sexta-feira, 18 de março de 2011

Para que da memória se faça História

O dia em que caçámos um leão...

Regressávamos ao aquartelamento, depois de uma “operação” de rotina. Era já fim de tarde, e a noite cai depressa, depois de o sol desaparecer no horizonte, naquela zona tropical de África.

Estávamos já com o aquartelamento à vista. À frente, seguia o unimog 404 onde eu tomava lugar, ao lado do condutor. Na caixa da viatura, sentava-se uma secção de militares, costas com costas em banco central, prontos a responder a qualquer eventualidade de emergência. O carro não tinha taipais nem capota, como era de uso. Atrás de nós, uma berliet, com mais pessoal. Não recordo, de momento, o que tínhamos ido fazer, mas talvez regressássemos de Chiticula, onde estava colocado um pelotão da Companhia, estacionada no meio do distrito de Tete – Moçambique, cerca de 50 km a norte de Cabora Bassa, nas margens do rio Capoche, um ramo afluente do rio Zambeze.

De repente, os soldados alertam para uma peça de caça grossa que atravessa a estrada, da esquerda para a direita, e se embrenha na savana. Era uma tentação, a perspectiva de carne fresca que a ocasião nos oferecia. Logo se inicia a perseguição do animal - uma espécie de impala – que não resiste ao fogo certeiro dos nossos “caçadores” de ocasião.

A estrada tinha ficado a alguma distância, pela penetração das viaturas no mato. Enquanto o pessoal operava para recolher na berliet o produto da caçada, um soldado africano alerta em comentário:

- Ela (tratava-se de uma fêmea) ia a fugir do leão.

Logo perguntei:

- Como sabes isso?

Ele respondeu:

- Eu ouvi.

O que o militar queria dizer é que, entretanto, tinha ouvido um rugir de leão, nas proximidades, e esse facto causou-me alguma preocupação. Assim, ordenei que apressássemos o regresso à estrada (de terra batida), até porque a luz do dia ia desaparecendo progressivamente. Era quase noite.

Já na estrada, e uma vez carregada a caça na viatura, retomámos o movimento em direcção ao quartel, cujas luzes já se divisavam ao longe. Tudo ia bem, quando, a certo passo do andamento, aparece um vulto no meio do caminho, que fez o condutor abrandar a marcha e, até, parar. A noite tinha deixado cair o seu manto, e as viaturas circulavam já com os faróis ligados. De tal modo a figura se apresentava no lusco-fusco da penumbra, impávida e serena à nossa frente, que dava a ideia de ser uma pessoa... Alguém aventou que parecia “um homem em cuecas”. Confuso!

Levantei-me, e agarrei-me ao varão do pára-brisas... Disse para o condutor:

- e a luz nos máximos!

Assim aconteceu, e logo diante de nós, no meio da estrada, de caras, a cerca de oito a dez metros de distância, se nos apresenta a figura de um avantajado leão, com juba e tudo. Silêncio absoluto, só entrecortado pelo ralenti do motor do unimog. Ninguém ousava falar.

Sabia-se que, numa situação destas, o animal, encandeado pelos faróis do carro, tentaria um envolvimento para atacar a presa (nós) por trás... Talvez para isso, começou lentamente a virar-se de lado, e ficou numa posição perpendicular ao eixo da estrada. Na verdade, o receio, naquela altura, era que a fera saltasse sobre o pessoal que viajava a descoberto no unimog.

O que se passou a seguir, foi espontâneo, impensado, produto de reflexo. Vendo o animal naquele posição, senti que era a ocasião de jogar: ou tudo, ou nada, mas convicto de que não havia outra escolha. Dei comigo a levar a G3 à cara...; mirei a espádua do “bicho” (tinha a noção, adquirida, que desse modo atingiria o coração do animal) e disparei. O leão deu dois passos adiante, e aninhou. Os soldados alertavam que ele poderia estar a “fazer de conta”, e animal ferido é ainda mais perigoso.

Ninguém desceu da viatura para ir verificar se o leão fora ou não abatido. Manobrou-se o unimog de modo a ficar de frente e perto da “vítima”, e, pelo sim pelo não, confirmámos o “sucesso” com mais dois tiros. O leão estava morto!

Nova fase de carregamento: agora, do leão para junto da impala, na Berliet. Mas de novo o soldado africano que tinha, antes, ouvido o leão, voltou a avisar:

- A leoa deve estar por perto...

- Era o que havia de faltar!... Já chega, e é noite. Vamos embora!... - disse eu.

Entretanto, no quartel, o pessoal não sabendo o que se passava, mas apercebendo-se de que algo de anormal acontecia connosco, estava em palpos de aranha, e aprontava-se para qualquer eventualidade. Quando as viaturas galgaram a rampa de acesso e romperam pela parada adentro, todos nos aguardavam de olhos esbugalhados. Perante a algazarra dos que chegavam, em gáudio pela proeza levada a cabo, e ao verem o leão na berliet, morto, ao lado da impala, todos estouraram em euforia.

Era noite. Por isso, as fotografias ficaram para o dia seguinte, mas passados poucos minutos... o leão já não tinha rabo, nem dentes, nem unhas... Estes troféus desapareceram rapidamente... E logo de manhã, então, os rolos fotográficos da cantina esgotaram-se. Toda a gente quis tirar o retrato com o leão: acavalitavam o bicho, puxavam pela juba a sua grande cabeça contra o peito, ou punham o pé em cima do dorso... Foi um desfilar de pretensos heróis, em Cangombe.

Ainda se tentou aproveitar o último despojo “de guerra” – a pele. Porém, com o tempo, e com a chuva, acabou também por se estragar, apesar de aplicados alguns entendidos cuidados técnicos de curtimento para a preservar.

Do evento, ficaram mesmo, e só, as fotografias, para recordação da proeza... Afora quem se locupletou, à socapa, com o rabo, os dentes, e as unhas do leão... morto em legítima defesa.

Mas foi por causa deste acontecimento, que os soldados passaram a intitular a Companhia pelo listel " Leões do Capoche"

(CArt 2628/BArt 2897)

Para que da memória se faça História

“Os bombeiros do Capoche”

Dia quente era aquele, de Fevereiro de 1970, na ZOT – Zona Operacional de Tete, Moçambique. Duas horas da tarde. Depois da segunda refeição, andava eu com outro oficial a mostrar ao Fumo (chefe) da aldeia que se estava a formar junto ao aquartelamento o local onde iríamos, em princípio, erguer mais cubatas para as populações recuperadas que chegavam do mato...

Admirávamos, de cima da ponte, o curso do rio Capoche, acariciados por uma deliciosa aragem fresca que corria suave sobre as águas. Dava vontade de navegar, de canoa ou jangada, por ali abaixo, ao longo dos cinquenta quilómetros que nos separavam da barragem de Cabora Bassa, no Zambeze, já em construção.

A perturbar este remanso da Natureza, correu até nós, descendo a picada desde o aquartelamento - que ocupava um morro na margem esquerda deste rio - o cabo de serviço à estação de rádio, e gritou:

- Do Batalhão, mandam sair imediatamente uma patrulha até ao rio Luia era a mensagem que trazia o militar.

- Responde que não é preciso – repliquei - porque saiu há pouco tempo uma coluna nossa com esse destino.

E o cabo lá subiu ligeiro a encosta, de regresso ao rádio para transmitir a mensagem resposta.

Continuámos a deliciar o nosso olhar pela maravilhosa paisagem selvática africana, de uma beleza rude mas atraente, a pulsar de sonho e de mistério. Ao redor, um ou outro pássaro exótico competia, em sonoros acordes, com o marulhar das águas do rio na correnteza.

Mas eis que o cabo telefonista volta a descer em corrida e proclama ofegante:

- Dizem que é por isso mesmo... Ouviram um rebentamento, e pareceu-lhes ser para os lados da auto-estrada.

Chamávamos “auto-estrada” ao percurso de terra batida que ligava Cangombe, onde estávamos, até Moatize (Tete), passando pelos vários aquartelamentos das nossa tropas. O mais perto, a cerca de duas dezenas de quilómetros, era o do Luia, na margem esquerda do rio com esse nome, a confluir, mais a sul, com o nosso rio Capoche, rumo ao Zambeze. Cerca de uma légua mais á frente, encontrava-se o quartel do Comando do Batalhão, no Bene.

Ouvida a mensagem, não foi preciso mais nada. Rapidamente vencemos o caminho ascendente até ao aquartelamento. Aqui, já tudo andava em rebuliço. Havia só um “pincha” (unimog 411) e o carro da água (outro unimog 411 equipado com o tanque da água, para reabastecimento diário do quartel). Uma força de voluntários se constituiu, “enquanto o diabo esfregava um olho”. Passados instantes, já marchávamos estrada fora, com as únicas viaturas que estavam à nossa disposição: o “pincha”, à frente; o carro da água, atrás, com o pessoal encavalitado como podia naquele barrigudo com tentáculos de mangueira, a segurar estas com uma mão e a espingarda (G3) na outra.

Pontos perigosos do itinerário: saltar, correr em marcha apeada; subir de novo...

- Cuidado!!! O In pode associar qualquer emboscada ao que possa ter acontecido (todos supunham ter havido um rebentamento de mina...).

Divisa-se, mais além, uma coluna de fumo. Imagina-se logo um cenário de tragédia: viatura destruída, corpos despedaçados... - A coluna deve ter “apanhado” com uma mina – ouvia-se... Em nossa mente, pressentimentos cruéis: feridos, mutilados, dor, gemidos...

A estrada vai-se galgando, e o carro da água lá vai saltitando, atrás do pincha, todo vaidoso por também ser “operacional”. Na dianteira, os bravos soldados aperram as armas, prontos a ripostar a qualquer ataque inimigo.

- Talvez depois daquela curva... Ou daquela lomba...

Mas nada! O coração aperta-se... Surge a ponte sobre o rio Luia.

- Graças a Deus! Já estamos no Luia. Mas... e as viaturas?... A coluna?... A mina?... Os feridos?...

Percorremos toda a ponte, e logo mais adiante, à esquerda, o quartel da companhia do Luia.

Entrámos na área do aquartelamento. Ainda não eram três da tarde. As viaturas, apesar de apenas duas, fizeram um certo ruído. Logo apareceram, sonolentos, pela sesta interrompida, alguns militares... Oficiais, sargentos e praças, que olham para nós com ar estupefacto e interrogativo:

- Que se passa?!...

E vendo o “carro da água”:

- Onde é o incêndio?... Não chamámos os bombeiros!...

Viaturas paradas... Interrogação e surpresa em todos os rostos. Esperávamos uma notícia desagradável, e apenas isto nos surge!... Respirámos de alívio. Mas ali estava o carro da água com os soldados nele empoleirados, segurando as mangueiras e de olhos esbugalhados pelo insólito. Pareciam mesmo bombeiros à cata de um incêndio!...

Não tinha havido mina, felizmente. O nosso pessoal – a coluna – havia passado ali em boas condições, são e salvo, a caminho do Bene, e, pela rádio, soubemos que já se encontrava lá. Mais tarde, esclareceu-se que tudo surgiu porque, na área do Comando do Batalhão, algum espertinho tinha lançado uma granada de mão ofensiva na margem do ribeiro que perto corria, na mira de apanhar alguns peixes, e a explosão confundiu os “entendidos” daquela nossa tropa, associando o som do rebentamento a uma possível mina accionada na “auto-estrada”, por onde sabiam estar em marcha a nossa coluna de viaturas.

Para susto, tinha chegado. Lucrou-se o exercício de prontidão operacional, a qualquer custo, e com quaisquer meios... Mas não nos livrámos da chacota que os militares do Luia nos endereçavam a partir daí, e por esse feito ficámos a ser conhecidos como “Os Bombeiros do Capoche”.

(CArt 2628/BArt 2897)