sexta-feira, 6 de julho de 2012

Para que da memória se faça História


Feitos e Factos
da “descolonização” da Guiné – 9


Em carta de 25 de Junho de 1974, escrevia eu:
“... a “guerra” está parada... E julgo, realmente, que não recomeçará... pois isto chegou a um ponto em que seria um desastre continuar a guerra, e ninguém o pensa fazer, nem quer. Tanto nós, como o próprio PAIGC (Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde). O problema é que há certas facções que são anti-PAIGC, e a favor de uma terceira força, a FLING (Frente de Libertação e Independência Nacional da Guiné)... As nossas milícias e tropas africanas, temendo represálias do PAIGC, quando a Guiné ficar independente, pendem para o lado da FLING... e é esse o nosso perigo, que surja uma nova guerra na Guiné, entre a FLING e o PAIGC, deixando-nos no meio de uma posição dificílima... Não me admira nada que num futuro provável tenhamos de pegar em armas ao lado do PAIGC! Seria o cúmulo, mas é uma realidade que não é apenas vista pelos meus olhos. As milícias e tropas negras andam desconfiadas e preocupadas quanto ao seu futuro. Até por que agora nos vêem de braço dado com os elementos do PAIGC, e dizem que os brancos se estão a deixar enganar, e que também os enganamos a eles, milícias e tropas africanas”.
 Esta era a realidade nua e crua, e o tempo viria a confirmar as previsões, por desconfiança mas lúcidas, do povo africano da Guiné que tinha vivido à sombra da Bandeira de Portugal: ajuste de contas, lutas intestinas pela hegemonia do poder; golpes de estado; assassínios; ingovernabilidade; pobreza; miséria.
Os militares que protagonizaram na sua génese (na Guiné) o “movimento” que levou ao “25 de Abril”, nunca pensaram, com certeza, neste futuro do solo e do povo que tinham obrigação de defender (para não referir já o futuro de uma Nação). E se, pelo contrário, alguma vez o admitiram..., então, não podem jamais fugir ao julgamento da História. As contas são fáceis de fazer, se nos é dado medir a responsabilidade moral e patriótica pela matemática dos efectivos: desmobilizámos 17 000 homens que, armados, defendiam o seu “chão” da guerrilha inimiga, contra uma força de apenas 7 000 guerrilheiros. Tinham razão os nativos, para desconfiar do seu futuro. Pesa-nos o fardo do abandono, para não usar, aqui, o da “traição”. Há, porém, quem lhe dê outro nome: “Descolonização Exemplar”!
Mas... continuemos a crónica.
Quando no dia 23 de Junho de 1974 se pensou fazer a festa da FAP (Força Aérea Portuguesa), a que já nos referimos em “memória” passada, o cmdt do Batalhão havia apontado o almoço para a “bolanha”, local aprazível, à sombra de mangueiras, um pouco mais a sul da nossa posição, a caminho para Nova Lamego. Só que, o “Inimigo” também tem as suas “Informações” (hoje, por causa do caso das “Secretas”, todo o leitor saberá o que isto significa...), e por certo soube dos nossos intentos. Então, resolveu, sem dar “cavaco” (manobra de força, intencional?...), instalar-se, por vias paralelas, no nosso tão apetecível e pretendido local, para aí – escudado por uma força de 80 homens armados de kalashnikov – proceder a uma sessão de esclarecimento para os naturais (comício).
Aprestei-me a contactar o “chefe” dos “invasores”, um “comissário politico”, B. C., que, no momento só falava “crioulo” (intencionalmente, para manter as distancias...), e, mais tarde, verifiquei que “também” falava português fluente. Não consegui, contudo, demover os “ocupantes” a optarem por outro sítio... Afinal, aquilo não era, já, deles?!... Que autoridade mais tínhamos nós, na circunstância, para “puxar a brasa para a nossa sardinha”?...
Por causa disto, houve um ajustamento de planos, e o convívio militar transferiu-se para as instalações do nosso já referido e influente comerciante “M. S.”, de Pirada. Hoje podemos perguntar: não teria sido esta manobra de diversão já previamente cozinhada pelo enigmático mas influente “M. S”.?
E foi aí que nos reunimos todos, oficiais, sargentos, praças, e, até, elementos do PAIGC. Era a “apologia cénica” da paz e da concórdia; ou, se quiserem, um “ritual celebrativo” do fim da guerra, ainda que de efeito periclitante.
Entretanto, a alguns quilómetros dali, na bolanha, processava-se uma outra “catequese”... A “psico” do PAIGC às populações, a confirmar a “conquista”.
Escrevi, nessa altura:
“Isto tudo que tenho aqui vivido em Pirada, principalmente nestes últimos dias, tanto no aspecto positivo como no aspecto negativo, como no aspecto “dúbio”... dava muito que falar”...
Então, não falemos mais, por hoje. Fiquemos por aqui, à espera do “sol” e das “nuvens negras” dos próximos “capítulos”... 





Para que da memória se faça História


Feitos e Factos
da “descolonização” da Guiné – 8


Vou continuar a deixar por aqui alguns apontamentos desta nossa história recente. Sirvo-me do apoio da “memória”, mas reconheço que com o passar dos anos a memória vai apenas deixando salientes os factos que mais nos marcaram, e esses persistem no “arquivo” como luzeiros que depois nos puxam outras lembranças já atiradas para o chamado “arquivo morto”, ou “inactivo” – o subconsciente e o inconsciente.
Corremos também o perigo de sermos atraiçoados pela “nossa” memória, e, quando trazemos à sua ribalta alguma recordação, as imagens arquivadas podem induzir-nos em erro, ou, como nos sonhos, desfigurarem a realidade e nos levarem a tomar como verdade o que apenas é semelhante ou aparente.
Descrever a História, não é coisa fácil. Dificilmente o historiador – aquele que investiga e conta os factos da História – diz a verdade factual. Porquê? Porque ao arrumar todas as pedrinhas da descoberta para interpretar a construção feita, fica ele refém da sua formação intelectual, moral e ideológica, e, assim, a sua personalidade influencia as conclusões a que chega. Pode ser sua convicção que os factos sejam “assim”, mas também pode a realidade ser “de outro modo”.
Edgar Morin dá-nos exemplo disso, por experiência própria, no início da sua obra “As grandes questões do nosso tempo”, quando é confrontado a testemunhar um acidente de automóvel, num cruzamento onde ele aguardava que o semáforo, em vermelho, passasse a verde, para continuar o percurso que seguia... Afirmava ele “a pés juntos” que a ocorrência – que tinha visto - tinha sido como descrevia, mas – perplexidade sua! – ficou provado que tudo se tinha processado de outro modo.
É assim. Todos temos experiência pessoal de que não só “a memória nos atraiçoa”, como também a nossa visão (não é só no deserto que podemos ter miragens...). É por isso que para escrever estes apontamentos me vou socorrendo, não do que foi “escrito na pedra”, mas da correspondência familiar que fui mantendo... – uma verdadeira “fonte da História”.
Pois bem. E então o que descobri, e disso já a memória me ia ficando envolta em nevoeiro (a idade não perdoa! – dizia-me há tempos um muito amigo meu)? Vou transcrever, textualmente, de uma carta de 7 de Junho de 1974, escrita aquando do meu percurso de Bissau até ao meu destino:
... “E, assim, aqui chegámos, para continuar amanhã, talvez, ou Domingo, mas talvez seja mesmo amanhã, até Pirada. Aqui, em Nova Lamego, estamos no quartel de um batalhão. Boas instalações. A cidade é mais à frente, e há lá mais tropa. Encontrei aqui dois soldados que foram meus recrutas no GACA 3 e um cabo, o da messe, que era lá estofador. Encontro também aqui um alferes de Fufim, que parece é ainda sobrinho do Sr. Elísio. Dá-se com o Barbosa. Foi meu aluno de ginástica no Colégio, em 1965. Chama-se Ribeiro dos Santos. É família dos Costas da Santa Marinha e dos Cavadas de Fufim” (sic).
Como o mundo é pequeno!... E como este Portugal de então era tão grande no espaço, e tão próximo nas almas!... Mas há mais: já regressado a esta nossa terra, longe dos cenários da guerra, tornei a encontrar o “Alferes” Ribeiro dos Santos – o Dr. Ribeiro dos Santos, agora meu vizinho e prezado amigo. Fui catequista dos filhos, e muito prezo a consideração mútua com esta família. Este nosso encontro nas longínquas paragens da Guiné, dessa martirizada Guiné que foi terra de Portugal, havia, de facto, ficado escrito na “pedra” do papel, para que a Memória o não deixasse no olvido dos tempos.