sexta-feira, 29 de agosto de 2014

Para que da memória se faça História

Feitos e Factos
da “descolonização” da Guiné – 21

Entrei o mês de Agosto a comandar interinamente o Batalhão, dado que o ten-cor cmdt havia seguido para Bissau, a fim de entrar de licença e se ausentar, para um merecido descanso na ainda chamada Metrópole; e por não ter chegado, entretanto, o 2º. cmdt, major M. B., que, por sua vez, terminava o seu período de férias. O ambiente, em Pirada, estava agora mais calmo. O soldado comando que havia sido raptado pelo PAIGC fora, afinal, liberto, e mostrava-se em Pirada com ar de satisfação. Mais um problema resolvido.
Em 3 de Agosto, anotava eu, pelas 13 horas:
“Tudo tem corrido bem nestes últimos dias. Hoje é o aniversário do PAIGC. Houve hastear da nossa Bandeira, no quartel, e da bandeira do “Partido” na “Administração” e em casa do tal M. S. (comerciante já referido nestas crónicas). Às 10h00 houve um pequeno e curto comício (sessão de esclarecimento) onde também estive a representar a tropa, com outro capitão”.
E acrescentava: “Estão agora a decorrer manifestações de rua, ordeiras, sem problemas. Parece o carnaval. À tarde, há futebol. Juventude local (PAIGC) e soldados. Oxalá tudo decorra bem”. E, na verdade, decorreu.
Pelas 3 horas da tarde, chegou o esperado  maj M. B., 2º. Cmdt., com a notícia de que até ao fim do mês marcharíamos para Bissau, entregando Pirada ao PAIGC. Iríamos ocupar, na capital, o quartel dos paraquedistas. A este propósito, deixei escrito, ainda no mesmo dia, a seguinte anotação:
“Começo a ter pena desta gente. Estão tão habituados e agarrados à tropa... que a nossa saída vai ser para eles o começo de uma nova vida, que julgo infeliz vida. Mas, é a roda da história que não pára!
Era um facto que o tempo parecia acelerar-se em crescendo. Começava eu a ver goradas as minhas tão aguardadas férias. Ninguém podia, com certeza, prever o futuro... Os acontecimentos começavam a desenvolver-se em “bola de neve”, que na sua corrida pelo declive da montanha ia aumentando de volume. E era esta incapacidade de prever e controlar o futuro que nos dava cabo da cabeça e dos nervos. Apenas sabíamos que quanto à Independência da Guiné, de Angola e de Moçambique, o Gen. Spínola, presidente da República, tinha “reconhecido” o direito à auto determinação e independência, e “reconhecer o direito a”... não era ainda “reconhecer a”... Contudo, admitíamos que, quanto à Guiné, a Independência fosse reconhecida dentro dos próximos quinze dias...
Em 4 de Agosto, registei, pelas 22h15, o seguinte apontamento:
“Passou mais um Domingo... sem missa, sem descanso. De manhã, levantei-me às 6 horas. Não havia água. Não fiz sequer a barba. ... Comecei logo a trabalhar. Papeis, atender os “màmàdús” (é o nome que a gente aqui dá aos “gentes” que nos vêm “chatear”), paigcês, etc. Às 11 horas, pus um pisa-papeis nas notas e mensagens da minha secretária, e fui com outros, inclusivamente o major Moniz Barreto, jogar vólei. Ao meio dia, tomei um banho, fiz a barba e fardei-me melhor: calção e meia alta (é por isso que estou aqui à rasca com os mosquitos...) e almoçámos. Nem tive tempo de descansar, de tarde, de “cumprir as NEP’S”. De tarde, até agora, com intervalo para o jantar, foi a mesma vida. Nem tive tempo para ir ver a “tourada”, que ao Domingo, normalmente, se faz aqui no “redondel” improvisado”.
E terminava, repetindo a minha apreensão pela situação daquele povo:
“Quanto à nossa saída daqui, vai começar a processar-se. Tenho pena desta gente. A tropa vai fazer muita falta. Mas, pode ser que não seja nada... e até seja bom para todos.”
Infelizmente, o futuro... até hoje, não parece ter sido pacífico, nem compensador!



Legenda: "Sessão de esclarecimento do PAIGC em Pirada"