sábado, 22 de janeiro de 2011

Para que da memória se faça História

Há sempre milagre... no meio de todas as tragédias

Corria o ano de 1970. Havíamos chegado, há poucos meses, à nossa posição, no distrito de Tete, Moçambique. Ocupávamos o cabeço de uma pequena elevação, que dominava um vasto planalto bordejado de montanhas no horizonte e em todo o redor. O aquartelamento da Companhia era formado por umas três barracas de zinco e algumas construções de adobe com cobertura de capim. O rio – o Capoche – passava em baixo, no sopé do pequeno monte. Uma estrada razoável, de terra batida, a que chamávamos de “auto-estrada”, ligava-nos ao quartel mais próximo, a vinte quilómetros de distância, em pleno mato deserto. A actividade operacional desenvolvia-se no seu ritmo programado.

Um dia, ao fim da tarde, tendo eu ido à arrecadação de material, vi que o M..., o cabo quarteleiro responsável pela mesma, estava, com mais dois companheiros (na tropa, camaradas) a rezar o terço. Aproveitei o ensejo para sugerir, então, que poderíamos construir uma pequena capela, dentro do aquartelamento, e fazer do «Terço» uma prática diária, de piedade, pública, para quem quisesse aderir.

Pegada a ideia, no dia seguinte já o M... com o seu auxiliar deitavam mãos à obra, e com ramos de palmeira, capim e alguns pequenos troncos de árvore, depressa deram como pronta a capelinha, com altar e tudo. Ao lado direito do mesmo altar, uma barrica cortada a meio ia ser o nicho para alojar uma imagem de Nossa Senhora, o Coração de Maria de Fátima, que, da Metrópole, eu encomendara para o efeito. Ficava linda, ali, a Virgem Mãe, tendo a seus pés uma nuvem feita de algodão em rama obtido no posto de socorros da Companhia. Todos os dias, ao toque de sineta, a capelinha enchia-se de devotos, e rezava-se o terço.

Certa vez, ao jantar (o prato era bife com ovo a cavalo, depois de algumas semanas de penúria por falta de reabastecimento) ouviram-se uns estalidos à distância, e ficámos de orelhas afitadas... Não tardou que as granadas de morteiro começassem a ribombar em redor, acompanhadas de rajadas de metralhadora, vindas de algumas elevações da vizinhança. O pessoal, já anteriormente testado por simulacros de ataque, em exercícios dentro do plano de segurança e defesa do aquartelamento, ocupou rapidamente as suas posições e respondeu, adequadamente, à flagelação.

Dentro em pouco, vi que o M... era transportado em braços para o posto de socorros, banhado em sangue. Tinha uma face do rosto dilacerada, certamente por uma bala inimiga. O impacto do projéctil tinha-lhe, também, deixado em cacos o maxilar. Não podia falar, mas de olhos abertos e por gestos, já na enfermaria, pedia papel para escrever. Sobre alguns aerogramas do Movimento Nacional Feminino, foi escrevendo documentos impressionantes, ensanguentados - que ainda guardo -, dirigidos à sua mulher, aos seus camaradas, e aos seus superiores. Pedia perdão por todas as eventuais ofensas, na convicção de que iria morrer, e, à sua esposa, guardava palavras... que aqui não vou revelar.

De noite não havia qualquer hipótese de evacuação aérea. O hospital militar de Tete estava a largas dezenas de quilómetros. O único médico a quem se podia recorrer, pertencia a outra unidade, à distância de uma vintena de quilómetros. Mandar uma força buscá-lo, àquela hora, e naquelas circunstâncias, era praticamente impossível. Todas as colunas se faziam de dia e «picando» a estrada, na detecção de minas, e, após um ataque, mandar sair uma força para o exterior, sem aqueles procedimentos de segurança, era colocar mais vidas em risco, no pressuposto de que o itinerário estava, segundo as práticas conhecidas, minado. Dramático, ter de decidir, entre uma vida que ali se perdia, esvaindo-se em sangue, e o risco de atirar para a morte outras vidas, na busca do médico. Um corajoso furriel, avançou e cortou o «nó» do dilema: «Eu vou!».

Entretanto, o ataque havia parado. Na cabana que servia de messe, a lanterna focou um gato, em cima da mesa, que se aproveitava da miséria dos outros para tirar..., da sua barriga, as misérias... dele. Para o gatinho... ficara guardado o bocado, que outros não havia comido, apesar de uma espera de semanas pela tão desejada carne.

O furriel A... partira, com alguns voluntários, para o comando do Batalhão, em busca do dr. G. ... Ficámos, assim, com um homem... a morrer, e com o coração apertado, porque outros mais poderiam perder a vida no caminho. O “milagre” estava a acontecer... Dentro de duas horas, o pessoal chegou sem problemas e com o médico. Mas seguiu-se uma desilusão: o clínico, diante do quadro que se lhe deparava, nada podia fazer... Nem havia possibilidades de recorrer a uma transfusão sanguínea.

Enquanto isso, o M..., deitado de lado na maca, todo ensanguentado, continuava a escrever, como podia, nos vários aerogramas que lhe iam dando... Não muito distante, alguns militares, sem respeitos humanos, rezavam na capelinha que o M... construíra, pedindo o auxílio do Céu para o camarada e amigo, que se debatia entre a vida e a morte...

A evacuação por helicóptero já tinha sido pedida, via rádio, aos comandos superiores. O médico e o furriel enfermeiro, como os socorristas, rodeando de cuidados o M..., sentiam-se impotentes, e eram de opinião que ele não resistiria muito mais. Esgotara-se o plasma, as compressas, até mesmo o algodão... Não havia mais nada a fazer.

Alguém lembrou, então, que, aos pés da imagem da Virgem Maria, na capelinha onde se costumava rezar o terço, havia algodão, a imitar uma nuvem branca. Rapidamente se deu ordem para ir buscar essa nuvem, dos pés de Nossa Senhora. Trouxeram-na, já cheia de formigas... Os pés de Maria ficavam sem o afago da nuvem branca, mas o M... precisava do algodão, e a Mãe do Céu não lhe negaria esse auxílio.

O tempo passava, lento e dilacerante. O M... resistia, incompreensivelmente, sem nunca perder a consciência. De manhã, outra contrariedade surgia: o helicóptero não podia levantar de Tete, por falta de tecto para a navegação aérea. De facto, depois daquilo tudo, só faltava mais essa: das condições atmosféricas adversas.

Meio dia, no «day-after» da tragédia. O M... resistia. Com o céu mais aberto, chega finalmente o helicóptero do socorro. Procede-se à evacuação, e o M... é levado de maca para a aeronave, estacionada no campo de futebol. Os olhares circunstantes são de perplexidade, mas de muita esperança, agora mais fortalecida. Consciente, o Cabo M..., lança um último olhar para os que ficam, e levanta a mão num reconhecido adeus.

O helicóptero levantou, e levou consigo aquele ferido, com metade do rosto desfeita, sem poder falar ou sorrir, mas com uma alma grande e um coração agradecido à Virgem Mãe, que lhe forneceu a nuvem branca que tinha a seus pés, como derradeiro mas eficaz meio de socorro, para, em situação tão dramática, continuar a viver.

*

Resta dizer, para concluir, que o M..., casado e pai de filhos, sobreviveu aos ferimentos recebidos, apesar de todos os prognósticos negativos. Depois de longos meses de tratamento hospitalar e de várias intervenções correctoras, refez a sua vida, que lhe não tem sido fácil, não por causa dos ferimentos recebidos, mas por outras circunstâncias de percurso. Contudo, lutador persistente, e homem de muita fé, hoje está bem, embora com algumas deformações no rosto, e diz que teve a experiência de Job: tudo lhe foi tirado, e tudo lhe foi restituído em abundância.