quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Para que da Memória se faça História

Apontamentos de um soldado em África - 16
O Óbito
Tinha acendido as velas do altar-mor, quando à porta da pequena e pobre igreja ouvi um reboliço acompanhado do correr de fechos. Preparava-me para receber a sagrada comunhão, e o sacerdote já se encaminhava da sacristia para o altar, a fim de satisfazer o meu pedido. A missa era de réquiem, e apenas seria rezada dali a meia hora. Havia falecido no hospital da vila uma pobre mulher nativa, a quem o enfermeiro, cristão, baptizara poucas horas antes da morte a que a tinha levado uma doença não cuidada a tempo. Por isso, eu pedira ao padre que me ministrasse, antes, a comunhão, pois me causava atraso esperar pela missa de corpo presente dessa pobre mulher, a quem Deus se tinha aberto nos derradeiros momentos da vida.
Mas, ao olhar para trás, a saber, num gesto espontâneo e mecânico, o motivo do barulho, vi com espanto que um grupo de pretos, homens e mulheres, carregavam uma urna para dentro da igreja. Traziam consigo duas cadeiras, para nelas apoiarem o caixão, ao mudarem de mãos, pelo caminho. Dirigi-me ao pároco e contei-lhe rapidamente o acontecido; e, um e outro, não pudemos conter o riso, tão inesperado era o que se estava a passar. Eram oito horas e meia da manhã. O funeral estava marcado para as nove. Mas, talvez pensando poupar trabalho ao ministro de Deus, talvez impacientes com a lenta aproximação da hora, ou talvez ainda para adiantar tempo, não esperaram que o sacerdote fosse levantar o corpo, e vá de levá-lo quanto antes para a igreja. No fundo, essa pobre gente procedera tal quanto a sua ignorância religiosa o permitira, tanto mais que alguns dos elementos do grupo deviam ser pagãos, como pagã fora quase até ao fim da vida a defunta ali presente. Refeito do incidente, o sacerdote (capelão militar acumulando as funções de pároco) resolveu então, para minimizar os males, celebrar a missa e, terminada esta, acompanhar o préstito ao cemitério. Mas não findara por aí o dia...
À tarde, nova turma de gente se apresentou à porta da igreja. Era outro funeral. Mas, desta vez, tratava-se de uma criança que não era baptizada, e, portanto, não podia ter cerimónias religiosas. E o grupo dirigiu-se, então, para o cemitério municipal, do mesmo modo como até ali viera. Já na minha crónica anterior fiz referência ao problema pastoral, missionário, desta terra. Os casos atrás narrados elucidam em certa medida a sua gravidade. Os nativos estão habituados a enterrarem os seus mortos à sua maneira. Quando há óbito, há comida e bebida, e isto torna-se frequentemente uma ocasião de diversão para aqueles a quem a dor menos aflige. As famílias visitam os enlutados e levam panos ou mantas que servirão para cobrir o morto, que neles será embrulhado e metido no esquife. As mantas que sobram são distribuídas, depois, pelos doridos. .Não admira, assim, que, habituados aos seus costumes pagãos, os nativos tenham procedido de maneira tão simplista. De manhã, o funeral era talvez um dos muito poucos que levavam padre, e os indígenas acharam que estavam fazendo uma grande coisa, ao transportarem, sem mais nem menos, o corpo para a igreja, ao encontro do sacerdote; de tarde, pretenderam, sem qualquer fundamento, seguir o exemplo do primeiro funeral, não sabendo, sequer, a diferença que aquele punha em plano superior (em termos religiosos). À tarde, era o enterro de um não baptizado. Teria sido diferente, se, seguindo os conselhos já dados pelo pároco, este tivesse sido solicitado na hora derradeira. Quanto estas almas pedem missão!...
Já expus, também, no mês passado, as dificuldades que atormentam o pároco, impotente para tão grande e tão diferenciado rebanho. Capelão militar, ele irá embora daqui a alguns meses. Outro virá, na melhor das hipóteses, mas outro, diferente. Depois, ainda outro… Oh! Como é grande a seara, e os operários tão poucos e sem meios!...
A hora que passa é a “Hora dos Leigos”. Não de alguns... de todos! De todos os cristãos, para que, unidos à Hierarquia, façam renascer a Igreja. Na África, o tempo urge. O terrorismo não é mais que um indício de que vamos atrasados! Estamos numa época de velocidades. Tudo corre, e também correm os conquistadores da pessoa humana. Nós, portugueses - todos -, temos de olhar de frente o problema. A gente do Ultramar pede, mais do que nunca, muitos e santos missionários. Mas, enquanto eles não chegam, que todo o branco traga uma cruz na mão, no peito uma chama ardente de caridade, na alma uma formação sã e arrebatadora. Este ideal está, porém, longe de ser atingido...
Graças a Deus, que já há missões de Leigos, em Angola. Amplos são os resultados. Mas, é preciso mais!...
Com os capelães militares, o problema missionário, agravado ao máximo com o terrorismo, foi em parte atenuado. Mas a solução é precária, e a isto conduz o carácter nómada destes sacerdotes. E, ainda, os capelães militares veriam o seu trabalho mais frutífero, se a seu lado trabalhassem os leigos com igual ânsia de apostolado.
De todos os cantos do torrão metropolitano saem jovens para as fileiras do Exército, para que no Ultramar mantenham íntegra a nossa Pátria. Importa prepará-los, para que sejam ao mesmo tempo soldados do Exército de Cristo. A Acção Católica tem aqui um grande campo de trabalho... E todos nós, todos vós, os que ficais. Orai!
Ambriz - Angola, Julho de 1964

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Para que da Memória se faça História

Apontamentos de um soldado em África - 15
Novas terras, novas gentes
O soldado em Angola quase se assemelha ao cigano, que, nunca estando bem numa terra só, procura continuamente novas paragens, em cumprimento do nomadismo que lhe está no sangue. Obedecendo a ordens superiores, eis que, também, não podemos nós ganhar raízes num único torrão, pois é mister que novos horizontes busquemos, a fim de que nos seja dado um relativo e legítimo bem-estar, após tempos passados em sacrifício, ou, saindo de uma zona mais ou menos calma, atendamos ao chamamento de outras onde se reclamem novas forças e frescos ânimos. Isto permite ao soldado melhor conhecer esta Angola que o chamou e mais aprenda da maneira de ser da sua gente, que, de região para região, tão manifestas diferenças apresenta.
Ficaram para trás essas matas tão frondosas como cheias de perigo, onde sangue dos nossos foi vertido, a selar para sempre a portugalidade destas terras; ficaram os penhascos agressivos e as picadas poeirentas e traiçoeiras; ficaram as emboscadas assassinas de uma guerrilha alimentada pelo ódio e pela subversão internacional comunista. Nova terra, agora, nos acolhe, mais atraente e mais calma, bafejando-nos com a brisa do oceano, no cair das tardes quentes e multicoloridas deste céu africano.
Novas terras... novas gentes! Novas gentes… novos problemas!
Enquanto que, antes, ocupávamos uma região praticamente abandonada, esta apresenta uma população mais ou menos numerosa, com brancos, mestiços e pretos. O habitat do aborígene, aqui, não se diferencia muito do tradicional. A sanzala situa-se na periferia da vila, ou junto ao mar. Não tendo a mata para se dedicar ao café e à caça, os homens ocupam-se da pesca e no trabalho das salinas. As mulheres, contudo, continuam a tratar das lavras (hortas), onde homem não mete mão; elas encarregam-se da agricultura, para cujo trabalho não causa impedimento o filho que trazem às costas ou que, enchendo-se de terra, brinca a seu lado. E é de certo modo consolador ver esses bocados de solo arenoso começarem a verdejar poucos dias após a sementeira, como retalhos pluriformes na extensa zona plana junto à praia. Deitaram à terra milho e jinguba (amendoim), utilizando ainda processos rudimentares, primitivos, mas as sementes hão-de germinar e contribuir grandemente para as suas subsistências.
O problema pastoral é de acuidade extrema. Grande parte da população nativa não é baptizada, embora se verifique, neste campo, uma tendência bastante acentuada e positiva por parte dos naturais. Mas não é fácil, como à primeira vista pode parecer, aproveitar esse movimento em procura da pia baptismal. Impunha-se organizar o catecumenato, cuidar mais da seara; contudo, o trabalho é sobremaneira pesado para o pároco local, cuja função é desempenhada em acumulação pelo capelão militar, que além das suas ovelhas paroquiais tem a tropa, espalhada por várias locais distantes, e que de modo algum poderá abandonar.
Alguns problemas de ordem moral, e de certo modo graves, se levantam também entre a juventude indígena, particularmente nas raparigas. A não ser a catequese, e, a este tempo, em precárias circunstâncias, nenhum movimento de apostolado existe na comunidade. E à juventude, a não ser a Igreja, mais ninguém pode aqui ensinar um caminho de plena realização de vida. A gente africana - já o disse nestas crónicas - tem pouca experiência dos padrões da nossa civilização, e, por outro lado, possui sentimentos delicadíssimos. O contacto com o europeu, quando este tem mais defeitos do que qualidades a pesar no prato da balança, pode ser-lhe, e é geralmente, prejudicial. Pode destruir-se o seu sistema tradicional de vida, sem integração natural num outro que supere o antigo. A facilidade com que, por isso, o indígena é influenciável pode permitir o caos moral... e é muito triste quando isso acontece!
O terrorismo, com o abandono de algumas fazendas e a consequente delimitação das áreas de livre circulação, trouxe algumas dificuldades em matéria de alimentação. Tal ferrete deixou também as suas marcas no quadro humano desta região, facto de que as crianças são a sua mais viva e negativa expressão. Não fique o leitor desta crónica, e por ela, com ideias aterradoras sobre o que nos cerca. Não! Situações destas encontram-se em todo a mundo, e seria criminoso escondê-las. Importa encará-las de frente e combater os males pondo os problemas em equação... Mas estas equações sociais não se podem submeter unicamente aos números da Estatística; a incógnita continuará persistente, se a caridade de cada um nós, em todos os prismas porque pode ser vista, não for uma realidade activa. Tal como noutros sítios já, vi o preto pedir trabalho e executá-lo como o branco, ou melhor. Daqui se prova, ao contrário do que muitos pretendem fazer crer, que o africano não é um preguiçoso por natureza. Ele trabalha, se as suas necessidades lho determinarem, e com ele podemos contar para a restauração da terra que ele e nós amamos, irmanados num mesmo ideal cristão o patriótico.
Eis que encontramos, por conseguinte, um novo campo de luta. Luta que já não é propriamente de armas, mas de corações e de almas. Que Deus nos ajude a cumprir a nossa missão durante estes meses que aqui estivermos: a trabalhar, se necessário mesmo para além das nossas forças.
Ambriz - Angola Junho de 1964

Para que da Memória se faça História

Apontamentos de um soldado em África - 14
Moralidade
Há tempos, li, numa revista angolana, um protesto escrito pela sua própria Direcção contra uma carta que alguém, com razoável bom senso, dirigira àquele órgão de imprensa, desaprovando certas ilustrações mais ou menos mundanas que o mesmo publicava de quando em vez. Li... e senti tristeza ao tomar conhecimento do critério pouco seguro e capcioso que essa revista utilizava para justificar as suas gravuras.
Não é sistema novo, explorar o sensualismo do leitor para que qualquer publicação atinja grandes tiragens. Infelizmente, a formação moral da nossa gente parece ter entrado em decaída. E se tal se pode afirmar da gente já madura, é trágica verdade que a nossa juventude sofre horrivelmente de idêntico mal. Assim, o melhor meio que qualquer editor menos sério tem a utilizar para obter grandes vendas das suas obras é “prantar” nas suas capas espampanantes figuras manchadas pelo indecoro moral, e célebres, muitas vezes, pelos escândalos mais escabrosos.
Só uma consciência empedernida poderá ficar insensível perante tais agentes de corrupção e, até, negar os seus efeitos tão deletérios. Só uma mente pervertida pode atribuir a esses manejos do mafarrico uma benéfica manifestação da mais pura arte.
Atravessamos um período acutilante, neste aspecto da vida. A pornografia, descarada ou camuflada, entra por todas as portas e em toda a parte. Vozes diversas têm clamado por todos os cantos contra esta invasão terrível. O alarme chega a tocar nos próprios estabelecimentos de ensino.
Também em Angola a campainha tem de soar. Quem pode – e todos podemos - deve trabalhar contra esta arremetida do inimigo.
Alguém disse, há muitos anos: “A corrupção há-de penetrar de tal modo em vosso meio, que, quando os vossos exércitos forem chamados a intervir, eles se desmoronarão. Não há dúvidas, pois, quanto à táctica inimiga. O materialismo marxista penetrará por qualquer forma e com os meios mais apropriados. A nossa juventude, uma vez pervertida, entrará nas fileiras já vencida e sem forças para segurar as armas. E mesmo sob a farda, os ventos da imoralidade não deixarão de a sacudir, porque eles nada poupam.
Há quem chame à pornografia “motores de arranque”. Talvez, à semelhança de imoralidades praticadas em algumas guerras, com o fim de levantar o ânimo à soldadesca vencida pelo tédio!...
Ah!... Se todos os exércitos tivessem um Nun'Álvares por chefe!... Que outro lenitivo mais forte pode um soldado cristão escolher, se não o seu Cristo, que no madeiro resgatou o mundo?!... Foi a Cruz que se ergueu sobre a terra, e não o abismo da ignomínia e da devassidão!
Clamemos, clamemos sempre! Lutemos, lutemos sem tréguas! Rezemos, rezemos com piedade! O inimigo avança traiçoeiro e quer minar os alicerces da nossa integridade. Urge abrir os olhos aos incautos. É grande mister sanar o ambiente conspurcado pelas mais corrosivas produções, e, sobretudo à nossa juventude, mostrar a luz deslumbrante da verdadeira moralidade, sem a qual a vida é caos insuportável.
Angola - Maio de 1964

Para que da Memória se faça História

Apontamentos de um soldado em África - 13
Da guerra ao lar amado
Entrei naquele enorme charuto alado... Quase abafava sob o calor do seu ambiente fechado.
Lá fora, uma multidão se acotovelava ainda, em disputa de prioridade na estreita passagem da escada que dava acesso ao boeing. Quase parecia impossível como dentro de escassos minutos aquela mole imensa se tinha acomodado toda nas cadeiras suaves do avião. Mais uns segundos, e Luanda ficava de baixo dos meus pés... para, em breve, ir passando para trás mais e mais, até se perder no fundo do horizonte.
O ar tornava-se agora mais fresco e, mais tarde, ficou, mesmo, frio, a ponto de me fazer doer os pés. Inclinei as costas da cadeira para trás. Levantei os olhos e, pela escotilha, reparei que lá no fundo... muito fundo já, a terra fugira até quase se dissipar. Passáramos já Ambriz, Ambrizete, St. António do Zaire... - pequenos desenhos na face distante do Globo. Angola ficava...
Recostei-me e respirei fundo. Parecia um sonho, mas era realidade: depois de quinze meses, ia, enfim, voltar a ver aqueles rostos queridos que deixara com os olhos marejados, naquela doca de Lisboa. Dentro de horas, ao noitecer, apenas, poria pé firme em Lisboa, e, depois, rumaria ao Norte, em busca do lar amado. Oh!, Deus! Obrigado! Que mais pode um soldado desejar, fora do cumprimento do sagrado dever, do que voltar à terra em que nasceu, e beijar aqueles que o trouxeram ao mundo?!...
Ainda havia poucos dias desde que a morte rondara de novo pelos nossos. Num ataque inimigo, mais um jovem português dera a vida pela Pátria. Horas um pouco amargas se passaram nesses momentos. E como que num abrir e fechar de olhos, a guerra se tornava, agora, para mim, distante... Para trás, para trás... mas só por um mês. Tempo, contudo, suficiente para respirar lufadas de ar retemperador metropolitano; para receber os afagos cheios de lenitivo vital do ambiente familiar. Em poucas horas, Lisboa voltava a acolher-nos no seu seio. Mas... - que ingrata! - a quem vinha do sol quente do céu africano, oferece um frio incomodativo, uma temperatura de onze graus centígrados. Ingrata?!... Incomodativo ?!... Oh! Na verdade, não podia ser de outra forma. Lisboa dava o que tinha, do que era mesmo de seu. Era o seu beijo de boas vindas. E como, ao sentir esse frio, a princípio importuno, senti consolada a profunda nostalgia que há mais de um ano me dilacerava a alma! Sempre tivera saudade do frio da saudosa Metrópole...
No mesmo dia da chegada, um comboio me traz veloz aos braços dos que deixara. Mas se uma alegria exuberante me invadia o coração..., a minha alma conservava uma lacuna, onde habitava uma preocupação também nostálgica e dilacerante. Neste céu de felicidade que agora me começava a cobrir, não podia expulsar do pensamento os camaradas de armas que continuavam no campo da luta. Impossível olvidar aqueles bravos e simples rapazes que sempre tive sob as minhas ordens e que comigo passaram momentos de angústia e tensão. Jamais, pois, poderia considerar-me afastado dessa guerra que, ao levantar de Luanda, me parecia ficar pelas costas. Longe, sim, e sob os carinhos dos que me são amados, sinto-me, também, no meio dos que continuam sofrendo nas matas e savanas, nos montes e vales, nas traiçoeiras estradas do norte angolano, ou no isolamento dos acampamentos, onde o conforto falta. Ficaram... e eu vim. Ficaram... para que eu pudesse vir.
Só agora compreendo o que muitos não querem ver. Só agora sinto a tua abnegação, ó soldado humilde português que no Ultramar labutas para que outros, longe do troar das armas, vivam a paz doce de seus lares. E tu, heróico, esforçado, insensível à dor e à tristeza, não pedes sequer um agradecimento... uma única palavra... nada! Lutas sob a força do teu ideal – a Pátria, onde todos - em teu coração - têm laços de família. Lutas e morres também, ainda que o não penses, pelo teu Deus, que te criou. Longe... mas presente! Alegre... mas sofrendo! Afinal, rapazes que me acompanhastes, continuo a vosso lado.
Ouço também aquelas palavras dos pobres nativos de quem me fui despedir na hora da partida, e que circunstâncias determinadas pela rotação do dispositivo de forças não permitirão, talvez, voltar a vê-los. Ficaram tristes. Era para eles – disseram – “o nosso pai e o nosso mãe”... E eu ia deixá-los! Lembro a todos com saudade, e jamais deixarei de ouvir essa exclamação, autêntico grito de chamada missionária. Recordo, ainda, aquela última frase de uma simples mulher do povo, mãe de duas ternas crianças, e amparando mais uma de tenra idade, cujos pais na mata ficaram: -“ Goze muito boa viagem, nosso! ...”
Angola já tinha ficado lá muito para atrás... O avião rasgava as alturas do céu... à procura do seu destino. Mas, Angola continuava a acompanhar-me nas entranhas da alma... Continuava! Vinha comigo! Talvez por isso achasse fria de mais a temperatura dos ares de Lisboa.
Obrigado, ó Deus, por me trazeres de volta ao lar... Mas a missão não está totalmente cumprida. Tenho de voltar. Ajuda-me a beber o licor tonificante destas férias, e leva-me depois, de retorno, ao meu lugar, nesse solo martirizado de Angola, com maior força e coragem para vencer.
Angola - Abril de 1964

terça-feira, 21 de julho de 2009

Para que da Memória se faça História

Apontamentos de um soldado em África - 12
A Ti, Mãe Imaculada!
Naquele dia cinzento, a morte desferiu o seu terrível golpe. O terror desta guerra traiçoeira e cruel ria-se perante aqueles corpos despedaçados entre gritos o ranger de dentes.
Dia tremendo! Dia inolvidável na mente o no coração de quem passou por cima dessa morte sem que ela lhe fechasse as suas garras dilacerantes, para as unir ferozmente instantes depois. Mãe! Prometi não escrever essa tragédia, cópia de muitas outras que esta guerra traz ao palco do seu teatro... Mas deixa que lembre apenas esse momento impressionante e abalador que me fez trazer até aqui a Tua Imagem.
Éramos poucos. Tu sabes que bastavam algumas rajadas inimigas para que o luto mais caísse sobre nós. Urgia trabalhar eficazmente, para que a desgraça maior não fosse. Perante aquele doloroso espectáculo, a Ti se dirigiu uma invocação, naquele próprio campo de luta tingido pelo sangue. E como se fez sentir tão manifestamente o Teu auxílio! ... Quis Deus levar três dos nossos ... mas se Tu, Mãe, não estivesses connosco, ali ficaríamos, talvez, todos para sempre. E aos que partiram do nosso convívio, não deixarás de oferecer alívio para as suas almas. Naquela hora, fiz voto de realizar o pensamento que já vinha alimentando há tempo: trazer para esta terra, outrora densamente povoada, e agora só, a imagem do Teu Coração Imaculado. E aqui ficarás, então, Mãe, sem medo do terrorismo sanguinário, mostrando o Teu Coração irradiando Amor, de braços prontos a acariciar ternamente os Teus filhos arrependidos. Aqui ficarás, a abençoar a terra que tem sido campo de lutas..., teatro de ódios e de vinganças. E a Tua benção passará os montes, entrará suavemente nas matas, em melodia inebriante, e há-de tocar aquelas almas enganadas pelas ideologias falsas que ora assolam a mundo.
0 Comunismo espalhará os seus erros... Muitas nações serão aniquiladas” – anunciaste, em Fátima.
E isto se cumpriu, porque fechámos os ouvidos aos Teus pedidos de penitência; porque não quisemos orar; porque continuámos a nossa vida de comodismo e de pecado! Oh, Mãe! E ainda hoje pecamos; ainda hoje nos custa orar; ainda hoje não nos penitenciamos !... Mas, aceitai as vidas aqui sacrificadas, os sofrimentos que nos flagelam, as orações dos que ainda se lembram de Ti e de Teu Filho!
As horas que passam são horríveis. De toda a parte, notícias nos chegam que deixam conhecer a loucura do mundo, cada vez mais devastadora e cruel. Os povos lutam contra si mesmos... Há chacinas aos milhares... Matam os missionários e arrasam as missões. A humanidade parece mergulhar nas trevas por vontade própria!... Morte! Crime! Pecado! Contudo, ainda se continua a proclamar, paradoxalmente, que essa luta destruidora há-de trazer Progresso e Ordem; que esses horrores hão-de virar em Felicidade; que essa morte será fonte de Vida futura! Os povos esqueceram Deus... Não! Repudiaram-n’O!... Ao Amor, contrapuseram o ódio, no seu mais elevado e requintado grau. E há tantos que não querem compreender o que tão claro se mostra à consciência dos homens!...
Desordem no Mundo... porque ninguém quer pôr em ordem, primeiro, a sua consciência, a sua alma. E haverá sempre luta, sangue e desoladora destruição, enquanto cada um projectar para o ambiente em que vive as calamidades do seu interior, a luta do seu próprio ser com a vida desregrada que leva, as consequências dos seus pecados!...
Fica nesta terra a Tua Imagem... E ficarás com ela Tu, para sempre. Ordena para o bem a alma e o coração destes que ficarão também a ser Teus filhos... e que agora se escondem à procura do momento oportuno para desferirem os seus golpes mortais. Demove-os do crime, para a caridade; da vingança, para o perdão; da luta, para a paz. Lança através dos montes e dos vales a Tua bênção cheia de ternura, e faz com que todos nós, portugueses, brancos, pretos e mestiços, sejamos fiéis a Teu Filho – Cristo, Redentor!
Mãe!
Aqui ficarás, solícita, para que sob a força do Teu sorriso maternal, também aqui, neste cantinho de Angola, terra da minha Pátria, como em todo o mundo, o TEU IMACULADO CORAÇÃO TRIUNFE, FINALMENTE!
Beça Monteiro - Angola, Março 1964

sábado, 18 de julho de 2009

Para que da Memória se faça História

Apontamentos de um soldado em África - 11
Aos jovens
Chegou o princípio de outro mês... É altura de mandar para “Missões e Missionários” mais um destes apontamentos singelos que me comprometi a enviar para que fosse sempre mantido o contacto do nosso espírito – daqueles que se viram transportados para novas paragens, atrás de um chamamento aflito da sua amada Pátria.
Passeando, pensava, há bocadinho, na matéria que, desta vez, poderia constituir a nossa conversa. Tanto há que se podia trazer para aqui!... Horas boas... e horas más. Alegrias e dores; esperanças e desilusões; glórias... e tragédias! A guerra tem de tudo... É como um teatro imenso, onde o mundo representa ao vivo as suas peças mais variadas.
Pensava... E, não sei porquê, veio-me à mente aquela juventude que se prepara para vir até cá, a continuar a obra que outros começaram há centenas de anos; a consolidar mais e mais o sagrado nome de Portugal.
Pensei na juventude... e senti um calafrio de tristeza!... É que, na minha consciência, ao lado daquelas almas irrepreensíveis; daqueles caracteres lusitanos prontos a honrarem os seus maiores e a defenderem os lares dos seus semelhantes; daqueles corações caridosos, seguidores de Cristo, ansiosos de realizarem em toda a plenitude a vocação da terra que os tomou por filhos... apresentou-se-me essa juventude que, pejorativamente, chamam de «juventude moderna»... Esses rapazes (e raparigas) que precocemente se desligam da autoridade paterna... Esses jovens que se habituaram a olhar o mundo só pelo prisma do presente e a vê-lo segundo as suas leviandades! Muitos virão às terras de África, porque a Pátria o vai ordenar... Porque lhes vai exigir a sua parte na construção desta obra que os anteriores nos legaram e que temos de deixar incólume e mais desenvolvida aos vindouros. E estarão eles à altura de cumprir?...
Não há muito, disse o Professor Adriano Moreira: « ... do que não podemos ser perdoados, é de que a juventude que foi confiada à escola não esteja preparada para aceitar com dignidade, com coragem e com portuguesismo os desafios que o destino reservar à Nação Portuguesa».
E a preparação da juventude, para ser genuinamente portuguesa, não pode deixar de ser profundamente cristã. A acção de Portugal no mundo é uma acção missionária. Só consolidaremos o Portugal multirracial, se nos alicerces conservarmos as pedras basilares dos princípios cristãos. De resto, não estamos nós a ser campo de luta entre forças adversas, porque queremos continuar fiéis ao Portugal de Henrique e de Nun'Álvares?...
Senti tristeza ...
Porque vi alguns jovens iludidos e levianos malbaratarem essas energias que a Pátria lhes vai pedir... Porque vi uns tantos rirem-se de Cristo e de seus ministros... Porque os senti mal preparados para esta obra tão delicada e difícil! Alguns serão, chefes, terão homens a seu cargo... e arrastarão outros atrás de si! Cegos a guiarem outros cegos!...
Compete à escola, sim, formar a juventude que vem ao Ultramar. Mas pede-se urgentemente e com gravidade à Família que eduque e vigie os seus filhos, aqueles a quem a Nação há-de ser entregue nos tempos próximos. Seria para nós um grande desastre, se a juventude que embarca para África fosse aquela que desgastou o corpo e a alma pelos salões de baile, nos macabros «twists»; aquela que passou as horas livres extasiando-se perante artes imorais e lascivas; aquela que se habituou a postergar a honra e o valor supremo dos que já caíram na luta!
Admiro neste momento um quadro real de impressionante beleza e simbolismo: através da janela, veja projectada no céu azul a gloriosa Bandeira das quinas. Ao longe, por detrás dos montes Vucussos, inóspitos e escalvados, a imensa e perigosa mata Sanga espreita com a morte escondida na sua vegetação frondosa, mas traiçoeira. Há lá famílias subjugadas que temem a tropa, sob a pressão do terrorismo cruel dos bandoleiros, vivendo assim num dilema sufocante. É preciso ir buscá-las e mostrar-lhes a verdade... Mas a Verdade que o Senhor, há muitos anos, proclamou na Palestina, e que Portugal aceitou como obrigação de levar às almas que a História lhe confiou.
A Bandeira, flutuando ao vento e projectando-se no horizonte sinistro, parece querer dizer que Portugal vencerá, por fim. Mas, nunca vencerá, se o braço do soldado já vier cansado... Se a sua alma já vier empedernida pelo pecado... Se o seu coração já vier mergulhado no veneno que tem derrubado o mundo!
Angola – Fevereiro, 1964

quinta-feira, 30 de abril de 2009

Para que da Memória se faça História

Apontamentos de um soldado em África - 10
Almas brancas de gente negra
O negro de África constitui, para aqueles que pela primeira vez contactam com a sua vida e a sua maneira de ser, um autêntico mistério, cuja curiosidade em desvendar se torna motivo de grande interesse. Já algumas vezes tive aqui oportunidade de referir alguns aspectos do comportamento dos nossos irmãos negros, mas não será demais voltar ao mesmo assunto e alargar um pouco o panorama em observação.
Há quem olhe para os povos africanos, para aqueles que ainda não assimilaram em profundidade a cultura do nossa civilização, vendo neles o protótipo do homem primitivo... Surgem, por outro lado, opiniões que se afastam um bocadinho desta linha de pensamento, vendo nessa gente, não um tipo primitivo, mas uma cultura diferente, dentro dos limites naturais do seu desenvolvimento, para o que a palavra “primitivo”, adquire um sentido mais remoto e diverso.
Não importa quedarmo-nos nesta discussão, mas talvez não seja descabido apontar o facto seguinte: muitos que vêm para África julgam, infelizmente o temos de confessar, ver no preto o tal primitivo... e, o que é de muito lamentar, estendem o seu conceito para além da capacidade técnica, instrumental do nativo, para situar na sua própria alma uma espécie de insuficiência espiritual, que o impede de se aproximar dos nossos ideais, das nossas maneiras de sentir, justificando, ao mesmo tempo, para com ele, um tratamento diferente, às vezes aviltante.
Assim, tenho assistido já, terrivelmente embaraçado por tal, a ditos tendenciosos, por parte de brancos a negros, que nascem de um falso complexo de superioridade rácica... quando, afinal - e com facilidade isso se deduz de um pouco de experiência no meio - a mentalidade desses brancos é manifestamente inferior à dos negros!... É que a falta de preparação para a missão social tão delicada e espinhosa como a que ora nos chama, pode levar a julgar o negro como um ente que só tem a receber e nada a dar... Erradamente, aceitamos a ideia de que tudo o que o branco fizer, o preto tem de aprovar, porque para ele isso só pode servir de bem... Não penetramos suficientemente no seu íntimo, e, por isso, nem sequer procuramos saber o que ele pode pensar. Deste modo, não o compreendemos, e atingimos insucesso quando lhe pretendemos impor um determinado “status”, sem olhar para aquilo que sempre constituiu para ele a maneira normal e certa de existir.
Na verdade, o nativo olha para nós com os mesmos olhos com que olhamos nós para ele, com o mesmo espírito observador e crítico. Ele julga os nossos actos pelos padrões que possui e, mesmo que o não faça exteriormente, no seu íntimo aprecia-nos com admiração, ou lamenta-nos com indiferença. E, então, se nós mesmos entramos em contradição perante ele... Se lhe dizemos que isto é assim e se faz desta maneira, e procedermos de outro modo... Mais valera não começar! Quando em certa ocasião disseram a uma indígena que tinha de ir à escola para aprender a ler e a escrever, ela respondeu, simplesmente, que também havia muito branco que não sabia ler...
A justiça é para os africanos uma coisa sagrada, que sentem de modo apurado. E nós temos de nos mostrar absolutamente à altura de os servir neste aspecto. Se nos caçam uma falta, nunca a esquecem, e ficam bastante chocados... Tanto mais, quanto, pelos seus próprios meios, menos possibilidades têm de colocar as coisas nos seus devidos lugares.
Outro dia, um rapaz, tocou na buzina de um carro. Chamei-o e admoestei-o. O rapaz ficou atrapalhado... mas mais atrapalhado fiquei eu, quando um outro, do mesmo grupo, se adiantou até mim, dizendo-me abertamente: “- Eu também toquei”!... Fiquei sem saber o que fazer: se ralhar, se calar-me. Em voz mais branda, fiz-lhes, então, compreender o mal praticado, e aconselhei-os a não repetirem a acção.
De outra vez, prometi qualquer coisa - que agora não lembro o quê – aos miúdos da escola. Não cumpri tão depressa como seria para desejar, e então um deles me disse na primeira oportunidade: “ - Tu mentiste”!... Vários casos poderíamos aqui apontar comprovativos de que a alma negra pensa e sente como a nossa, e tem bem arreigados os sentimentos de pudor, de respeito, de gratidão, de amor, enfim, aqueles tesouros que alguns pensam ser apenas apanágio da gente branca.
Fui um dia fazer umas compras a uma aldeia. Anteriormente, já lá tinha ido com um capelão militar, e este mostrou-me um pequerrucho de quem era padrinho de baptismo. Desta última vez, perguntei ao soba pelo rapazito, e dentro em pouco apareceu a mãe trazendo-o ao colo. Ali mantivemos por momentos agradável conversa. Quando me preparava para vir embora, fui informado de que a mulher queria oferecer-me alguma coisa... Esperei, e ela apareceu com... um pequeno molho de tenras couves!... Quis pagar-lhe, mas não aceitou dinheiro. E fiquei a pensar naquele gesto... e rio valor que ele teria no coração daquela pobre mulher, expressando desse modo a sua gratidão!
Vi, noutra ocasião, um cabo Sipaio dizer para uma mulher ainda nova: “ - Até logo, mãe»! Admirado, perguntei ao preto por que chamava mãe àquela mulher, uma vez que ele não podia ser filho dela. Explicou-me que era uma forma de prestar respeito... Ela era uma mulher; por isso podia ser uma mãe!... Semelhantemente, ouvi, em outra ocasião, uma mulher chamar sogro a um homem já de certa idade, e ao qual nenhum laço familiar a unia. Compreendi, então, quanto eles respeitam a pessoa humana! Quando conversam, sempre se tratam por “você”, e gostam imensamente de apertar a mão, em cumprimento, quando se encontram na rua. Atitudes que envergonhariam certa gente chamada civilizada.
Perscrutando o íntimo destes nossos irmãos, nós encontramos na sua alma uma riqueza imensa. Riqueza que muitos desconhecem... Que nós próprios contaminamos, por vezes, com os nossos defeitos e os nosso vícios... Riqueza que falsas ideologias políticas e materialistas pretendem avassalar em nova “escravatura”, sob as ondas da revolta universal.
Saibamos nós, portugueses, cientes da nossa missão humana e cristã, realizar aquilo que Deus nos pede e a Pátria exige, orientando à luz da Verdade a alma destes nossos irmãos de África.
Angola - Janeiro 1964

Para que da Memória se faça História

Apontamentos de um soldado em África - 9
Para Além das Armas
Contemplo aquele pequenito ali a brincar... Traquina, de sorriso franco, aberto... Parece que vai a cair em desequilíbrio na magreza das suas pernitas negras, mas, saltitando, consegue suster-se...
Quando veio, gritava aterrado de medo, ao ser observado pelo médico. Parecia um bicho-do-mato... O mesmo acontecia às outras duas criancitas, mais ou menos da mesma idade, que esta família trouxe. Mas, agora, a sua memória esqueceu os conflitos emocionais que abalaram a sua alma pura e inocente. Já não foge, aterrorizado... Antes, corre atrás de nós às gargalhadas e, por vezes, até, desata em choro por largar os soldados, quando a irmã o vem buscar para junto dos seus.
Ao demorar o meu olhar sobre esta criança, desenha-se-me no espírito uma interrogação inquietante... Interrogação que transponho para além do tempo, como que auscultando na penumbra do futuro terríveis dramas pessoais, silenciosos, mas cruéis.
O mundo soube das tragédias que o terrorismo espalhou pelo norte de Angola... Soube e sentiu o abalo forte causado por tão macabros acontecimentos. A rápida decisão do Governo em utilizar prontamente as Forças Armadas obstou a que as consequências fossem ainda mais desastrosas.
O cair da noite trazia para Luanda horas de amargura e desassossego. Nos musseques, a população pervertida batia com paus e soltava clamores ameaçadores, prenunciando uma arremetida ao centro da cidade. Alguns civis saíram para a rua, de armas na mão, mas insuficientes para barrar uma avalanche da multidão endemoninhada.
As forças da ordem chegaram ainda a tempo, e pouco a pouco se foram recuperando as terras calcinadas pelo calor do ódio. Quase três anos passaram... Muitos esqueceram já o barulho feito pela revolta... Esqueceram aqueles que felizmente não sofreram de perto as feridas abertas pelos golpes traiçoeiros, mas não o podem esquecer nunca aqueles que viram seus lares em derrocada e mortos os seus mais queridos parentes. Não o podem esquecer aquelas famílias que vivem ainda sob a pata do inimigo... e, por conseguinte, nunca poderão esquecer essas horas cruéis aqueles que receberam sobre os ombros a espinhosa mas nobilíssima tarefa de combater esse terrorismo que tudo destrói e torna a vida fardo impossível de suportar.
Olho esta criança... e outra... e outras... e penso naquelas que não posso ver mas que notícias trazem ao meu conhecimento... e também nas outras tantas que não escapam à observação das estatísticas. Olho, e vejo o seu sorriso inocente a perder a graça, a sua face a entristecer, o seu olhar, mais penetrante, a situar-se para além do horizonte... para quando a sua inteligência, mais desenvolvida, começar a compreender a dura realidade que envolve a sua existência! “Havia algumas noites – contava-nos, outro dia, um pacato nativo - que homens vinham às casas e induziam em segredo as famílias a fugiram para a mata. Comigo, nunca falaram, porque tinham medo que eu dissesse na Administração, onde exercia a profissão de cozinheiro. Então, um dia, deu-se a «confusão»”.
Os povos fugiram para as matas, a habitarem locais antigos, instigados e coagidos por elementos subversivos que obedeciam a planos cuidadosamente preparados. Aqueles que quiseram ser fiéis à sua vida ordeira sofreram as terríveis consequências da onda de crimes e destruições movimentada pelos terroristas. Na ocasião da fuga, os que não estavam em casa ficaram para trás... Muitas pessoas se desgarraram de suas famílias... Muitas crianças ficaram abandonadas! Tenho na minha frente uma edição da “Cáritas” que refere um apelo levantado pelo governador do distrito do Uíge a chamar a atenção para milhares de crianças pretas abandonadas e em perigo de perecerem.
Aqui na escola há uma dezena de rapazes e duas rapariguinhas ternas e despreocupadas. Alguns destes pequenos vivem em casa de comerciantes brancos, porque não têm família. Se lhes perguntamos pelos pais... a resposta é triste, e, de olhos no chão, apenas dizem: “- Foi no capim...”. A menina mais velha, com doze anos, foi recuperada há alguns meses na mata pelas nossas tropas. Lá perdeu, ao que parece, a mãe e um irmãozinho... num drama pungente.
Alguns povos se têm apresentado, noutras regiões, conseguindo quebrar os grilhões que os prendem aos malfeitores. Nesta zona em que estamos, a pressão do inimigo é forte... Os guerrilheiros, aquartelados mais no interior das matas, em pontos de difícil penetração ou nas cavernas dos penhascos mais agressivos, servem-se da gente indefesa como fonte de manutenção vital. Em sítios próprios, obrigam-nos a cultivar hortas e a proceder ao abastecimento dos bandos escondidos. Para mais facilmente os reterem, geram sobre eles um clima de duplo terror: eliminam, por um lado, aqueles que tentam regressar às suas antigas sanzalas, e, por outro, induzem-lhes a convicção de que a tropa matará todo o preto que encontrar na mata, e nesse objectivo exploram todos os motivos aproveitáveis. Deste modo, é fácil compreender porque mesmo mulheres e crianças fogem como gazelas perante a aproximação da tropa, quando esta, em qualquer batida, atinge zonas habitadas.
Quando uma patrulha nossa conseguiu, há cerca de um mês, recuperar a família que agora aqui vive sem temores, com assistência, e ganhando já dinheiro por serviços prestados, uma mulher indicou a outra, do mesmo grupo, que lhes iriam cortar o pescoço... Um homem já de certa idade, o chefe da família, perguntava a medo quando lhe iam dar o tiro... Tal era, pois, o terror que amedrontava o seu espírito.
Com esta gente, veio esse rapazito engraçado, que nos cativa e comove com um simples sorriso... Seu pai morreu no mato, em consequência de doenças ocasionadas pela alimentação deficiente, que mais difícil torna a vida desses povos refugiados. A mãe fugiu com outros nativos mata adentro, na altura em que as nossas forças chegavam. A memória dos seus três anitos é leve demais para reter factos tão tristes... Mas um dia, voltará ainda a sentir o drama da sua vida... como tantos outros... no silêncio da sua consciência já mais aberta à compreensão do que o rodeia!
Numa noite trágica de ódios recalcados e de ambições desmedidas, desabou sobre as terras de Angola uma tempestade sangrenta de rancor e de crueldade...
Mas também numa noite fria, há muitos anos, uma nova Luz rasgou a noite dos tempos, o negrume dos céus da humanidade perdida, e um clamor magnífico, suave, ecoou sobre o mundo... Era uma mensagem de Paz! Uma mensagem de Amor para todos homens!...
Neste NATAL, de 1963... lembrai junto a Jesus, no Presépio, estas almas despedaçadas que sofreram, sofrem... e ainda hão-de sofrer por muitos dias e anos as consequências desse cataclismo cruento que dilacerou a nossa Pátria!... Lembrai também os soldados, que lutam nesta guerra por uma esperança de paz!... E por que havemos de esquecer, também, os próprios que nos combatem... aqueles que foram pervertidos?!...
Possa a LUZ dessa noite santa inundar todos os povos, para que todas as almas encontrem esse caminho de AMOR e de VERDADE que há dois mil anos se abriu sobre Belém!
Angola - Dezembro 1963

terça-feira, 21 de abril de 2009

Para que da Memória se faça História

Apontamentos de um soldado em África 8
O laicado católico nas missões africanas
Talvez nunca o pensamento da nossa gente fosse tão dirigido para os problemas missionários como nos momentos actuais. As questões que nesta época conturbam o mundo vieram abrir os olhos àqueles que ainda não tinham deixado empedernir de todo o seu coração. As necessidades prementes de muitos homens, mulheres e crianças, necessidades vitais, de sobrevivência, a contrastar com a vida faustosa de muitos, em outros pontos distantes, levantaram um brado suplicante à caridade dos povos. E, perante a desesperada situação dos fracos, os abastados e os remediados, ao fim e ao cabo todos os que podem, têm de compreender que a hora exige que se dêem as mãos para uma ajuda fraternal, para um esforço abnegado que salve a comunidade humana da desintegração no ódio, que a impeça de mergulhar no turbilhão da desordem. Aos cristãos conscientes da suprema importância da sua missão no mundo, que culmina numa elevação última das almas a Deus Eterno, a premência da chamada é ainda maior, visto que, num derradeiro propósito de salvação material, a humanidade pode ser habilmente conduzida a escolher o caminho do caos e da perdição.
O problema presente faz-se sentir agudamente em África, onde, como noutras partes da terra, o vírus da revolta já se alojou nos corpos e nas almas. Em face do progresso vertiginoso, e nem sempre correndo na linha do bem comum, experimentado pelas nações de outros continentes, os povos africanos, a quem a técnica levou de repente o contacto com o resto do mundo, instigados por mentes ardilosas e interesseiras, ou dando expansivo a recalcamentos múltiplos (que, infelizmente, se fundamentam em alguns casos práticos), pretendem tomar a todo o transe uma posição destacada na conjuntura mundial. E os meios e as oportunidades escolhidos para tal fim nem sempre são os mais ortodoxos (criando certos embaraços no contexto social).
A Igreja, interpretando com luz claríssima esta amargura da humanidade, oportuna como sempre e mais incisiva do que ninguém, transmite à cristandade sábios ensinamentos e convites frequentes, a fim de que todas as inteligências e todos os corações possam formar um exército que irradie verdade e amor para a luta que ora se trava no mundo.
Já foi tempo em que a religião era considerada como acessório da vida e função exclusiva dos padres e das freiras. Valores primorosos se levantam hoje no seio da Comunidade Cristã, numa fecunda união de clérigos e leigos, para a santificação cada vez mais frutuosa da vida sobre a terra. Dirigida a um Fim Supremo, ela tem de ser impregnada, no seu processo, do perfume que emana desse Fim. Em todas as actividades humanas existe um cunho de espiritualidade, uma presença efectiva de Deus. Desta forma, o laicado católico não pode subtrair-se ao serviço que lhe exige o Senhor da vida, quer nas operações mais comuns do trabalho diário, quer na participação real na actividade militante da Igreja, como na glorificação a Deus no papel que lhe reserva a Liturgia.
Missionar, então, não pode ser visto hoje como o poderia ter sido outrora por olhos menos abertos. Não se resume apenas na ministração de ensinamentos catequéticos... Não se pode confundir com uma acção de simples proselitismo religioso. Missão, para nós, católicos, comporta um sentido mais largo e mais profundo... É dar civilização - Civilização Cristã! É levar Cristo à vida das almas e as almas a Cristo através da vida. E para esta obra grandiosa, o leigo tem de marchar ao lado do padre; a técnica e a assistência social têm de formar um todo operante, transformador, com a função religiosa. Cristo tem de viver nas almas e nos corpos; na igreja, na escola, no lar, na rua e no trabalho; na saúde e na doença; na alegria e na tristeza.
Ide !...
Este imperativo, ao mesmo tempo tremendo e sublime, dirige-se a todos os corações e obriga todas as consciências. A Voz do Vaticano II é bem a interpretação desta chamada geral a que urge obedecer. Foi-me contado, há algum tempo, que numa igreja de Luanda se apresentaram ao sacerdote dois recém-casados que pediam as bênçãos matrimoniais. Tratava-se, salvo erro, de um casal espanhol que se dirigia para uma cidade do sul de Angola, onde serviriam num hospital civil. Ele era médico; ela, se a memória não me atraiçoa, era enfermeira. Custa-me conceber que os seus propósitos fossem motivados por meras questões de interesse pessoal...
Iluminado por este quadro raiante do generosidade, surge-me no pensamento a terra que me roubou um pouco do coração, e através da qual a África me começou a desvendar alguns dos seus misteriosos e fascinantes segredos: Tomboco. Ali, vivem várias gentes, assistidas por uma missão católica da Congregação do Espírito Santo, a cujo trabalho o terrorismo veio trazer sérias dificuldades. Antes da “confusão” - nome que os nativos dão à revolta... - um grupo de religiosas ali espalhava também a sua benéfica influência. Rapazes e raparigas, homens e mulheres recebiam nas duas casas da Missão a formação cristã, a luz da vida civilizada, que ainda hoje se vê luzir na face daquele povo, mas à qual pretendem alguns negar a fonte, com frieza. E ao trazer novamente à memória essa terra e a sua gente, que, com saudade, por dever do cargo tivemos de deixar para trás, eu penso também nas múltiplas bênçãos que ali cairiam se um grupo de leigos bem formados e instruídos para tal fim ali permanecesse um certo tempo julgado óptimo, para, num trabalho de mãos dadas com a Missão Católica, assistirem e encaminharem na vida aqueles que para nós voltam a face comovente e suplicante! E Tomboco não é caso único... É apenas um exemplo !
Mas, se agora olharmos aqueles que vêm do outro lado... aqueles que deixam a mata, onde a vida constitui terrível pesadelo debaixo da pressão aterradora dos criminosos, então o nosso peito sangra perante a insistência da chamada à caridade das almas generosas.
Na II Semana Missionária, em Coimbra, depositavam-se amplas esperanças naqueles jovens que escolheram Deus... Que o Senhor sopre nas suas almas o alento vivificador capaz de impulsionar as vontades num movimento novo, assistido por quem de direito, que dê às nossas gentes rurais do Ultramar o caminho da prosperidade material e espiritual, contra a miséria fatal e a desordem ideológica a que levam as influências tendenciosas do exterior; que dê ao coração do nosso povo plurirracial a paz necessária à frutificação daquele Amor que Cristo glorificou no monte do Calvário. Todos podemos ser desse movimento; se não trabalhando de modo efectivo e actual, ao menos orando (menos?! ... ) para que tenhamos muitos e santos missionários, e para que os leigos saibam ocupar o seu lugar nas terras de missão.
Angola - Novembro -1963

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Para que da Memória se faça História

Apontamentos de um soldado em África - 7
A lição dos Nossos Mortos
Ao tempo em que escrevo estas palavras, discute-se na ONU o problema (problema!...) de Portugal em África. Grita-se, nesse Areópago internacional onde se respira confusão, ignorância e ódio, a palavra «Independência», pedra dura que muitos nos atiram, para que abandonemos os nossos territórios sagrados.
O soldado é apolítico, mas nunca será um insensível perante os berros da Política - no caso presente, da Política Internacional -, se eles ferem o que de mais profundo consolida o seu coração de militar - a Pátria. É para ela que ele existe, para o seu povo, para as suas tradições, para a sua história; é por ela que sofre os ardores da luta e enfrenta as garras do perigo; é por ela que morre, num holocausto generoso e heróico. E, muitas vezes, como na conjuntura que nos trouxe à terra africana, ele encontra, a complementarem-se no seu ideal, a Pátria e a Fé, o seu Povo e o seu Deus.
Independência!...
Este grito tendencioso não pode deixar de me trazer à mente a recordação de alguns camaradas caídos, há bem pouco tempo, no campo da honra, no cumprimento da sagrada missão. Ainda não vão longe os dias em que trabalhávamos lado a lado... Num momento, a guerra ceifou-os para sempre! A Pátria pediu-lhes o sacrifício supremo... E o seu exemplo pede-nos que sejamos fiéis, como eles o foram; que continuemos fazendo aquilo que eles já não podem lavar a cabo; que honremos a sua memória, o seu nome; que protejamos os seus lares, como eles quiseram guardar os nossos até à última gota do seu sangue!
Não! Os nossos mortos não nos deixam capitular perante as arremetidas estóicas e ambiciosas do inimigo. As vidas que partem clamam um Portugal uno e eterno, e seria traição horrenda não abrir a nossa alma ao seu brado, não prosseguir com redobrado vigor a defesa deste solo regado pela sangue de várias gerações.
Independência!... Para quem?!... De quê?!...
Portugal deu ao mundo novos mundos, ao mesmo tempo que arruinava na base o poderio dos que ameaçavam a Europa. Encontrou gente em estado selvagem, e à barbárie contrapôs a luz de uma civilização. Os ventos da História ... esses mesmos ventos que muitos pretendem agora fazer soprar de novo, levaram uma determinada delimitação geográfica aos territórios que possuímos. E à mistura de gentes, de raças, de culturas, de dialectos, de costumes e tradições, oferecemos uma unidade de civilização, sem destruirmos o que de seu era lícito manter. Demos uma Língua. para se comunicarem mais livremente, demos a nossa maneira de ser; demos a nossa Fé e a nossa história. Ensinámos o seu coração a sentir como o nosso; a amar no mesmo Amor, a querer na mesma vontade, a ansiar na mesma esperança. Fundiram-se as raças e as almas, em África, na Ásia e na Oceânia, e nestes continentes surgiram novos valores, rasgaram-se mais largos horizontes. Não usurpámos direitos, não acorrentámos nações. Libertámos gente do primitivismo, estendendo até ela o calor do nosso lar. Completámos uma Nação, demos uma Pátria ...; arranjámos mais irmãos. Aqueles que nos combatem não compreendem (não querem compreender...) que um metropolitano se sinta irmão do angolano, que o homem de Cabo Verde não seja um estranho diante do goês; que o moçambicano se ache no seu país, quando visita a Madeira, Açores, Guiné ou Timor. É, de facto, grandioso de mais para quem se habituou a largar ao sabor das conveniências; para quem se habituou a ser padrasto, em vez de pai; para quem se habituou a receber, em vez de dar!... É de facto grandioso de mais, para alguns, ver nas escolas, nas universidades, nos seminários, nas oficinas, nas fileiras do Exército... lado a lado labutando num ideal comum, os portugueses dos territórios geograficamente mais afastados; lado a lado, brancos, pretos, amarelos e mestiços. E como é belo ouvi-los falar a mesma língua, apreciá-los sentir do mesmo modo! Um português só se apercebe verdadeiramente da dimensão da sua nacionalidade, quando se vê em presença de um seu irmão de outro continente.
Não há, pois, um povo a pedir «Independência»! Há, sim, insurreição organizada de alguns, instigada por mentores ambiciosos, que pretendem avassalar o mundo através de uma nova ideologia; insurreição instigada por quem tenta a todo o custo destruir este nobre conceito de Pátria no coração dos homens; insurreição que estaria já extinta de todo, se não fossem as infiltrações de mercenários que não sentem pejo em ligar o crime ao seu modo de viver.
Defeitos?... Males?... Quem os não teve, e não continua a ter? Mas é isso um problema internacional? Quem se arroga a direito de entrar na casa do vizinho, sob pretexto de querer resolver os seus problemas familiares? As dificuldades do Ultramar Português apenas a nós dizem respeito, assim como as das outras nações somente a elas pertencem... E não são estas menores do que as nossas! Não há comunidade nenhuma que se possa vangloriar de não ter questões de que haja de se preocupar. Para enfrentar os problemas que nos aparecem, é a nós, portugueses, e a todos, que incumbe fazer esforços. Já há muito que são réprobos da Sociedade aqueles que colocam os seus interesses pessoais acima do bem comum.
Em vez de sairmos de África, agora, mais do que nunca, a ela nos temos de votar. Militares e civis, leigos e clérigos, técnicos e intelectuais, num viçoso florescimento de juventude espiritual, num enriquecimento cada vez mais largo e mais profundo da Raça Lusitana. O metropolitano não passará de um ente mesquinho e fechado, se não abarcar no seu ideal os valores que nascem nas terras de Além-mar, e o ultramarino não pode, sem se atraiçoar, desprezar o berço da sua nacionalidade. A vocação africana..., a vocação ultramarina, deve encontrar cada vez mais acolhedora morada no coração de todos os portugueses, especialmente agora, que o mundo se levanta contra nós.
Foi, por alguém, não há muito, levantada uma justificada pergunta: «Como serão os nossos jovens quando regressarem do Ultramar?». A resposta é de aguda delicadeza. Mas, se todos nos compenetrarmos das pesadas responsabilidades que nos incumbe suportar; se, nos diferentes campos da vida, soubermos conduzir os nossos actos no cumprimento fiel da missão que nos é confiada pelo momento histórico e pelas circunstâncias; se soubermos afirmar ao mundo que ainda somos portugueses e cristãos, não teremos que recear as consequências desta campanha que chamou a juventude fora do seu lar.
Incomparável mercê que a História te concede, ó Portugal, baluarte no Ocidente da civilização que a Europa parece deixar vacilar! Que o teu Povo se mostre ao nível dos teus desígnios sagrados, e ouça o clamor dos teus mortos a pedirem fidelidade ao seu exemplo!
Angola - Outubro de 1963

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

A Coragem de Viver

Já lá vão cerca de dois anos, vi, numa papelaria desta minha terra, exposto um livro que, pelo seu título, me chamou a atenção. Peguei nele, folheei-o, li algumas pequenas passagens, e fiquei logo impressionado pelo seu conteúdo. Adquiri-o, e li-o todo com ávido interesse.
Simplesmente impressionante! Coragem de viver!... Sem dúvida, mas também testemunho de muito amor e dedicação dos protagonistas... Familiar e profissional.
Uma menina que nasceu num parto difícil, e, por isso, ficou marcada com deficiências físicas, motoras, para toda a vida.
Uma família exemplar, com os progenitores a dedicarem-se, devotamente, a sua filha, para que ela conseguisse usufruir a melhor qualidade de vida, tanto no campo da saúde como no âmbito da sua educação e formação integral (felizmente, a criança não tinha ficado com sequelas nos seus dotes de inteligência). Um médico, que a cerca de duas centenas de quilómetros de distância, se empenhou totalmente a multiplicar os cuidados e a dilatar a esperança de um futuro promissor para a sua paciente. Exemplo de abnegação pessoal e de muita competência profissional e humana.
Depois... O dedo do Altíssimo a desenhar o percurso de tudo isto na vida atribulada da menina! Os acontecimentos «misteriosos» de que se serviu o Espírito, para guiar por mão sobrenatural os passos desta família! O lugar privilegiado onde se acendeu um farol de esperança, que veio iluminar o caminho a percorrer (capela da Senhora da Saúde, nos Carvalhos). Nada acontece por acaso, neste mundo. O que é preciso é estarmos atentos e disponíveis, para, no momento certo, reconhecer os sinais de Deus.
Não temos qualquer intuito publicitário na divulgação desta obra. Contudo, achamos que «A Coragem de Viver» é um autêntico Evangelho de vida, uma Boa Nova de salvação para todos os que desesperam dos seus dias mais ou menos dolorosos, mas sobretudo uma voz gritante contra aqueles que propagandeiam o aborto e a eutanásia como solução para a falta de coragem para viver e abraçar o sofrimento, que polarizado na Cruz de Jesus Cristo, é caminho de redenção e de felicidade eterna. Não se pode ler este livro, esta autobiografia, sem verter, de quando em vez, algumas lágrimas... É este, outro condão que o escrito possui – penetrar até ao íntimo mais profundo de nós mesmos e amolecer o nosso coração petrificado pelas nossas auto-suficiências, pelo nosso edonismo ávido de prazeres, pela nossa insensibilidade diante do sofrimento alheio.
Susana Santos... não é uma «deficiente»! Susana Santos é uma heróína, como heróis são os seus pais e o médico que a tem acompanhado no seu longo calvário de dor.
A Susana, uma jovem de 31 anos de idade, foi aluna da Escola Preparatória P. António Luís Moreira, e cursou a faculdade de economia da Universidade do Porto. Há dias, encontrei-a com seu pai, num supermercado desta nossa terra. Não pude resistir a manifestar-lhes a minha gratidão pelo seu testemunho de vida. E o facto de trazer hoje, a estas páginas, este apontamento, apenas se deve à vontade de lhe prestar pública homenagem, e de bradar bem alto a todos os que isto possam ler, nestes momentos de crise colectiva que atravessamos, que, apesar de tudo, a Vida tem um valor infinito que é preciso defender e preservar, e que, contra todos os seus detractores e contra os profetas da desesperança, importa nunca perder, como todas as Susanas deste Mundo, a «Coragem de Viver».

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

Para que da Memória se faça História

Apontamentos de um soldado em África 6
Forja de Portugueses
Trairia a minha própria consciência se, nestes apontamentos simples e despretensiosos, permitisse a lacuna formada pelo esquecimento do esforço heróico que, nos momentos que ora passam, a Juventude Portuguesa generosamente oferece à sua amada Pátria. E, para que isso não aconteça, a todos os jovens de Portugal dedico hoje as minhas palavras humildes, mesmo porque a tal intento me obriga a homenagem sincera que como português e como soldado devo prestar a todos, e principalmente àqueles que já caíram para que a Pátria mais se levante. Homenagem saudosa... para os que topei no mesmo caminho, e que agora só posso encontrar nas imagens... indeléveis... da memória. Que esta pequena meditação possa levar a todos, e àqueles que, não obstante o pesar dos anos, comportam alma de moços, um pouco dessa satisfação espiritual que brota do sentir vibrante e viçosa a alma de Portugal eterna no coração de seus filhos.
Ninguém desconhece, hoje, que estamos em guerra. Guerra de armas e de espíritos, guerra no espaço limitado do nosso território e no âmbito mundial das Assembleias de alto nível, guerra de sobrevivência de uma civilização. Ninguém desconhece, também, embora a mesma realidade seja recebida sob diversos ângulos, que capitular nesta batalha significaria encolher-se perante a afoiteza malévola do inimigo, e deixar-se envolver por um turbilhão de interesses contrapostos e devassos. E ninguém pode desconhecer ainda que esta é uma guerra de todos e terrível, onde o mais pacífico e afastado pode ser o mais acérrimo e próximo instigador; onde os inocentes têm, mais do que em outro qualquer conflito, insegura a sua própria integridade social e humana.
Guerra demoníaca, onde o ódio surge na sua mais acentuada manifestação, e onde, por isso mesmo, o AMOR é a mais eficiente e delicada arma de combate. Guerra fria e quente, que leva os homens a uma permanente desconfiança naquilo que os rodeia, e que obriga muitos, porque a desconhecem em profundidade, a combaterem-se a si próprios, iludidos pelas formas superficiais, e não vendo os resultados mais distantes consequentes dos seus actos. Guerra, enfim, que uns ganham e que outros, com idênticas intenções, podem conduzir a infelicidade da derrota. Foi esta a guerra que nos bateu à porta, como já outras nações visitara, e continua a ameaçar a mundo. Foi para esta guerra que os valores vitais da Nação se viram de um momento para o outro chamados a intervir.
Sob muitos aspectos podem ser consideradas as implicações de uma guerra nos diferentes campos da vida social e particular. E não é, pois, com desacerto que se fala das diferenças encontradas nos períodos de após guerra. Também nós poderíamos desenvolver um estudo neste campo, e inferir de um variado número de dados e pressupostos as consequências prováveis e reais da guerra em que lutamos. Umas seriam mais próximas, outras mais distantes; umas boas, outras más. Mas não foi com este fim que me propus escrever.
Interessa-me, antes, aqui, agarrar uma característica imediata, uma realidade palpável, que a situação presente veio, não descobrir, mas levantar perante nós próprios, afirmar ao própria mundo... que talvez desconfiasse das páginas históricas cantadas por Camões. A batalha que se abriu perante o povo português foi uma demanda ao valor da nossa Raça. E, sem demoras, mas com intrepidez, a resposta foi, desde o começo, decisiva, retumbante! O braço lusitano mostrou possuir ainda a mesma força antiga... e a alma, os mesmos sentimentos e a mesma fé. É por isso que eu chamo a esta guerra em que na África nos batemos (e em todo o mundo ... )
«Forja de Portugueses»!...
Desde a casa fina da cidade, à cabana sóbria do pastor serrano, nas províncias metropolitanas e nas terras ultramarinas, tal como no antanho, diante dos arrojados empreendimentos das descobertas, mães portuguesas deixaram cair pela face lágrimas de saudade. Ontem, as caravelas partiam com seus filhos buscando o resto de Portugal... Hoje, os navios continuam a sair barra fora, cortando as mesmas águas, traçando as mesmas derrotas, afirmando uno e forte, fiel e cristão, esse Portugal que os outros nos fizeram. O esforço empreendido nas horas do presente deixa escapar o mesmo perfume que emanava dos trabalhos do passado. É isso o que afirmamos ao mundo inteiro, e que vemos mais saliente na tarefa em que estamos empenhados. E, como naquele tempo.... havemos de vencer!
Forja de Portugueses!
Estes bravos rapazes adaptam-se a todas as circunstâncias, sofrem os sacrifícios e todas as dores, sentem agudos os espinhos da nostalgia, mas conservam o mesmo espírito heróico, a mesma vontade indestrutível, a mesma fé inabalável, o mesmo sorriso nos lábios, o mesmo coração generoso, a mesma alma de gigantes! Transmontanos, Beirões, Minhotos, Algarvios, Alentejanos, Madeirenses, Açoreanos, Caboverdeanos... da Guiné, de Angola.... enfim, de todo o canto de Portugal, aqui, todos sentem que são irmãos, filhos da mesma Pátria, lado a lado rindo e sofrendo... unidos lutando pelo mesmo ideal.
E não só estes! As cartas que recebemos dos rapazes que ainda estão na Metrópole, mas prestes a entrarem nas fileiras, confessam o seu entusiasmo, a sua doação, exprimem esse mesmo sentir dos que aqui já empunham armas para a defesa do solo sagrado. Na verdade, acendeu-se em África... uma forja de portugueses!
A juventude que aqui vem é temperada no fogo espiritual de uma Pátria que luta para continuar a senda histórica iniciada há séculos. É certo que o demónio e a fraqueza humana, aliados à agressividade e rusticidade das condições, a que se não pode fugir, tentam por todos os meios pervertê-la. E muitos serão os que sucumbem, e se afastam daquela linha de integridade que o bom cristão ambicionaria possuir. Mas, a esses, dai-lhes chefes dignos e mostrai-lhes bem clara a luz da verdade, e vereis que se levantam sem demora, para darem tudo o que de si a Pátria pedir. Forja de Portugueses!... Os que dela saírem hão-de envergonhar essa minoria que, buscando a ignomínia da vida fácil, apenas mais nela fazem do que construir castelos no ar, que se derrubam com o mais leve sopro de indiferença e desprezo. Valorosa Juventude! Em ti se realiza em glória PORTUGAL; em ti... que escolhes Deus para finalidade suprema dos teus sacrifícios! E vós.... os que partistes desta vida no decorrer da luta, segurai bem fundo, lá junto do Senhor do Universo, os alicerces da nossa Pátria amada!

Para que da Memória se faça História

Apontamentos de um soldado em África 5
Soldados de batina branca
Eram seis e meia da tarde, a passar, já. A noite, vencendo o receio do crepúsculo, começava a cobrir tudo em volta. A sineta daquela cruz tosca, feita de dois troncos de árvore, acabara de tocar as últimas badaladas. Ia começar a devoção do terço à Mãe Imaculada... o acto pleno de beleza e de singular conforto espiritual do Mês de Maria. No altar daquela capelinha tão simples e humilde, construída com ramos de palmeira, presidia a Rainha Santa Isabel, numa homenagem dos soldados de Coimbra. Duas Rainhas a velarem pela mesma Pátria amada!...
A oração começara, cheia de entusiasmo. Aos mistérios, elevam-se maviosos cânticos, que nos fazem sentir saudade e comoção. Saudade das mesmas cerimónias da terra natal – tão distante; comoção por aquele brotar de paz e louvor em terras que o ódio dilacerou e que olhos traiçoeiros vigiam.
O clamor daqueles soldados corria os ares. Talvez penetrasse por entre essas matas onde o perigo se esconde na frondosa vegetação... Talvez tocasse aqueles montes tão imponentes como inóspitos que avultam no horizonte! E se essa mensagem de amor conseguisse mover, no caminho, os corações dos que foram pervertidos... Se a solicitude da Mãe do Céu vencesse a dureza daquelas almas... Um dia, que Deus fará, elas ouvirão a Sua voz maternal... porque o Seu Coração há-de triunfar, finalmente!
- Eles já estão arrependidos - dizem os nativos que aqui vivem sossegadamente.- Eles passam mal, por lá. O preto não presta... O preto, na mata, apanha doença e morre – acrescentam. E tantos foram, na ilusão maligna!
De rica e densamente povoada, esta terra maravilhosa - este nosso novo poiso... - é hoje encontrada num abandono infecundo. E a devoção continuava, fremente, sincera, filial...
... Pelos soldados, que à guerra vão,
Senhora, escuta nossa oração!
Aproveitando o ensejo deste piedoso acto, queria hoje dedicar as minhas palavras a uma certa classe de soldados, às vezes esquecida entre os feitos barulhentos das armas bélicas. Esquecida, talvez porque as suas armas por de mais silenciosas para uma guerra de tiros, mas sumamente eficazes e oportunas para os que, mesmo nas lutas sangrentas, não deixam de sentir a necessidade de combater nas guerras da alma... De organizar a defesa contra a concupiscência feroz, contra o desespero aviltante, que nas horas de insegurança e desconforto armam perigosas ciladas ao espírito do homem.
Abnegados, voluntários no sacrifício, eles, esses soldados de batina branca - os bravos capelães militares -, deixaram tudo, ao chamamento da consciência, entregando-se com toda a sua alma ao serviço da Pátria, e por ela servem às almas e a Deus. Incompreendidos, por vezes, mal queridos, em tantas outras, eles sujeitaram-se a uma vida cheia de contrariedades e privações, tocando, em algumas ocasiões, o limiar da amargura… Apenas porque ouviram o brado aflitivo de tantas almas que foram tiradas ao afago terno do lar, que deixaram de ter presente a força espiritual da sua igreja, que viram ficar para trás o seu ambiente normal entre os amigos e as coisas queridas. Deixaram tudo, porque a Nação lhes pediu: - Vinde, que de vós preciso! -; porque o Senhor lhes disse, no seu foro íntimo: - A missão é nobre... Caminhai!
E ei-los por essa África escaldante a defender as almas dos heróicos militares, para que estes possam vencer as condições hostis a que o dever os trouxe, e empenhem todo o seu valor na luta contra o mal que o príncipe das trevas espalhou nesta terra de promissão... Para que eles encontrem, na hora derradeira - aqueles a quem Deus chamar no campo da honra - uma palavra de confiança, que lhes fortifique a fé, uma chama de amor que lhes traga o arrependimento submisso, e lhes abra, no perdão, as portas da Eternidade. Momentos inesquecíveis e gloriosos, esses que o padre vive - apesar de humanamente tristes - quando em seus braços entrega a alma a Deus, o soldado que perece no cumprimento do sagrado dever! Soldados de batina branca!...
Podeis vê-los no altar, celebrando o Santo Sacrifício antes das lutas; ouvindo as confidências dos rapazes; perdoando as suas misérias; de fato de combate, indistinguíveis entre os mais sujos e esforçados atiradores, penetrando nas matas e no capim, abraçados pelo perigo, mas confiando na Providência, para que os últimos sacramentos não faltem ao ferido de golpe mortal, ou mesmo ao inimigo, moribundo, arrependido.
Podeis vê-los, ainda, entre as populações pacíficas e laboriosas, acalentando, ensinando... missionando! Não são desconhecidas as obras de engrandecimento social que os capelães militares têm desenvolvido entre as populações nativas. Os jornais proclamam-nas sem rebuços.
Há tempos, numa patrulha de reconhecimento feita a um monte próximo, o capelão acompanhou-nos. De espingarda em punho - que pedira a um soldado para esse mesmo fim - ele tomou também a dianteira, a abrir caminho por entre o capim espesso que nos passava muito acima. Subiu, e cansou-se, como nós; comeu da mesma conserva; e foi até cuspido da viatura em que seguia, quando esta, num desnível de terreno, se voltou. No fim de tudo, apenas se preocupava com a hora de regresso, porque tinha ainda o breviário para rezar!... Inúmeros são os exemplos que eles dão nesta Angola, para uma verdadeira gesta; sem conta as vezes que, plena refrega, ouviram assobiar por sobre a cabeça as balas assassinas.
Bravos soldados da Paz, nesta guerra insidiosa que o mundo nos levanta traiçoeiramente! Gloriosa, a página que na História inseris! A Pátria vos agradecerá por todo o sempre, e serão fecundos os frutos que espalhais! Sempre vos ficará bem a farda do nosso valoroso Exército, e nas suas fileiras jamais destoará a alvura da vossa batina, onde se pode reflectir, sempre com fulgor, o verde rubro da nossa Bandeira!
O acto piedoso ia terminar. De frente para os seus rapazes, o padre capelão incutia-lhes no espírito um novo alento, através das suas palavras cheias de caridade. Mais um dia de trabalho chegara ao fim, e eles iam recolher à caserna, em busca do merecido descanso, com a alma mais tranquila, de coração entregue a Maria, Mãe de Deus.
A capelinha ficou vazia, mas naqueles montes distantes... ainda ecoavam os doces cantares do mês de Maio...
... Enquanto houver portugueses,
Tu serás o seu amor...
O seu amor!...

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Para que da Memória se faça História

Apontamentos de um soldado em África - 4
Maneiras de ser
A coluna havia partido, de Ambrizete, já tarde, rumo a Tomboco. A noite não se fez, por isso, rogada, e em pouco tempo tomou conta de todo o céu. Numa viatura à frente da minha, ia o homenzito que o Chefe de Posto pedira para transportar. Tratava-se de um doente que há tempos viera à vila, a tentar curar-se de uma tuberculose. Agora, alimentava o desejo de visitar a família... As instâncias do Chefe de Posto levaram-me a conceder a «boleia» àquele pobre homem. Do seu corpo quase só restavam os ossos e a pele, e era a custo que conseguia mover-se. Impressionou-me, quando o vi, mas conseguiu subir para o carro, e lá se acomodou entre os soldados.
A estrada, de terra batida e deficiente, fazia com que as viaturas sofressem uma contínua trepidação. Lembrei-me daquele doente; ainda pensei mudá-lo para o meu lugar, mas não levei em frente esse reflexo de consciência...
Andámos mais alguns quilómetros, e as viaturas pararam. Procurei o motivo: era o homenzito que entrava em agonia. Pobre preto! Senti uma pancada dura e contundente no meu coração; uma espécie de remorso quase a dilacerar-me a alma. Depois, vi que, afinal, o homem não vinha muito mal instalado. Os soldados haviam-lhe emprestado uns cobertores que lhe vinham a servir de assento. Mas não possuíra forças para muito viver. Ele próprio tivera dito momentos antes que iria morrer naquele dia... Interpretara perfeitamente a sua fraqueza física.
Estendido no chão, em plena noite e em sítio ermo da «picada», a sua alma tomava o caminho da Eternidade. Diante daquele corpo a dar as últimas da vida, senti-me embaraçado. Ele ia morrer sem uma palavra de conforto, sem um alento espiritual?... Debruçados sobre o homem, como que a tentar encontrar, para segurar, algum sopro vivificador, começávamos a sentir pesado o ambiente que nos cercava. Sentia uma tirana tensão na consciência... Era o primeiro caso que naquele género me aparecia pela frente!
De repente, o Chefe de Posto (antigo seminarista), que nos acompanhava na viagem, quebrou aquele estado de tensão psicológica. Levantou a dúvida sobre se o homem seria baptizado. Como ninguém tinha a certeza (mais tarde vim a saber que era pagão, embora trouxesse ao peito uma medalha de Nossa Senhora) resolveu administrar-lhe o baptismo, sob condição, na esperança de o homem se encontrar ainda com algum sopro de vida. Tomando um cantil, despejou um pouco de água sobre aquela negra cabeça, e proferiu as palavras da fórmula baptismal. Enviei a Deus uma curta oração por aquela alma que partia...
Importava prosseguir, e a coluna continuou a marcha, transportando, à mesma, aquele homem que, agora, não passava de cadáver. Não ia sentado como antes, mas estendido, hirto, com as mãos sobre o peito.
Cerca das vinte e três horas, chegámos à aldeia onde o defunto tinha gente de família. O Chefe de Posto, que viera mais adiantado à coluna, avisara o «povo» do acontecido. Quando lá chegámos, já todos esperavam aquele que não tinha conseguido aguentar o tempo suficiente para os visitar com vida. Parecia uma procissão de velas, tal o elevado número de pessoas que ali fora, com lanternas a iluminar o caminho.
Parámos. E quando se acercaram do defunto, algumas mulheres começaram a lançar ao ar gritos estranhos, e - os braços levantados - davam pequenos passos para a frente e para trás, numa espécie de dança que me deixava cheio de confusão e de espanto. Parecia-me que tudo aquilo era uma festa... Fiquei com a impressão de que causara alegria, a presença de tão tétrico facto. Vi, depois, que uma das mulheres, ao chegar-se junto de nós para ouvir contar como se tinham passado as coisas, trazia o rosto lavado em lágrimas. E, observando melhor, notei que em todas as faces se estampava, afinal, uma profunda tristeza. Estranha maneira de exprimir a dor! Ao fim e ao cabo, os seus sentimentos são bem arreigados e sólidos!
Se penetrarmos um pouco na vida desta gente, encontraremos muitos outros motivos que, a princípio, nos deixarão de certo modo perplexos, mas que logo compreenderemos, se tivermos um pouco de boa vontade e a sinceridade não for estranha ao nosso espírito.
Diante deste povo, deparamos com um modo de vida sui generis, que se impõe respeitar... Não podemos alimentar a utopia de substituir uma civilização por outra, mas antes proceder a uma natural e mútua assimilação das culturas, aceitando o que os africanos têm de si próprios, desde que essas realidades não colidam com os nossos princípios cristãos e patrióticos. Lentamente, eles deixarão então os hábitos que, em face da nossa maneira de ser, começam a encontrar obsoletos. Às vezes fazem-no até depressa de mais... E também nos choca ver que eles adoptam os nossos processos e as nossas coisas sem estarem devidamente preparados para elas. Mas isso demonstra o natural desejo que têm de se aproximarem dos nossos costumes, e, se aproveitarmos este fluxo da sua personalidade e lhe dermos uma orientação cuidadosa e inteligente, poderemos então ter a certeza de que fazemos civilização, trazendo até nós aqueles que através de muitos anos procurámos arrancar ao primitivismo.
Quer nos admiremos ante a esquisita dança fúnebre, ou achemos graça à criancita que a mãe transporta amarrada às costas, com a qual trabalha nas lavras que diariamente trata com esmero; quer encontremos primitivismo no facto de ver as mulheres fumarem o seu tabaco, e com a lume para dentro da boca... (à excepção deste particular, parece que na sociedade civilizada se pretende voltar a esse estádio da vida…), ou achemos atrasado, mas típico, o moer da mandioca num grande almofariz feito de tronco de árvore, não nos podemos esquecer que estes são os nossas irmãos portugueses do Ultramar. Mas há muitos que o esquecem... Talvez porque julgavam que no mundo não se vivia de outra maneira além daquela que estavam habituados a ver em redor da sua casa de pedra o cal, ou porque, então, receberam, com a luz da civilização que os envolve, a escuridão do mal o do pecado, que infelizmente grassa por toda a parte onde houver vida de gente.
Mas nós acreditamos na vocação lusitana, iniciada há muitos séculos, abençoada pelo Senhor a quem têm de obedecer os universos, confirmada pela Senhora branca de Fátima, e que, finalmente, a história há-de provar, contra as insídias do príncipe das trevas, que encontram bom acolhimento nos corações pouco avisados. Acreditamos!

Para que da Memória se faça História

Apontamentos de um soldado em África 3
A Escola
Se gloriosa, pela afirmação que faz ao mundo dos princípios fundamentais da nossa Civilização; se nobre, pelo seu carácter de abnegação caridosa a elevar as almas na Luz e na Verdade; se fecunda, pelo resultado profícuo da semente que se lança em terreno tão feraz, a missão daqueles que foram chamados ao Ultramar, nesta hora decisiva e pesada da vida nacional, é também extraordinariamente sedutora, inebriante.
O artífice sente-se transportado em personalidade para a obra que realiza; o lavrador bebe o licor da satisfação espiritual quando, sorridente, vê, passados tempos, a cultura brotar dos campos, numa produção de cem por cada grão deitado à terra. Aí está, bafejada pelo poder do Criador, a coroação do seu esforço, do suor do seu sacrifício.
Do mesmo modo, e mais profundo ainda, é o consolo que todos sentem na tarefa da educação, visto que então – aí, sim! – vemos, numa outra alma, transplantada a nossa própria espiritualidade.
Chamados, de repente, às misteriosas paragens africanas, a confusão e o êxtase são talvez as primeiras impressões que nos dominam. Confusos, porque se nos depara um vasto campo de trabalho, com problemas complexos e segredos múltiplos, carregado de características particularíssimas, que, em parte, ouvimos referir alguma vez, mas que, na verdade, desconhecíamos completamente. A África não se conta… apreende-se! É preciso vir cá para que se possa construir acerca dela uma ideia mais ou menos fiel. Podemos prepararmo-nos para isto, mas senti-lo… só aqui! E surpreende-nos também o êxtase, porque a beleza desse campo de trabalho é fantástica. Mãos à obra (se queremos atender à súplica que à nossa volta continuamente se levanta), logo sentimos que é reconfortante e atraente debruçarmo-nos sobre os problemas desta gente irmã, e dar-lhes tudo aquilo que o nosso coração não nega em capacidade.
Nesta luta que somos obrigados a travar, para que sejam preservados os valores cristãos e nacionais, contra as arremetidas do mundo tresloucado, não cumpre a missão aquele que apenas confia à espada a solução dos problemas. Mesmo que poucos, os conhecimentos possuídos sobre a natureza desta guerra (que é mundial!...), aquele que pisa solo ultramarino logo vê que muito mais lhe é pedido. E ai dele… e, por ele, ai de todos nós, se a sua formação espiritual não está à altura de responder à exigências que lhe são dirigidas; se a sua alma traz o vício em vez da virtude; se o seu coração já começou a ser corrupto! Fora melhor, então, que não viesse, porque levar-nos-á ao tribunal da História… E bem terríveis são os seus julgamentos!
Uma das tarefas que neste tão penoso, como glorioso, trabalho nos ocupam, é a instrução primária das crianças – crianças, nem todos, porque muitos dos nossos escolares são já adolescentes. É extraordinária a vontade de saber que manifestam, e bem aguda, a sua inteligência. Parece ainda que um perfume de poesia, de ternura, de suavidade lhes enche a alma. Gradualmente, com cuidado, vamos-lhes ministrando os ensinamentos, e as horas passadas são de perfeito enlevo. Pena é que o tempo de que dispomos e as condições que nos assistem não permitam uma maior dedicação a este objectivo, pois nestas almas e naquilo que lhes damos joga-se o futuro da Pátria.
Para frequentarem duas escolas que funcionam nesta zona, alguns alunos têm de andar seis a sete quilómetros desde a sua aldeia. Mas vêm, providos ou não de alguns alimentos de reserva – meia dúzia de amendoins, duas ou três bananas, água, e, outros, um pouco de cana de açúcar ou uma raiz de mandioca. E lá estão, todos os dias, de olhos brilhantes e arregalados, face risonha e inocente, dispostos a receber a nossa mensagem de… civilização.
De manhã, quando vamos a chegar, os pequenos que vivem nas sanzalas mais próximas da escola largam em frenética corrida, ao verem o jeep aparecer na curva da estrada. Um «bom dia», meio «abrasileirado», sai em coro daquelas boquitas a sorrir, e alguns vêm até nós apertar e beijar a mão respeitosamente.
Todas as manhãs, o catequista nativo, sob orientação da missão católica, vai ensinar à escola a doutrina cristã. Muitos são os que se preparam para se aproximarem pela primeira vez da sagrada Mesa eucarística. O Espírito de Deus e da Pátria habita ali entre aquelas paredes de adobes, sob um tecto de capim seco – construção singela que caracteriza sobremaneira as terras de missão. Na hora de recreio, os jogos da pequenada trazem até nós a lembrança da longínqua Metrópole. É que também aqui as crianças vibram com a «cabra-cega», o «ratinho», o «João barqueiro»… com toda essa trama de brincadeiras a que não podia deixar de pertencer – já se vê – o velho «futebol», onde os rapazes são verdadeiros artistas. Há, porém, na nossa acção (na zona em que me baseio para estas considerações) uma falta, uma lacuna difícil de preencher. É a ausência de uma mão feminina que toma a seu cuidado as meninas, dando-lhes aquilo que a sua personalidade particular e a vocação que lhes é própria tão prementemente imploram. Esperemos os dias que hão-de vir e o florescimento das generosidades que já não são estranhas aos corações das jovens metropolitanas.
Se, na escola, tentamos introduzir um cântico da terra mãe, é com sofreguidão que o recebem. Podem não perceber o sentido das palavras, e muitas das crianças não percebem mesmo (é nossa missão ensinar-lhes a Língua pátria), mas a cantiga não demora muito a sair, sonora e entusiástica, de sotaque tipicamente africano… mas português. E dá gosto vê-las, no fim da aula, cantar a plenos pulmões a Portuguesa, depois de uma Ave-Maria devotamente oferecida à Mãe do Céu!
Ensinei, outro dia, uma pequenina canção, que aprenderam sem dificuldade… E sinto a minha alma embalada, ao deixar a escola, quando uns para cada lado recolhem a seus «povos» a cantarolar, em reminiscência dos ensaios:
«Quando o sol nasce, lá na serra,
Toda a gente diz - «Bom dia!...»
Sim, Ele – o Sol da fraternidade cristã – há-de sempre brilhar lá no céu, subir bem alto e aquecer num só facho de luz esses pedaços de terra espalhados pelo mundo onde pulsa um só coração e vive uma mesma alma – o coração puro lusitano; a alma portuguesa devotada a Cristo Redentor!