quinta-feira, 27 de maio de 2010

Para que da Memória se faça História

Apontamentos de um soldado em África
Em jeito de "POSFÁCIO"
(Foto: Um dos painéis de Renato Torres, pintor carvalhense - Palácio do Governo da Guiné, em 1974)
“Para trás a saudade… Que futuro?!...
Desta saudade e desta dúvida que enquadravam o meu espírito, ao escrever a última crónica dos meus “Apontamentos” - naquele mês de Dezembro de há quarenta e seis anos -, apenas persiste, agora, a primeira – a “Saudade”.
Saudade de um tempo que já está para “o outro lado do Tempo”… De um tempo que os, então, tão apregoados “ventos da história” engoliram, numa desastrosa turbulência que não deixou “pedra sobre pedra” sobre os feitos maiores de um Povo em séculos de construção. Que futuro?!...
Depois de Angola, nova missão em Moçambique, e, mais tarde, outra na Guiné, terras onde respirei o mesmo ar de um Portugal multirracial, multicultural e pluricontinental. Hoje já não existe a dúvida sobre o “futuro”, esse futuro que desabou como um “tsunami” sobre esta Pátria de heróis e de santos, numa pretensamente radiosa manhã primaveril de Abril.
Que futuro?!... Recordo, por exemplo, da Guiné, aquela cena, já na descolonização, de um chefe de tabanca (aldeia) agarrado à sua bandeira verde rubra, que religiosamente guardava entre os seus pertences, a dizer que não se desfaria dela, mesmo com o perigo de o “PAIGC” a encontrar consigo e, por via disso, ver a sua vida ameaçada (coisas destas, testemunhou Almeida Santos, publicamente, a respeito do tão martirizado povo de Timor).
E foi também com a alma perpassada pela negrura da tristeza que assisti, em Bissau, ao último arriar da Bandeira Portuguesa, na fortaleza da Amura, horas antes de entrarmos para as lanchas de desembarque (LDG) que nos haveriam de transportar ao encontro do navio Niassa, no alto-mar, nessa derradeira noite da presença portuguesa na terra que Nuno Tristão descobriu, e regou com o seu sangue, em Junho de 1446.
Que futuro?!... O Futuro projecta-se em ideais… Mas, a História escreve-se com factos: com heroicidades, mas também com traições...; com exaltações de honra, mas também com ignomínias de cobardia.
E hoje os factos aí estão.
As dúvidas de ontem estão desfeitas com a realidade do presente.
Não soubemos ou não pudemos terminar com êxito o ciclo da nossa História… Nem honrar aqueles que se sacrificaram e deram a vida, para construir essa História, ao longo de séculos de gerações, e à face do planeta. Já não há “Futuro”; apenas resta, aqui e em toda a parte por onde esta Pátria passou, a nostálgica Saudade…
Saudade do Povo português e de uma Pátria que se chamou Portugal!
V. N. dos Santos
Portugal - Junho de 2010

quarta-feira, 19 de maio de 2010

Para que da Memória se faça História

Apontamentos de um soldado em África - 21
Despedida
Ao tomar a pena, para escrever a última crónica destes humildes apontamentos, trespassa-me a saudade...
Não a saudade desses momentos sombrios e terríveis da guerra  porque a guerra não pode deixar saudade , mas a nostalgia de uma terra e de uma gente, a que deixei prender o meu coração de português.
E também o pesar profundo por não ver no regresso camaradas que me acompanharam na vinda. Permitiu Deus que aqui ficassem a cimentar com as suas vidas os alicerces da Pátria lusitana, e a regar com sangue de heróis este solo pisado durante séculos pelos nossos missionários, e que os ventos da história, loucos, endemoninhados, pretendem devastar.
Quando o Chefe do Governo disse à Nação, com aquela firmeza do “sei o que quero e para onde vou”, que da hora se não podia perder um só minuto, senti ferver em meu íntimo o vigor natural da minha juventude. As imagens das primeiras partidas para terras de Angola causaram-me um enorme desejo de também seguir, e a satisfação veio pouco mais tarde, quando a hora se prestou para o cumprimento do serviço militar. Em dor, deixei os que me eram queridos, mas o coração transbordava de alegria, por assim poder ser útil à minha Pátria, nas fracas possibilidades que tinha.
Dois anos são volvidos, já. Missão cumprida, regressamos ao afago do lar, à doce paz na família. Grande foi a experiência vivida... Dura, cruel! Grande foi a lição que em terras de África consegui receber, como homem, como cristão, como português! Não fiz tudo o que, agora, em visão retrospectiva, compreendo seria possível levar a cabo... Mas, voltar atrás é impossível no domínio do tempo!...
Graças Vos dou meu Deus por todos os benefícios que me destes neste período. São para Vós todas as minhas horas: as de alegria, as de sofrimento, as de amargura, as de solidão, as de perigo. Graças Vos dou, sobretudo, pelo benefício da vida, que poupastes à morte trágica, naquela hora traiçoeira e terrível. E peço-Vos perdão por todo a mal que em mim pode encontrar culpas. A todos os leitores de “Missões e Missionários”, na sucessão destas crónicas, procurei dar algumas centelhas de luz. Centelhas fugidias, mas, estou certo, de algum modo iluminadoras do seu espírito, para que nele melhor fosse recebida a realidade que nos envolve em África. Realidade de sentido profundo no Mundo e na História! A esses leitores que me acompanharam durante esta vintena de meses, eu rendo a minha inteira gratidão, pois compartilharam, com a sua assiduidade e atenção, do frémito de que se tomou a minha alma, em face dos nossos irmãos de cor. Bem sei que fui pobre em meus assuntos... De quanto vos não poderia eu falar!... Mas ainda que mais dissesse, sempre uma lacuna ficaria. É que a África  repito o que já tenho dito  só se aprende in loco! É, na realidade, de mistério e de sonho..., cativante, arrebatadora. Penetrar no espírito do aborígene, avaliar a potencialidade económica da terra, tocar o âmago social deste povo... É inebriante! E, sobretudo, quando tudo isto faz parte da nossa Pátria!...
Sinto-me feliz por ter vindo... Mas como poderia sentir-me satisfeito?... Mais, imensamente mais ficou para além do que se me ofereceu. Eis porque, ao deixar a África, sinto uma imensa saudade... e desejo de voltar. Ao Senhor Padre Lopes, digníssimo Director desta Revista, só posso ficar imensamente reconhecido, pelo carinho com que sempre recebeu a minha correspondência, e pelas palavras tão amigas e acalentadoras que sempre dirigiu, desde a primeira hora, a este soldado português em África. As suas cartas traziam vigor exuberante e cálido amor...,  vigor e amor que tão preciosos são para combater as correntes deletérias que atacam a juventude que aqui se bate. O calor do seu conforto levantava-me quando me via sem forças, e, num sussurro, ouvia em meu interior a voz da consciência: – Continua!
África! Terra de missão... e de promessa!
Quando os marxistas-leninistas pensaram em arruinar as potências ocidentais, pela tomada da África, lançando sobre os povos árabes o negros os tentáculos do comunismo e da subversão, não contavam com o escolho que para eles se tornou Portugal. Não tomaram em consideração que, ao chegarem às províncias Portuguesas, não teriam unicamente uma operação de expulsar, mas de cortar. Portugal ganhou raízes em África, não veio apenas para sugar. Não importa o que fizeram alguns portugueses sem escrúpulos... Antes, importa, sim, para condenar atitudes particulares, pouco dignas ou indignas, tomadas por indivíduos de um povo, traindo a consciência nacional e histórica do país a que pertencem. Mas, fundamentar-se em factos isolados, para daí inferir uma linha de conduta histórica, é erro, é difamação, é desonesto! Circunstâncias históricas e a mentalidade de uma época permitiram a escravatura, mas a sensatez da razão aboliu tal, quando os espíritos, mais libertos da ambição, se deixaram vencer pelo coração e pela verdade. Isto só prova que, apesar de tudo, sempre prevaleceu o ideal supremo na Nação que em todas as épocas teve um denominador comum: civilizar, fazer cristandade! E se hoje se fala muito dos defeitos do passado, com amargor e espírito construtivo, isso só prova que o ideal português continua, na mesma constante de sempre, ainda que os homens, de quando em vez, os possam atraiçoar.
Acabada a missão de Portugal em África?... Longe disso! E se alguém disser que estamos atrasados décadas, a contrapartida só pode ser uma: empregar todos os esforços para recuperar. Perante a arremetida comunista, só resta permanecer de pé, rechaçar o ataque e… ficar!
Mais do que nunca, hoje, que mercê de circunstâncias trágicas sentimos bem forte a alma portuguesa, temos oportunidade de afirmar ao mundo o que somos, praticando esse ideal que arrebata a nossa consciência nacional: fazer cristandade! Para realizarmos esse ideal nobre, temos de possuir uma mentalidade segura e esclarecida a respeito do que somos e do que queremos. Esta é a primeira batalha a travar! Só portugueses de fé e de querer, honrados e leais, conscientes das suas responsabilidades e da missão da sua Pátria; só portugueses que não destoam dos feitos e do nome dos seus maiores; só portugueses que vibrem a espada na guerra e levantam bem alto a cruz na paz; só portugueses que sejam ao mesmo tempo cristãos autênticos… poderão salvar a Pátria nesta hora de sacrifício.
Não basta ter a nacionalidade... É preciso ser, ser português como os de sempre! É preciso resistir à devassidão, à ambição que ilude, à vida fácil e sem escrúpulos, ao mal... ao pecado! Esta é a batalha que o inimigo não descura. Se a vencermos, então e só assim, poderemos continuar a missão que do promontório de Sagres receberam os que antes de nós vieram há quinhentos anos. Mais do que nunca, temos hoje consciência dessa missão.
E se um dia pudermos dizer: “missão cumprida!” (grande momento histórico esse, Portugal!...), quem poderá dizer que estes solos não são terra da nossa terra, e esta gente povo do nosso povo?!...
Deixo Angola numa hora em que o ódio, espalhado por toda a África, mutila corpos, dilacera almas e arrasa civilizações... Mas peço a Deus que um dia me deixe voltar e ouvir ainda, como agora, essas meigas crianças, brancas, pretas e mestiças, à mistura, cantar em uníssono e no calor das suas almas puras: - “HERÓIS DO MAR, NOBRE POVO, NAÇÃO VALENTE E IMORTAL!...”
Angola – Dezembro de 1964