terça-feira, 30 de outubro de 2018

Para que da memória se faça História

Feitos e Factos

da “descolonização” da Guiné  - 22



    Para Bissau, até ao fim do mês...

Na carta (aerograma) que escrevi em 5 de Agosto, ainda alimentava a esperança de me deslocar à Metrópole, para umas desejadas férias a desanuviar o “toutiço”, e reencontrar os familiares. As saudades eram cada vez mais acutilantes, mercê da pressão dos acontecimentos diários, imprevistos e desconcertantes.
Dizia nessa carta ter entretanto recebido uma correspondência do Né, meu filho mais velho, e outro do Zé, irmão de minha mulher, e, na circunstância, em comissão militar em Vila Pery, Moçambique, como alferes. Este dava conta do que se passava por lá, com a Frelimo, e do ambiente de confraternização com os seus elementos, um pouco à semelhança do que se passava na minha área com o pessoal do PAIGC.
Referia ainda o jantar, nas nossas instalações com quatro elementos e uma “elementa” do PAIGC, dos quais Bobo Keita, comandante da frente leste, e recentemente participante nas conversações com o Governo Português, em Londres e Argel, para negociar a paz. Este interlocutor (já referido no tema 18) deixou em todos a melhor impressão, dada a sua personalidade desinibida, alegre, facilmente loquaz, mas de competência manifesta. Ambiente de franca cordialidade.
Entretanto, a situação ia evoluindo, com rapidez. Fomos sabendo que tínhamos de desactivar Pirada e estar em Bissau até ao fim do mês em curso, para novo estacionamento do Batalhão, junto do Aeroporto, no quartel antes ocupado pelos Paraquedistas, já regressados à Metrópole.
Esperava-se também que a “nova” república da Guiné Bissau fosse reconhecida por Portugal até dia 15 do mês em curso. O dispositivo continuava a retrair-se e o regresso das tropas a Portugal ia-se processando em ritmo acelerado.
A disciplina militar continuava a ressentir-se, face à situação de relaxamento da actividade castrense, à ansiedade perante o futuro ainda pouco definido, e, mesmo, em resultado do relacionamento dos nossos militares com os elementos do PAIGC, sempre em perigo de conflitos pontuais.
No dia 7 de Agosto escrevi num aerograma: “Eu continuo bem, embora um pouco estafado pelo trabalho cansativo dos últimos dias. Trabalho um pouco desorganizado, virtude das circunstâncias e do método muito descontrolado do major, que chegou de licença e agora está a comandar. O maj. M.B. … trouxe a notícia de que temos de estar em Bissau até ao fim do mês... Pirada é entregue ao PAIGC. Fica muito material, mas também vai muito para baixo (Bissau). Levantam-se problemas de toda a espécie. O tempo que eu tenho livre é pouquíssimo, e a intervalos curtos. É a tropa que sai. São as populações com novos problemas. Os soldados africanos, que desconfiam do futuro... Enfim! Ainda esta noite, os soldados africanos em Paúnca assaltaram a arrecadação e foram-se armar de novo. Teve de intervir o PAIGC, mas não houve mortos nem feridos. O assunto já normalizou”.
Imagine-se!... Para resolver um conflito interno, teve-se de pedir a intervenção do... PAIGC!... Era esta a situação degradada em que tínhamos já mergulhado!...
E continuava:
Desta forma, os próximos dias vão ser de lufa, lufa. Já começam, inclusivamente, a andar por aqui os jornalistas e reporters das emissoras de rádio. Já tínhamos quem nos chateasse... Não precisávamos de mais ninguém...
No dia 8, prosseguia os meus apontamentos epistolares, cerca da meia noite:
Estou a escrever da cama. Graças a Deus, que agora tenho um pouco de sossego. Foi um dia inteiro de trabalho e de problemas a resolver. Quando fomos jantar, eram 9 e tal da noite. Os problemas são sempre os mesmos. Hoje, porém, tivemos de resolver um novo. Com a tropa branca. Dois soldados, de baixo quilate, que deviam ser punidos e corridos... Mas, no estado actual da disciplina, isso é um perigo, um problema. Ainda ontem à tardinha tivemos de resolver outro. Houve uma pega entre um soldado preto e um soldado branco. Às tantas, andava o soldado branco com uma espingarda (G3) para matar o preto; este, tinha ido à tabanca buscar uma granada de mão. Oh! Meu Deus! Quando acaba isto, e como?!...”.
Ao deparar com este conflito, perigosíssimo, com esta penosa situação, rapidamente me meti no jeep e fui buscar o major M.B., (o cmdt foi, agora, de férias) que estava e jogar vólei... e levei-o a toda a velocidade ao encontro do soldado perseguidor, que estava desvairado... A situação resolveu-se, pela persuasiva...
Escrevia depois:
Agora, que estamos perto da saída, os problemas avolumam-se: são os pretos que não querem sair da tropa..., são os brancos que se abandalham; é o PAIGC a “chatear”, a pedir arroz, gasolina, açúcar, pão, etc., etc.; é a população que não tem que comer... Enfim!... Pois, foi um dia intenso. Aqui estou agora, num pouco de sossego. Cerca das nove da noite veio um temporal tremendo e chuva. Isso também acalma os ânimos... “