi o resultado imediato e consequente.
Os “sapadores” estão “programados” para solucionar o que parece não ter solução. Improvisar, é a lei. Assim, todos à uma, depressa colocaram de novo o carro sobre rodas. Não houve grandes perdas...; simplesmente, a água do radiador tinha-se sumido. E os cantis estavam vazios... A viatura não podia continuar viagem... com o motor “sequioso”. Que fazer?
Dentro de momentos, todos os elementos da patrulha começaram a “verter águas” para o bocal do radiador... Era um recurso dos manuais da “Sobrevivência”. E desse modo apetrechámos o unimog para continuar a viagem, que se finalizou sem mais incidentes. Claro que, depois, o radiador haveria de ser devidamente lavado, na oficina...
Quanto à “cruz”... O comandante haveria de cumprir, mais tarde, o seu anseio. Foi erguida em Bessa Monteiro, no morro onde, em novo poiso, ficara o comando do batalhão. Branca, altiva, em memória dos que haviam caído pela Pátria, e para que lá, mais a oriente, os guerrilheiros do “Pedro Afamado”, na mata Sanga, a pudessem divisar, e saber que quem ali estava... estava por Bem, e não desejava a guerra, mas a Paz!