quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

Para que da memória se faça História




Feitos e Factos
da “descolonização” da Guiné – 16
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A situação, na Guiné, continuava complicada, dado que em Lisboa os acontecimentos de convulsão politica não favoreciam, e muito menos garantiam, o clima de segurança nas províncias do Ultramar.
A 11 de Julho, registava eu na minha correspondência:
“Ainda há pouco, quando estávamos a almoçar, ouvimos pela rádio o general Spínola a discursar... muito empolgado, mas não percebemos nada do que ele disse... Falava em pátria, e em sagradas parcelas da Pátria... Não sei em que sentido nem com que intenção. Não tenho dúvidas nenhumas em que perdemos a Guiné, e reconheço a esta gente o direito de serem independentes, pois se perdemos isto, foi por nossa culpa, pelo muito que se poderia ter feito e não se fez. Agora, que ninguém pense, quanto à Guiné, em patriotismos... São descabidos e sem sentido. É preciso, antes, ajudar estes povos para que não nos odeiem, pois se o fizerem talvez tenham razão para isso...  Isto é uma história muito comprida, que não dá para contar, nem numa carta; nem num livro, talvez.”
E continuava:
Oxalá eu tenha oportunidade de contar dentro de dois meses, quando for de férias. Ainda hoje, ia a atravessar a parada um soldado do PAIGC... Tinha ido à cantina, nossa, comprar cigarros. Lá demos um abraço à fula... Poderemos nós algumas vez virar de novo as armas contra estes  indivíduos que, apesar de tudo... nos estimam? Não sei o que sinto quando eles próprios me chamam... “meu capitão”. Para quê, a guerra? Por que morreram tantos, deles e nossos? Com que resultado? Os deles, talvez tenham tido sentido... Os nossos, meu Deus, os nossos talvez sejam o preço dos nossos pecados. Só tenho pena de que tenhamos perdido este povo, que o não tenhamos sabido conduzir, que o não tenhamos sabido salvar, e que agora, sem conhecerem outra coisa, fiquem abandonados a sistemas comunistas.
Mas o futuro era ainda desconhecido, meras hipóteses, ao sabor dos “caprichos” dos “nossos amigos”. Assim, prosseguia no meu apontamento epistolar:
“Dentro de 20 dias já não estaremos, de certo, aqui. Não sei para onde vamos. Deus queira que tudo se resolva em bem, pois às vezes nestas saídas há alguns extremismos. Oxalá que não!...“
Tínhamos, então, recebido intimação do PAIGC para abandonarmos Pirada até ao dia 20. Entretanto, exigiram  que abandonássemos Bajocunda (onde estava uma nossa companhia):
“Hoje, a companhia de Bajocunda, a 14 km daqui, recebeu ordem para sair dali no prazo de 24 horas!... Veio de Bissau (de avião) um delegado do Q. G., e foram lá falar com “eles” (PAIGC)... Ficou o prazo protelado até ao dia 15 à tarde”.
Quer dizer: de um momento para o outro, os prazos encurtavam, e nada podia fazer prever o futuro, já que o presente era também instável. Em face disso, e comunicado o “ultimato” a Bissau, no dia 12 de Julho apresentou-se em Pirada o Cmdt-chefe – brigadeiro Fabião – acompanhado de elementos do quartel-general e algumas individualidades do PAIGC acreditadas junto daquele Comando. Disseram estes últimos que, a nível superior, o Partido não tinha dado nenhuma ordem nesse sentido, e reuniram com os elementos do partido instalados junto de Pirada para esclarecer a situação. Depois de prolongada conferência entre eles, a situação de iminente abandono das posições foi assim anulada. Voltámos a respirar... Até quando?!...
Como o PAIGC tinha retomado as suas posições a sul de Pirada, era frequente ver dentro da área do nosso quartel elementos da sua “tropa”. Confraternizavam com soldados nossos, e, às vezes, “iam longe de mais” nestas confraternizações de amizade. A tal ponto que registei o seguinte apontamento:
“Ontem (12 de Julho), dois soldados deles (guerrilheiros, antigamente chamados “turras”) estavam à tarde aqui no quartel, junto da cantina das praças, “com um grão na asa” (embriagados). O oficial de dia foi chamar um dos chefes deles para os vir buscar, antes que os “copitos” fizessem qualquer anormalidade. O tal chefe “foi aos arames” (irritou-se), e dizia que eles não tinham autorização para beber (cerveja). Lá foram para o acampamento, e parece que lhes deram uma valente sova”.
Outro aspecto algo insólito, que respigo do meu arquivo epistolar:
“Ontem de manhã, veio à fronteira o “Q. M.” (o já referenciado comandante do PAIGC da zona Norte). Veio entregar as armas que outro dia tinham roubado de noite aos destacamentos de milícias. Vinha também despedir-se, pois ia para Moscovo. Esta saída dele daqui da zona foi arranjada por influência dos nossos Chefes, pois o sujeito era um bocado rude e. agora que a guerra acabou, estragava um pouco a acção politica. Traziam um unimog (deles). Esta viatura avariou e daqui por um bocado estava ela a entrar no nosso quartel, a reboque de um unimog nosso, para ir à oficina reparar. Foi uma coisa pouca e rápida. De vez em quando, vêm-nos pedir gasolina para bicicletas a motor que eles utilizam. Ontem chegaram-nos a pedir gasolina para o tal unimog. ...Como as coisa se passam aqui! Alguma vez se pensou ser isto possível? No Vietnam, assinaram acordos ... mas a guerra continuou; aqui os acordos ainda não foram assinados, e contudo a guerra acabou efectivamente. E não há ódio entre aqueles que se combateram. Mas isto não pode durar sempre, indefinidamente. Isto não é solução nenhuma. É uma transição. ... A verdade é que isto só tem um caminho: o reconhecimento da independência, e arranjar a melhor maneira de irmos embora sem atropelos.”
Este comentário era motivado pela situação que se vivia em Lisboa, a nível governamental, onde parecia haver um desconhecimento completo da situação real que se passava nos territórios ultramarinos, e na Guiné já não havia ponta por onde se pudesse pegar, para alterar o curso dos acontecimentos.
Em Portugal... No torrão-sede europeu de uma Nação pluricontinental e multi-racial, tinha deflagrado uma revolução, iniciada por um “golpe de Estado... Os golpes de Estado, substituem governos; as revoluções, que geralmente são iniciadas por aqueles, e se lhes seguem, abalam as estruturas, destroem e reconstroem poderes e sistemas, quase sempre sem tento e destino, e nunca se sabe onde vão parar... Era essa a sensação que alguns daqueles que, longe da família, cumpriam missão de soberania por terras de África, experimentavam, sem poderem modificar o curso avassalador dos acontecimentos, mas cuidando por não deixar a honra, sua e de um Povo, espezinhada pelas pedras da calçada da História.    

Para que da memória se faça História




Feitos e Factos
da “descolonização” da Guiné – 15
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Pirada, norte da Guiné ainda portuguesa (Portugal só reconheceu a independência desta província ultramarina em 10 de Setembro de 1974), dia 7 de Julho de 1974. Domingo. Antes de almoço, pelas 12h20 (14h20, na Metrópole), registava eu num aerograma destinado à família:
O dia de hoje tem sido calmo. Tenho passado a manhã no meu gabinete a tratar de um ou outro assunto, só, e também com o comandante e outros oficiais. Domingo! Dia do Senhor! Não temos missa. Não há nada que nos dê o sabor cristão do dia, o sabor metropolitano...
Estamos à espera dos camaradas lá de baixo, os de mais a sul, para virem almoçar connosco e conversar. Os daqui mais de perto já me mandaram chamar hoje, para os ir buscar, a fim de falarem com o comandante. Consegui esquivar-me, “por motivos de serviço”, e, de acordo com o comandante, mandamos dizer que viessem na coluna que foi buscar os outros. Os daqui de perto têm mais confiança em mim no que noutra pessoa do batalhão, O que é, são uns pedinchões. Whisky e cigarros, estão sempre a pedir. Qualquer dia vamos à falência!... Já me ofereceram uma lata ... parece daquelas latas de goiabada, mas é com bife..., uma lata de sardinha de conserva e uma lata de leite. Mas levaram-me a minha caneta.”  
Pelas 23h40, continuava eu o meu registo:
“Hoje foi um dia em cheio, para o desanuviamento do ambiente da paz de vidro de Pirada. Não posso aqui relatar tudo. Só vale a pena, por principal, (referir) que tivemos na fronteira um encontro com Q. M., o chefe de toda esta zona, e que, num dia intenso de encontros, palestras, etc., tivemos a almoçar connosco 4 chefes do PAIGC: dois aqui de perto e dois mais do sul. Ambiente de franca cordialidade. Os dois do sul também jantaram e estivemos todos à mesa a falar de guerra, conversa que já pertence ao passado. Dormem cá também. Foi este o meu Domingo. Agora vou deitar-me, porque já estou cheio de sono.”
No dia 8, pelas 12h10, continuei a registar no papel:
Tudo continua correndo bem, graças a Deus. Os homens do PAIGC foram com o comandante falar a milícias na área de outra companhia, para receberem as armas... Já que a guerra acabou, a arma não presta para mais nada, nos pelotões de milícias. Interessa que estes (os milicianos) se dediquem agora ao trabalho, a preparar o futuro. Continuam a receber (a ter vencimento) enquanto nós cá estivermos.” E acrescentava: “Vejo isto a andar um pouco depressa, e sendo assim não demora muito que o batalhão retire. Dentro de oito dias, deve vir para cá a companhia de Bajocunda. E fica uma grande parte do Leste entregue ao PAIGC, como já aconteceu a uma grande parte do Sul. Agora ao meio dia devem almoçar cá outra vez os quatro homens que ontem cá passaram o dia. São dois comandantes (chefes) e dois comissários políticos. Ambiente muito cordial e mesmo muito fraternal. Parece impossível como é tão fácil extirpar o ódio do coração dos homens.”
Porém, dois dias depois, a 10 de Julho, voltava a escrever:
“O ambiente por aqui tem continuado amistoso. Claro, refiro-me a ambiente com o PAIGC. Mas desde ontem à tarde, altura em que chegou o tal M. S. (o comerciante do sítio), as coisas modificaram-se já. Não sei que influência tem o “tipo” em tudo isto, mas o certo é que, estando ele uns dias para Bissau, as coisas corriam melhor. O “gajo” chegou e os ânimos esfriaram um pouco mais. É esta intriga que nos dá cabo dos nervos. Ora bem. Até onde chegaram as coisas? Hoje, o elemento mais preponderante do PAIGC, do grupo que está aqui na área, chegou cá de tarde a informar que tinha recebido ordens do Partido para sairmos daqui no prazo de cinco dias. Outro dia, quando cá esteve o Comandante-chefe (brig Fabião), disse-lhes que não precisavam de fazer ultimato, bastava pedir, que a gente saía do sítio que eles quisessem ocupar. Pois bem, eles agora pedem Pirada. O comandante disse que não chegavam cinco dias para mudar daqui o batalhão; explicamos-lhes as coisas como são, e então ele propôs dar mais cinco dias. Quer dizer: querem que saiamos daqui de Pirada até ao dia 20. Para onde vamos? Não sei. Só espero é que tudo decorra sem problemas de maior. Amanhã, vem cá um delegado do Q.G. para tratar do assunto. Aguardamos.”
Era este o clima de inconstância desgastante do presente e de incerteza do futuro, mesmo do dia seguinte, que viviam os militares na Guiné, ainda portuguesa, mas em via acelerada de descolonização. Tudo, em consequência do golpe militar que, na retaguarda, em Lisboa, tinha derrubado o Governo da Nação. Mas deixem-me terminar esta crónica com as palavras com que terminei a correspondência a que me venho reportando:
“Ontem à noite, apanhámos cá um choque. Ouvimos na BBC a demissão de Palma Carlos e mais 4 ministros. Está mesmo bonito! Não sei que implicações isso possa ter com o Ultramar, mas podem ter a certeza de que as armas do Exército Português, na Guiné não voltarão a fazer fogo. A não ser para salvar a pele, se for irremediavelmente necessário, e Deus faça que assim não aconteça. Ninguém quer a guerra. Nem os próprios elementos do PAIGC. A entrega da Guiné aos filhos da Guiné é irreversível! Comunistas, o PAIGC? Certamente! Mas não há outra solução para o problema, na hora presente! O que vai ser o futuro da Guiné? Não sei.”
Fiquemos, hoje, por aqui. Quase quarenta anos passados... Infelizmente, todos sabemos o que foi o futuro: o desse bom povo da Guiné, e o deste torrão que ainda se vai chamando Portugal.
... ... ...
Para eles e para todos nós, UM SANTO NATAL!