sábado, 18 de dezembro de 2010

Natal 2010

Natal é Paz, Amor, Perdão.
Natal é Esperança num Mundo Melhor.
Natal é Vida que se abre em flor...
Natal é rasgar o peito pelo irmão.

...

Oh! Triste dor da Humanidade,
Que sofre em toda a parte ódios sem fim!...
Levantem-se os profetas de Israel,
Tragam Abraão, Moisés e Samuel,
P’ra anunciar de novo a Liberdade
Que um Menino traz num mundo assim...
Acorrentado ao prazer e à maldade.

...

Cantemos com os anjos nas alturas
Hinos de glória e de louvor!
Esqueçamos, todos nós, tantas agruras,
Pois vai nascer de novo o Redentor!

V.S. 2010

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Para que da Memória se faça História

Episódios do “Verão quente de 75” - III (*)
3. Segunda experiência na Serra do Pilar
Entretanto, a 12 de Setembro, há mudanças no Quartel-General. O Comando da Região é assumido pelo então Brigadeiro Pires Veloso. Também, na sequência, o oficial que comandava o RASP é chamado para assumir funções no QG. Na Serra do Pilar fica no comando outro oficial superior (major), com uma desgastante e dolorosa perspectiva no seu horizonte profissional e pessoal. Há situações, na vida de quem comanda, que exigem o máximo de doação, de acrisolado bom senso, e sentimentos de humanidade bem afinados. O novo comandante pertencia a uma geração desse tipo.
O CICAP (Centro de Instrução de Condução Auto do Porto), onde pontificavam alguns milicianos esquerdistas, encerra a 3 de Outubro, por ordem de Pires Veloso, que destina o complexo edificado à Saúde e ao Ensino.
Na noite de 6 para 7 de Outubro, o quartel da Serra é invadido por manifestantes, militares e civis, que se haviam dirigido ao CICAP com o fim de protestar contra o seu encerramento e, possivelmente, invadir e ocupar o quartel (é conhecido o “slogan” vociferado na altura: “O CICAP é do Povo, não é do Veloso!”).
Não conseguindo os seus intentos, face a uma guarnição já precavida, a turbamulta dirigiu-se, então, para a Serra do Pilar. Aqui, com a conivência de graduados de serviço afectos ao movimento contestatário, os manifestantes lograram transpor os portões do quartel, e aí “armaram tenda”. Qualquer reacção violenta que tivesse sido ordenada, após o facto consumado, para contrariar a “invasão”, teria provocado consequências dramáticas imprevisíveis – alguém haveria de desabafar mais tarde que o motivo que evitou o confronto foi, ponderadamente, evitar-se o derramamento de sangue; um simples fósforo aceso poderia, na conjuntura, desencadear uma guerra civil.
Seguiu-se uma situação de quase anarquia, a todos os títulos insustentável.
No dia 8 de Outubro, à noite, e após um comício no Porto, manifestantes do PPD decidem, por isso, dirigir-se, em peso, ao quartel da Serra do Pilar para aí se manifestarem contra a ocupação e, quem sabe, libertar a Unidade. Os ocupantes, porém, avisados deste intento, conseguem mobilizar toda a guarnição de praças e de civis, ocupantes e sitiantes, contra o que anunciam ser um ataque ao Quartel pelas forças de direita. Descem, então, até junto da ponte de Luís I, onde tentam barrar o caminho aos manifestantes, com o apoio de duas pesadas viaturas militares de combate que, para o efeito, a esse local fazem conduzir.
No mesmo cenário de intensa agitação, ao fundo da Av. da República, comparecem também forças militares a mando do Quartel-General, para manutenção da ordem e evitar a violência. Uma rádio transmite em directo o evento, e ouvem-se, na reportagem, os avisos feitos à multidão pelo comandante da força, tentando apaziguar os ânimos. Logo a seguir, são sonoros e nítidos alguns disparos de armas automáticas. No dia seguinte, a situação apresentava-se confusa.
No QG, pouco ou nada se sabia sobre o que, em pormenor, se passava intra-muros na Serra do Pilar. Os telefones estavam controlados. No interior do RASP, a vida normal da Unidade parecia ter parado. Os portões estavam fechados, e, fora, permaneciam montes de gente com ar ensonado, mas agressivo e vigilante. O rescaldo de uma madrugada de luta. Lá dentro, os ocupantes (militares revolucionários oriundos de outras unidades e civis) organizavam-se, e recebiam apoio logístico, vário, do exterior. Na parada, oficiais e sargentos da Unidade tentavam fazer o ponto da situação, e interrogavam-se sobre perspectivas de solução a tão nefasta como perigosa situação em que se viam envolvidos.
Esta situação rocambolesca durou alguns dias, até que, em 14 de Outubro, o então Chefe do Estado-Maior do Exército, General-graduado Carlos Fabião, visitou o RASP e dialogou com os cabecilhas. Propôs-lhes o abandono das instalações do Quartel, com o anúncio de que iria transformar o CICAP numa unidade militar de elite, a que daria o nome de “Batalhão 25 de Abril” .
Os invasores concordaram, e dispuseram-se a retirar… Com uma condição: voltariam passados 10 dias, a ver se as promessas eram cumpridas.
E voltaram!
Mas, como o povo diz: “Depois de casa roubada, trancas às portas”, este aforismo foi devidamente aplicado.
É que em 10 dias muita coisa tinha mudado.
A normalidade havia regressado ao quartel da Serra.
Um novo comandante assumira funções.
As tropas regressavam à disciplina e ao cumprimento dos seus deveres e tarefas.
4. Epílogo
As instalações do CICAP acabaram por ser de facto destinadas ao Ensino (Universidade) e à Saúde (Hospital).
E a “Revolução” foi, a seguir, mitigada com o “25 de Novembro”.
Pires Veloso, que viria a sofrer um “misterioso” acidente de helicóptero em Lavadores, adquirira merecido prestígio militar e político, a ponto de ser cognominado pelos formadores de opinião “o Vice-Rei do Norte”.
Jaime Neves, à frente dos seus “Comandos”, em digressão de treino e dissuasão, viria desfilar, em parada de continência, na Av. da Boavista, frente à janela do Hospital Militar de D. Pedro V, onde o sobrevivente e politraumatizado Brigadeiro sem medo acenava, comovido.
Tinha-se virado mais uma página da História de Portugal, e nela o Norte escrevera o significado da palavra liberdade – da autêntica Liberdade!
(*) – São omitidas nestes relatos referências nominais aos protagonistas dos acontecimentos evocados, quando não sejam do conhecimento universal.

Para que da Memória se faça História

Episódios do “Verão quente de 75” - II (*)
2. Primeira experiência na Serra do Pilar
No quartel do RASP (Regimento de Artilharia da Serra do Pilar), encontrei um ambiente ainda mais «revolucionário» do que no anterior GACA 3, de Espinho. Tudo já era diferente.
Comandava a Unidade um Major de Artilharia, homem experimentado, sensato, e de grande “tarimba” militar (hoje coronel, na sit. de reforma). Segundo soube, o seu antecessor (já falecido, no posto de coronel), não teria suportado a situação a que se tinha chegado, com a indisciplina grassante após o “25 de Abril”, havendo renunciado ao cargo. Estavam muito activas as ADU (Assembleias de Unidade), uma emanação da organização suvista (SUV - Soldados Unidos Vencerão) promovida em Agosto pela LCI – Liga Comunista Internacionalista. Faziam-se «plenários» amiúde. Era “dirigente” influente nesse «esquema» um oficial miliciano (Alferes), que tinha os seus assessores entre as praças. Uma espécie de «comissariado político».
O diálogo com os elementos revolucionariamente mais activos do Quartel tinha de ser permanente, pois, por dá cá aquela palha, sempre apresentavam questões a resolver, reivindicações de toda a ordem e feitio.
Nos frequentes “plenários”, eram factor de «desmobilização» intelectual as intervenções de um conhecido capitão da Unidade (hoje coronel na situação de reforma), homem com uma intrepidez imaginativa fora do vulgar, de espírito flamejante, e dotado de uma rica capacidade dialéctica. Também o próprio capelão militar, homem do Norte e de uma cultura filosófica afinada, ripostava à «maralha» marxista-leninista com argumentos adequados e imbatíveis. Lembro que, nas suas prelecções, chegou a versar temas sobre educação sexual, munindo-se do «Fritz Khan», talvez para, no âmbito da sua missão formativa, ocupar, de modo mais aliciante, o tempo gasto nas arengas de mentalização política, e desviar a mente da soldadesca para outras ideias menos agressivas. Importa referir que nem todo o pessoal das «assembleias» tocava música pela mesma partitura, mas, nessa conjuntura, a diferença exigia heroicidade, resultando daí uma espécie de sintonia geral forçada. Contudo, muitos tinham ideias próprias e não bebiam água pelas bicas de Moscovo ou de Pequim.
Recordo que, naquela altura, ao ouvir os «slogans» e as reivindicações dos revolucionários, eu dizia: «Fecho os olhos, e só vejo as “banjas” e as manifestações do PAIGCV», tais eram as cicatrizes que ainda marcavam o meu subconsciente, pela situação vivida, um ano atrás, em território da Guiné. Os problemas no exterior também davam que fazer ao Quartel, e, frequentemente, um oficial (o já referido capitão, acima citado), como delegado da Unidade, tinha reuniões na Câmara de Gaia, com o elenco dirigente do Município.
Era um tempo de agitação, em que as forças políticas locais lutavam pelo domínio e liderança das massas populares. Certa vez, em dia de domingo, à tarde, o próprio elemento camarário que exercia as funções de presidente apareceu na Serra do Pilar. Esteve no bar de oficiais e mostrava receio do que lhe pudesse acontecer, dizendo que andava sempre armado de pistola, para sua defesa. Surgiam, em Gaia, manifestações anti-comunistas, e ele queixava-se de que, nesse dia, nos Carvalhos, no decorrer de uma sessão de esclarecimento, junto ao pavilhão do clube de hóquei, tinha mesmo sofrido ameaças à sua integridade física.
Na Serra do Pilar, também a situação reivindicativa das praças não parava, a ponto de, como solução de recurso, o comandante ter decidido, em determinado dia, que “a partir de amanhã”, todos passariam a ter as refeições em comum no refeitório das praças. Foi, porém, o epílogo da indignidade, talvez inevitável, mas caiu-se a um nível de degradação impressionante, só lentamente corrigido com o passar do tempo: à hora da segunda refeição, oficiais, sargentos e praças, todos a monte, acotovelavam-se à entrada para o refeitório geral, e ocupavam as mesas, indiscriminadamente, à medida que junto delas chegavam. Não havia qualquer precedência de posto ou graduação (mesmo inversa). Todos iguais: na colocação das terrinas, na distribuição da comida, no levar para a copa os pratos e talheres, e rapar as sobras para os caldeiros respectivos...
E como podia haver conversa e partilha, à mesa, com pessoas culturalmente tão diferenciadas, com interesses específicos, e, se calhar, a desconfiarem umas das outras? Similar panorama se passava nas salas-bar de oficiais e sargentos... Eram frequentadas por todos. Um rompimento total na disciplina e tradições anteriores, a proporcionar um ambiente pesado e carregado de suspeições. Todos eram «iguais»... O respeito e a hierarquia, pilares estruturantes das relações entre militares, diluíam-se... Qualquer atitude tendente a corrigir alguma entendida anomalia podia ser considerada «fascista», a originar notícia nos boletins ou panfletos revolucionários, clandestinamente difundidos. Sentiam, os graduados, que eram permanentemente «vigiados» pelos subordinados, mesmo disfarçadamente, que logo comunicavam ao «sistema» revolucionário os seus deslizes relativamente aos seus padrões.
(Continua)
(*) – São omitidas nestes relatos referências nominais aos protagonistas dos acontecimentos evocados, quando não sejam do conhecimento universal.

terça-feira, 27 de julho de 2010

Para que da Memória se faça História

Episódios do “Verão quente de 75” - I (*)
1. Antecedentes
Regressado da Guiné, para onde parti a 25 de Maio de 1974, em terceira comissão de serviço, voltei, em 24 de Outubro, ao GACA 3, donde tinha saído, e aí tomei contacto com a situação de convulsão que grassava na disciplina das forças militares... De resto, não havia muita diferença entre esta situação e aquela com que tinha deparado na Guiné, onde a indisciplina dos militares portugueses tinha caído a patamares insustentáveis, por de mais aviltantes e inimagináveis! Como a pessoa humana se descontrola, no mau uso daquilo que pensa é a Liberdade!...
De notar que, no GACA3, em Espinho, as coisas, pelo que ouvia falar, já estavam mais normalizadas. Comandava esta Unidade, nessa altura, um conhecido e bem conceituado coronel de Artilharia, homem que brilhava pelo seu fino trato e esmerada educação cívica e militar, organizativo até ao mais elementar pormenor, pelo que não podia dispensar nunca o seu bloco de apontamentos, fiel companheiro de todo o desempenho das suas funções profissionais, e até da sua vida particular.
Recordo-me também de que ali prestava serviço um capitão da mesma Arma, puro transmontano (hoje coronel, na situação de reforma), que conseguia contrapor uma certa moderação ao ímpeto revolucionário dos aspirantes milicianos que faziam a famigerada «dinamização cultural» pelas aldeias da zona de responsabilidade. Lembro-me, até, que, de certa vez, o substituí, por sua impossibilidade pessoal, na presidência de uma destas sessões, em Alvarenga (Arouca), onde fiquei estupefacto perante os temas e a argumentação correspondente desenvolvidos e defendidos pela equipa dos «dinamizadores». Tudo não passava de uma verdadeira “lavagem do cérebro” das populações, à boa maneira dos métodos revolucionários marxistas e leninistas. Era a “Revolução” em marcha, ideológica, dogmática, massificadora.
De outra feita, já ao fim da tarde de certo dia, e a solicitação do já citado comandante da Unidade, tive de ir resolver uma situação de conflito laboral, numa unidade fabril das proximidades, onde a RTP já se aprestava para registar imagens, fazer entrevistas, e noticiar o acontecimento. Isto, de resto, era já vulgar, um dado quotidiano, nessa altura. Situações difíceis, num país que tinha perdido o sentido da justiça, onde cada um puxava a brasa para os seus próprios interesses mais imediatos, e onde o horizonte do futuro se divisava sem esperança, enigmático, incerto, obscuro, ou mesmo absurdo.
Mas, neste período, sentia-se que a Unidade militar de Espinho, apesar de tudo, estava devidamente comandada, ao contrário do que teria acontecido algum tempo antes, logo após o “25 de Abril”, em que os militares «progressistas» tinham chegado ao ponto de incluir o próprio comandante do Quartel nas escalas de serviço de limpeza da parada – faxinagem. Ao que se tinha chegado!... Entretanto, fui nomeado para a frequência de um curso (estágio), no IAEM - Instituto de Altos Estudos Militares, em Pedrouços (Lisboa), incluído numa turma de três dezenas de oficiais do meu Quadro. Aí conheci professores (militares do antigo Corpo de Estado Maior) de grande integridade profissional e moral, de apurada competência e conceituado renome. Alguns chegaram, depois, a generais e desempenharam altos cargos na organização operacional e administrativa do Exército.
Marchei para essa actividade em Fevereiro de 1975. Passei ali, em Pedrouços, o célebre “11 de Março”, onde acompanhei pela rádio, nesse dia, o acontecimento no “RALIS”, enquanto, à hora de almoço, todos assistíamos às evoluções dos caças a jacto, da Força Aérea, a picarem sobre o COPCON (Comando Operacional do Continente), logo acima, no forte do Alto do Duque. Ouviu-se, depois, dizer que os aviões estavam desarmados… Apenas intimidação de sinal contrário, dissuasão!
No dia seguinte, nas aulas, não havia serenidade… Não se falava de outra coisa. Os comentários e os comentadores eram dos mais diversos. Spínola tinha fugido de helicóptero para Espanha. Sabia-se, ainda, que tinha havido, entretanto, de noite, uma agitada Assembleia do MFA (Movimento das Forças Armadas), donde arrancou o ímpeto para as nacionalizações desenfreadas. Na turma do nosso Curso, notava-se a ausência de um “condiscípulo”, que apareceu dias depois, a contar o que se havia passado nesse tumultuoso encontro da “vanguarda” revolucionária – da qual era, de resto, elemento activo (veio a ficar conhecido, tempo depois, pela sua actuação num avantajado desvio de armas, que, segundo as declarações de outro prócer do Movimento, tinham ido cair em boas mãos).
Só regressei ao Norte no fim do curso, em meados de Julho, mas agora para ser colocado no RASP (Regimento de Artilharia da Serra do Pilar), devido à extinção da minha anterior Unidade - o GACA 3, de Espinho - entretanto superiormente decidida no decurso da reestruturação do Exército. … … …
(Continua)
(*) – Por questão de ética jornalística, tenta omitir-se nestes relatos qualquer referência nominal aos protagonistas dos acontecimentos evocados, quando não sejam do conhecimento universal.

quinta-feira, 27 de maio de 2010

Para que da Memória se faça História

Apontamentos de um soldado em África
Em jeito de "POSFÁCIO"
(Foto: Um dos painéis de Renato Torres, pintor carvalhense - Palácio do Governo da Guiné, em 1974)
“Para trás a saudade… Que futuro?!...
Desta saudade e desta dúvida que enquadravam o meu espírito, ao escrever a última crónica dos meus “Apontamentos” - naquele mês de Dezembro de há quarenta e seis anos -, apenas persiste, agora, a primeira – a “Saudade”.
Saudade de um tempo que já está para “o outro lado do Tempo”… De um tempo que os, então, tão apregoados “ventos da história” engoliram, numa desastrosa turbulência que não deixou “pedra sobre pedra” sobre os feitos maiores de um Povo em séculos de construção. Que futuro?!...
Depois de Angola, nova missão em Moçambique, e, mais tarde, outra na Guiné, terras onde respirei o mesmo ar de um Portugal multirracial, multicultural e pluricontinental. Hoje já não existe a dúvida sobre o “futuro”, esse futuro que desabou como um “tsunami” sobre esta Pátria de heróis e de santos, numa pretensamente radiosa manhã primaveril de Abril.
Que futuro?!... Recordo, por exemplo, da Guiné, aquela cena, já na descolonização, de um chefe de tabanca (aldeia) agarrado à sua bandeira verde rubra, que religiosamente guardava entre os seus pertences, a dizer que não se desfaria dela, mesmo com o perigo de o “PAIGC” a encontrar consigo e, por via disso, ver a sua vida ameaçada (coisas destas, testemunhou Almeida Santos, publicamente, a respeito do tão martirizado povo de Timor).
E foi também com a alma perpassada pela negrura da tristeza que assisti, em Bissau, ao último arriar da Bandeira Portuguesa, na fortaleza da Amura, horas antes de entrarmos para as lanchas de desembarque (LDG) que nos haveriam de transportar ao encontro do navio Niassa, no alto-mar, nessa derradeira noite da presença portuguesa na terra que Nuno Tristão descobriu, e regou com o seu sangue, em Junho de 1446.
Que futuro?!... O Futuro projecta-se em ideais… Mas, a História escreve-se com factos: com heroicidades, mas também com traições...; com exaltações de honra, mas também com ignomínias de cobardia.
E hoje os factos aí estão.
As dúvidas de ontem estão desfeitas com a realidade do presente.
Não soubemos ou não pudemos terminar com êxito o ciclo da nossa História… Nem honrar aqueles que se sacrificaram e deram a vida, para construir essa História, ao longo de séculos de gerações, e à face do planeta. Já não há “Futuro”; apenas resta, aqui e em toda a parte por onde esta Pátria passou, a nostálgica Saudade…
Saudade do Povo português e de uma Pátria que se chamou Portugal!
V. N. dos Santos
Portugal - Junho de 2010

quarta-feira, 19 de maio de 2010

Para que da Memória se faça História

Apontamentos de um soldado em África - 21
Despedida
Ao tomar a pena, para escrever a última crónica destes humildes apontamentos, trespassa-me a saudade...
Não a saudade desses momentos sombrios e terríveis da guerra  porque a guerra não pode deixar saudade , mas a nostalgia de uma terra e de uma gente, a que deixei prender o meu coração de português.
E também o pesar profundo por não ver no regresso camaradas que me acompanharam na vinda. Permitiu Deus que aqui ficassem a cimentar com as suas vidas os alicerces da Pátria lusitana, e a regar com sangue de heróis este solo pisado durante séculos pelos nossos missionários, e que os ventos da história, loucos, endemoninhados, pretendem devastar.
Quando o Chefe do Governo disse à Nação, com aquela firmeza do “sei o que quero e para onde vou”, que da hora se não podia perder um só minuto, senti ferver em meu íntimo o vigor natural da minha juventude. As imagens das primeiras partidas para terras de Angola causaram-me um enorme desejo de também seguir, e a satisfação veio pouco mais tarde, quando a hora se prestou para o cumprimento do serviço militar. Em dor, deixei os que me eram queridos, mas o coração transbordava de alegria, por assim poder ser útil à minha Pátria, nas fracas possibilidades que tinha.
Dois anos são volvidos, já. Missão cumprida, regressamos ao afago do lar, à doce paz na família. Grande foi a experiência vivida... Dura, cruel! Grande foi a lição que em terras de África consegui receber, como homem, como cristão, como português! Não fiz tudo o que, agora, em visão retrospectiva, compreendo seria possível levar a cabo... Mas, voltar atrás é impossível no domínio do tempo!...
Graças Vos dou meu Deus por todos os benefícios que me destes neste período. São para Vós todas as minhas horas: as de alegria, as de sofrimento, as de amargura, as de solidão, as de perigo. Graças Vos dou, sobretudo, pelo benefício da vida, que poupastes à morte trágica, naquela hora traiçoeira e terrível. E peço-Vos perdão por todo a mal que em mim pode encontrar culpas. A todos os leitores de “Missões e Missionários”, na sucessão destas crónicas, procurei dar algumas centelhas de luz. Centelhas fugidias, mas, estou certo, de algum modo iluminadoras do seu espírito, para que nele melhor fosse recebida a realidade que nos envolve em África. Realidade de sentido profundo no Mundo e na História! A esses leitores que me acompanharam durante esta vintena de meses, eu rendo a minha inteira gratidão, pois compartilharam, com a sua assiduidade e atenção, do frémito de que se tomou a minha alma, em face dos nossos irmãos de cor. Bem sei que fui pobre em meus assuntos... De quanto vos não poderia eu falar!... Mas ainda que mais dissesse, sempre uma lacuna ficaria. É que a África  repito o que já tenho dito  só se aprende in loco! É, na realidade, de mistério e de sonho..., cativante, arrebatadora. Penetrar no espírito do aborígene, avaliar a potencialidade económica da terra, tocar o âmago social deste povo... É inebriante! E, sobretudo, quando tudo isto faz parte da nossa Pátria!...
Sinto-me feliz por ter vindo... Mas como poderia sentir-me satisfeito?... Mais, imensamente mais ficou para além do que se me ofereceu. Eis porque, ao deixar a África, sinto uma imensa saudade... e desejo de voltar. Ao Senhor Padre Lopes, digníssimo Director desta Revista, só posso ficar imensamente reconhecido, pelo carinho com que sempre recebeu a minha correspondência, e pelas palavras tão amigas e acalentadoras que sempre dirigiu, desde a primeira hora, a este soldado português em África. As suas cartas traziam vigor exuberante e cálido amor...,  vigor e amor que tão preciosos são para combater as correntes deletérias que atacam a juventude que aqui se bate. O calor do seu conforto levantava-me quando me via sem forças, e, num sussurro, ouvia em meu interior a voz da consciência: – Continua!
África! Terra de missão... e de promessa!
Quando os marxistas-leninistas pensaram em arruinar as potências ocidentais, pela tomada da África, lançando sobre os povos árabes o negros os tentáculos do comunismo e da subversão, não contavam com o escolho que para eles se tornou Portugal. Não tomaram em consideração que, ao chegarem às províncias Portuguesas, não teriam unicamente uma operação de expulsar, mas de cortar. Portugal ganhou raízes em África, não veio apenas para sugar. Não importa o que fizeram alguns portugueses sem escrúpulos... Antes, importa, sim, para condenar atitudes particulares, pouco dignas ou indignas, tomadas por indivíduos de um povo, traindo a consciência nacional e histórica do país a que pertencem. Mas, fundamentar-se em factos isolados, para daí inferir uma linha de conduta histórica, é erro, é difamação, é desonesto! Circunstâncias históricas e a mentalidade de uma época permitiram a escravatura, mas a sensatez da razão aboliu tal, quando os espíritos, mais libertos da ambição, se deixaram vencer pelo coração e pela verdade. Isto só prova que, apesar de tudo, sempre prevaleceu o ideal supremo na Nação que em todas as épocas teve um denominador comum: civilizar, fazer cristandade! E se hoje se fala muito dos defeitos do passado, com amargor e espírito construtivo, isso só prova que o ideal português continua, na mesma constante de sempre, ainda que os homens, de quando em vez, os possam atraiçoar.
Acabada a missão de Portugal em África?... Longe disso! E se alguém disser que estamos atrasados décadas, a contrapartida só pode ser uma: empregar todos os esforços para recuperar. Perante a arremetida comunista, só resta permanecer de pé, rechaçar o ataque e… ficar!
Mais do que nunca, hoje, que mercê de circunstâncias trágicas sentimos bem forte a alma portuguesa, temos oportunidade de afirmar ao mundo o que somos, praticando esse ideal que arrebata a nossa consciência nacional: fazer cristandade! Para realizarmos esse ideal nobre, temos de possuir uma mentalidade segura e esclarecida a respeito do que somos e do que queremos. Esta é a primeira batalha a travar! Só portugueses de fé e de querer, honrados e leais, conscientes das suas responsabilidades e da missão da sua Pátria; só portugueses que não destoam dos feitos e do nome dos seus maiores; só portugueses que vibrem a espada na guerra e levantam bem alto a cruz na paz; só portugueses que sejam ao mesmo tempo cristãos autênticos… poderão salvar a Pátria nesta hora de sacrifício.
Não basta ter a nacionalidade... É preciso ser, ser português como os de sempre! É preciso resistir à devassidão, à ambição que ilude, à vida fácil e sem escrúpulos, ao mal... ao pecado! Esta é a batalha que o inimigo não descura. Se a vencermos, então e só assim, poderemos continuar a missão que do promontório de Sagres receberam os que antes de nós vieram há quinhentos anos. Mais do que nunca, temos hoje consciência dessa missão.
E se um dia pudermos dizer: “missão cumprida!” (grande momento histórico esse, Portugal!...), quem poderá dizer que estes solos não são terra da nossa terra, e esta gente povo do nosso povo?!...
Deixo Angola numa hora em que o ódio, espalhado por toda a África, mutila corpos, dilacera almas e arrasa civilizações... Mas peço a Deus que um dia me deixe voltar e ouvir ainda, como agora, essas meigas crianças, brancas, pretas e mestiças, à mistura, cantar em uníssono e no calor das suas almas puras: - “HERÓIS DO MAR, NOBRE POVO, NAÇÃO VALENTE E IMORTAL!...”
Angola – Dezembro de 1964

terça-feira, 13 de abril de 2010

Para que da Memória se faça História

Apontamentos de um soldado em África - 20
A Árvore das Patacas
Quando eu era criança, ouvia falar na “árvore das patacas”, existente, naquela altura, lá para os lados do Brasil... E estava eu convencido de que, na realidade, havia a tão desejada árvore, e que, português que ao Brasil fosse, e abanasse a ramagem da dita, regressava rico.
Os tempos passaram. Fui perdendo aquela santa e inocente crença na famigerada planta e, até com decepção e tristeza, cheguei à conclusão de que o “fruto patacal” era colhido, não de uma frondosa e verdejante árvore exótica, mas de alguns expedientes e trafulhices…, embora para muitos, felizmente, a árvore não fosse senão o seu honesto e intenso trabalho, de tronco rodeado pelos espinhos do sacrifício.
Parece que hoje, porém, tal crença ou ilusão voltou a tomar muitas almas, e já não somente o Brasil possuirá o madeiro que tão precioso fruto dá – se é mesmo que não o perdeu - mas noutros pontos do mundo ele se levanta para muita gente, e pena é que o nosso Ultramar esteja neles incluído. Para aqui, correm muitos em ávida procura da sombra acolhedora dessa árvore que nos pode tirar da miséria, e sem mais nada considerar do que o seu dito fruto.
Tal situação levanta enormes problemas sociais, que não são estranhos, não só ao indivíduo em si mesmo, mas também à Família, à Igreja, e à Economia da Nação - que se vê desfalcada no potencial humano de que tanto necessita na hora que passa. E o problema é tanto mais grave, quanto é certo que o País tem de empregar actualmente grande parte da sua juventude - que é o vigor da Nação - na defesa do solo pátrio, o que traz, já por si, inúmeras consequências humanas, sociais e económicas.
Não seria, então, de desejar que a corrente humana que se escoa para o estrangeiro, da qual, repito, muitos dos seus elementos vão simplesmente em procura da “árvore das patacas”, se encaminhasse para as Províncias Ultramarinas, onde agora mais do que nunca precisamos de marcar fortemente a nossa presença?!... Sim! Mas, importa não cair no erro a que uma visão simplista do problema nos leva. É que não basta vender a mobília, e mesmo a casita ou as terras que, se bem que modestamente, sempre iam servindo de ganha-pão quotidiano, comprar as passagens e arribar a qualquer cidade do nosso Ultramar. E há tantos que o fazem deste modo!...
Efectivamente, é preciso vir com certeza, e não à sorte. Torna-se necessário que a nossa gente da Metrópole, por meio de idóneas entidades particulares, ou através de organismos oficiais e da especialidade, encontre nas Províncias Ultramarinas as condições propícias à sua à sua fixação, de modo a garantirem uma vida desafogada e útil, que seja melhor que a usufruída anteriormente. E não só ao Governo compete tomar as medidas tendentes ao desenvolvimento das Províncias, para que estas possam receber os eventuais excedentes populacionais da Metrópole, mas também às entidades particulares se pede o investimento adequado no mesmo sentido. A Nação precisa dos esforços de todos... Não imputemos unicamente ao Estado as responsabilidades. Ao esforço da juventude que no campo militar dá o que pode dar, mesmo a mais humilde..., aquilo que tem de mais precioso - a sua própria vida -, não se possa opor a traição daqueles que, no campo económico, procuram a retirada, como precaução e defesa mesquinha dos seus interesses particulares.
Vir para o Ultramar, pensando apenas em abanar a “árvore das patacas”, é acção digna de reprovação, e perigosamente arriscada. Mas há quem o faça, e não são poucos! Talvez movidas por ilusões fabricadas por uma propaganda fácil e atraente...; talvez empurradas por ambições que surgem em seu íntimo, ao tomarem conhecimento de êxitos rápidos alcançados por alguns, o certo é que chegam a Angola pessoas que só pensam no que vêm fazer quando põem pé em terra. Até aí, tudo era sonho de doce ilusão - vir para África -, mas a verdade é que, após o desembarque, não sabem, tantas, para que lado se hão-de virar. E, como os tostões são poucos, e a pensão, num trago, os comerá, não têm outro remédio senão começarem a pensar no regresso à terra mãe, depois de alguns dias a procurar emprego, sem resultado. E, consequentemente, são estas mesmas pessoas que vão dizer que isto está mau, quando afinal não saíram de Luanda, e, devido à sua situação desesperada, retomaram o barco de regresso, quase em pânico, e endividadas.
Contra esta situação, levantou há tempos a sua voz o órgão da Arquidiocese de Luanda, “0 APOSTOLADO”, e a mesma mereceu já a atenção das entidades oficiais. Mas, apesar disto, ela continua a verificar-se.
Ainda há dias, tive ocasião de ver em Luanda um pobre homem que pedia a um soldado seu conterrâneo uma ajuda monetária para regressar à Metrópole. Era um recém-chegado.... e já andava aflito para partir. E mais dois, ao que parece, lhe faziam companhia no infortúnio. Olhei para eles... Um trazia um ananás na mão, talvez para se convencer de que estava em África... E senti pena!... - e eu tinha razão (por motivos particulares e pessoais) para sentir pena!... Não! A “árvore das patacas” não existe, afinal! Não é chegar... dar uma abanadela, e voltar. Quem vier a pensar desse modo, esse é que ficará dentro em pouco abanado... e sem pataca no bolso.
Angola, ou outra qualquer Província, precisa de gente, mas não pede a ninguém que venha à aventura, e muito menos acreditando na ilusória “árvore das patacas”, porque ela não existe em lado nenhum do mundo. Nada se faz sem trabalho, e este por vezes é penoso, embora todo o trabalho tenha o seu prémio. Alguns dos que chegam arranjariam serviço no interior, mas esta ideia aterra-os: “o mato... é a guerra”!
Como seria bom que os barcos viessem cheios de portugueses dispostos a engrandecer a Província, e com ela a Pátria, pensando mais no que poderiam trazer a esta terra de missão, do que naquilo que dela haveriam de tirar; dispostos a trabalhar em qualquer parte, e não apenas em Luanda, com medo exagerado do “mato”, que, para os que chegam de novo, lhes aparece como prenúncio de morte. E nesta Angola... - onde uma vara que se espeta na horta a servir de estaca, sem que se queira floresce e ramifica, e se torna árvore frondosa!...
… Mas nunca – nunca! – “Árvore das Patacas”!
Angola - novembro de 1964

segunda-feira, 8 de março de 2010

Para que da Memória se faça História

Apontamentos de um soldado em África - 19
A Sanzala
A sanzala é o habitat característico da gente africana que vive no mato. É constituída por um grupo de cubatas, habitações pequenas com um ou dois compartimentos apenas. Há cubatas feitas só de capim seco, cuidadosamente disposto e atado sobre uma armação de paus finos; outras, de barro amassado atirado à mão sobre paredes de pequenas pedras seguras por varas entrelaçadas; algumas, de adobes, numa construção mais adiantada, que são blocos secos feitos de barro misturado com capim. Vêem-se sanzalas com tectos de telha, mas, na maior parte, as cubatas são cobertas de capim e folhas de palmeira, numa disposição adequada, e não há água que por aí penetre.
O chefe da sanzala é o soba, eleito pelo povo e com autoridade sobre todos. Para questões delicadas, há um conselho de anciãos, que funciona como um tribunal... E eles zangam-se, se a autoridade administrativa é preferida à sua douta opinião. Sobre os sobas das várias sanzalas de um aglomerado importante, existe ainda um regedor, indivíduo de grande consideração entre o seu povo.
Em cada sanzala existe, geralmente, um edifício mais espaçoso, construído de adobos, destinado a capela-escola, onde o missionário reza missa e ensina, ajudado pelos catequistas, nativos escolhidos e preparados para esse mister.
Antigamente, o preto vivia em núcleos dispersos situados segundo as condições naturais que melhor serviam as suas necessidades primárias. E, além destas, pouco mais ele tinha para lhe dar preocupação. Por influência da autoridade administrativa, os nativos passaram a habitar ao longo das estradas, em sanzalas mais ou menos ordenadamente construídas, deixando, embora com relutância, e nem sempre definitivamente, as aldeias do interior. A sua capacidade de adaptação e de construção, graças aos processos simples empregados e à facilidade de obtenção de materiais, que buscam no meio que os rodeia, ajudou-os a formar, aldeamentos mais vastos e bem localizados, que emolduram as estradas de Angola.
Alguns povos não deixaram de vez a mata, aí arraigados pelo seu primitivismo ancestral, naturalmente renitente às exigências das ordens administrativas, ou presos a ela pelas vantagens várias, como as condiç6es de solo e água para as suas lavras (hortas). Aquando da confusão, muita gente fugiu para essas aldeias antigas, instigada pelos elementos subversivos, deixando o triste espectáculo das sanzalas abandonadas, que se pode admirar ao longo das vias de comunicação do norte de Angola. Nestes três anos últimos, muitos povos voltaram, recuperados, aos seus aldeamentos, a fim de, refeitos ou arrependidos, iniciarem um nova vida, e com este objectivo se tomam medidas destacáveis, particularmente na zona de Carmona. Recordo com saudade a minha chegada a estas maravilhosas paragens africanas (vai fazer já quase dois anos, e parece que foi ontem; ao mesmo tempo, parece também que foi nos primeiros dias da minha vida…, tal é a marca que esta minha passagem pelo Ultramar deixa na minha alma, que tanto quer amar as coisas simples, mas plenas de sentido e de beleza):
Com um punhado de rapazes, íamos à lenha para o rancho geral... A tarde, soalheira e quente, convidava a andar no exterior, apesar do medo de qualquer façanha terrorista inesperadamente surgida de qualquer canto, do capim ou de uma rocha mais agressiva. Havia poucos dias que a África nos tinha no seu seio. Não admirava, pois, o medo que nos invadia a todo o minuto e em todo o lado. Angola, e, nesta, a região que nos calhava, era ainda para nós um autêntico Adamastor, cheio de terror e de incógnitas.
O machado, a golpes certeiros, manobrado por mãos firmes de um bravo soldado do Alto Douro, ia deitando aos poucos por terra uma árvore seca à beira da picada. Ao longe, divisavam-se alguns tectos de cubatas... A curiosidade e o espírito de patrulha puseram-nos a caminhar até lá. Passos lentos e seguros... mãos crispadas na espingarda - que em nós incutia uma sensação forte de defesa...-, espaçados e mudos..., de olhos fitos em redor e meios cobertos pelo capim, fomos avançando.
À nossa frente, ficou, dentro em pouco, uma sanzala abandonada, com cubatas alinhadas de um e de outro lado da estrada, algumas em ruína, outras semi-destruídas e queimadas pelo fogo posto. Era a sanzala “Santa”, uma de tantas que se podiam encontrar ao longo dos caminhos, marcadas com as insígnias da fúria do terrorismo. Mas era bela... poética... Acolhedor o seu conjunto ambiental. Frutos pendiam rosados das mangueiras frondosas... Flores silvestres enfeitavam o terreiro onde as cubatas se erguiam… Palmeiras dendém a chamar as galinhas do mato para o fruto caído no chão e ressequido...
A tarde finava. O sol aproximava-se bastante da linha do horizonte, oferecendo matizes alaranjados ao céu azul que nos cobria. A sua luz dourada beijava também pela última vez no dia aquele capim pardacento das cubatas envelhecidas pelo abandono, e o chão, duro como cimento, de batida terra amarelada. Um tiro de reconhecimento por nós disparado cortou o silêncio daquele ambiente paradisíaco, mas depressa ele se fechou novamente atrás da trajectória daquela bala sem resposta. O medo desvanecera-se já... Antes, uma atracção enorme me infundia o desejo de ali ficar. Paz, sossego, beleza... Porque estava aquele lugar sem ninguém?... Porque tinha o povo fugido?... Que mais ele queria além do... tudo?...
Eram as perguntas que me bailavam no cérebro, ainda pouco a par das manobras insidiosas do inimigo. E a resposta viria, nestes dois anos... Clara, por vezes dura, contundente.
Angola – Outubro, 1964

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Para que da Memória se faça História

Apontamentos de um soldado em África - 18
Às mães dos soldados
Quando aquele barco que nos trouxe deixou Lisboa, muitos lenços brancos acenaram num comovido e cruelmente doloroso adeus. Ali estavam, certamente, irmãos daqueles rapazes que partiam; ali, esposas e noivas; ali, mães, com o coração sangrando pela separação dos filhos queridos, cujo destino permanecia ainda sob o véu impenetrável do futuro incógnito e incerto. Elas viam partir para muito além do que a vista alcançava a carne da sua carne, aqueles para quem o seu carinho nunca tivera limites, o seu tesouro, a alegria da sua própria vida.
Todos sofreram ao ver partir os seus, mas, as mães, essas, irreconhecíveis na mole humana que gritava e agitadamente se despedia, não sofriam somente. Partiam com seus filhos, numa comunhão de amor e dor que jamais podia fenecer. Elas choravam, mas davam generosamente os seus filhos. Davam, porque só elas podiam compreender o grito lancinante dessa outra mãe - a Pátria. Sim, só tu, ó Mãe Portuguesa, compreendes a emergência da hora que passa, tão perigosa e tão rude, tão decisiva e tão pesada. Só o teu coração pode sentir a chaga que tão insidiosamente abriram ao teu Portugal, porque só a tua maternidade pode ser posta em paralelo com o valor de uma Pátria!
Outros navios partiram desde então, como antes também tinha já acontecido. Outros lenços brancos volitaram nos ares, outras lágrimas rolaram nas faces ternas de outras mães. E algumas dessas lágrimas... jamais deixarão de cair. A dádiva foi total!
Tenho à minha frente uma carta mal escrita de uma pobre mãe que perdeu seu filho nesta luta. Nas suas palavras, ditadas a um outro filho pequeno, transparece a dor, mas de modo nenhum se nota nelas desespero. Morreu o seu querido, como lhe chama a pobre mãe. Em casa, era um céu aberto com ele; mas, um dia, ele partiu para sempre ... Oh! Virgem Santa! Também o teu Filho amado te deixou, um dia, para nunca mais voltar... a não ser no fim dos tempos, para julgar os homens. Os pecados da humanidade pesaram-lhe em terrível fardo, e por eles foi pregado numa cruz, condenado à morte. Que mudou o mundo em dois mil anos, ó Mãe? Os crimes do homem continuam a abrir com o seu punhal odiento o peito das nossas mães, como, naquele tempo, as sete espadas de dor atravessaram o teu Coração Imaculado!...
Oh!, meu Deus! Cada vez a imoralidade parece grassar mais sobre a terra! Eis que a rádio e os jornais nos trazem horrendas notícias. Já não respeitam sequer as crianças inocentes... Vês, Senhor, essa pobre juventude abandonada ao sabor da corrente mundana?... A família deixou de ser um templo, para ser um foco de vícios! Mas, aplacai-Vos, ó Deus omnipotente e misericordioso. Se troa forte o canhão da guerra, mais forte ainda é o clamor que se eleva até Vós e que brota do coração das mães Portuguesas. Elas deram seus filhos, aquilo que para elas era tudo; aqueles por quem tanto sofreram para que viessem ao mundo. Elas continuam a ser hoje, Senhor, aquelas mulheres que Vos acompanharam no Calvário, contra a indiferença dos que se esquecem de Vós.
Quanto não deve a Pátria às mães de Portugal!... Todos falam desta guerra. Todos são juizes e se arrogam o direito de julgar, quase sempre negativamente, a conjuntura que nos cerca. Todos pensam trazer em seu bolso a solução para os graves problemas que nos afligem. Mas, só a mãe Portuguesa, que sente a guerra na sua própria carne; só a mãe Portuguesa, que é bem a encarnação da Pátria; só a mãe portuguesa, que seus filhos dá em sacrifício, permanece na verdadeira consciência desta guerra. E ela não desespera, não blasfema, não se revolta. A sua dor é enorme, mas é maior a sua nobreza. A perda dos filhos que morrem é incomensurável, mas a sua alma não sente o vazio e o remorso dos que fogem espicaçados pela traição ou simplesmente por cobardia. .
Continua a mãe, na sua carta humilde, que já atrás referi:
«O meu querido filho nunca poderá ser esquecido. Tenho desgosto de estar tão longe e de não poder visitar a sua campa. Gostei muito de saber que houve homenagem e missa por alma de todos os que têm a infelicidade de aí ficarem caídos pela Pátria».
Oh!, Mãe humilde, mas de coração tão rico! Não!... O teu filho nunca ficará esquecido, porque a Pátria, como tu, sempre o terá presente no seu peito!
Honra, glória e gratidão, a vós todas, ó mães dos soldados de Portugal, que, como naquele ano de 1918, em que tanto sofrestes pelos flagelos da guerra, sustentais as colunas da Pátria com o clamor das vossas orações, e dais alento a nós, vossos filhos, para defendermos o solo sagrado da Pátria lusitana. Deixai falar os ímpios e os traidores. A sua voz é vento que passa, mas esse clamor que se expande das vossas almas é força e vida, e chegará solícito e agradável aos céus. Há-de ecoar para todo a sempre, na História, e na Eternidade de Deus.
Angola Setembro - 1964

Para que da Memória se faça História

Apontamentos de um soldado em África - 17
O Sol desponta novamente
O Povo sabe que a guerra ainda dura em Angola... como em toda a parte... em todo o mundo! Sim. É uma guerra total, ideológica, de civilizações. Total, embora se pretenda situá-la em alguns pontos geográficos exclusivos; ideológica, ainda que as armas nela vomitem metralha; de civilizações, mesmo individualizada em povos ou nações. É uma guerra de sobrevivência: a civilização cristã resistindo às arremetidas dos materialistas utópicos - do anti-Cristo - que pretendem fundar uma paz longínqua (a “paz dos mil anos”) sobre alicerces de sangue.
Foi esta guerra que sobre nós se abateu em 1961, como sobre outras nações, antes ou depois, em obediência a planos revolucionários desde há muito concebidos para dominação do Mundo. Passámos momentos difíceis, mas depois da noite escura e sangrenta daquele Março e dos tempos mais ou menos cruéis que se seguiram, começa a despontar o sol novamente... O sol radiante da paz e do amor, do progresso e da ordem, da salvação social e da reconquista espiritual, não obstante alguns bandoleiros ainda permanecerem acoitados em alguns pontos de difícil acesso, prontos a desferirem os seus golpes fatais, quais feras mortalmente atingidas lançando o ataque do desespero final.
Poderão dizer que o terrorismo ainda não foi completamente exterminado, e que bandos de facínoras se treinam no exterior para prorrogarem a luta. Mas, este sol que desponta aquecerá todos os corações, e o banditismo morrerá à míngua de apoio por parte das populações. Estas, experimentadas por uma terrível e dura prova, não mais alimentarão outro desejo que não seja o de continuarem a ser portuguesas e de mais engrandecerem a sua terra de Angola - Portugal.
A guerra continua... Mas à guerra das armas segue-se uma guerra de acção social e espiritual.
Há tempos, encontrei um capelão militar que fundou nesta Província uma Missão de Leigos: o célebre jesuíta Rev. Pe. Manuel Pires da Silva. Contou-me ele que, em determinada região, onde, antes, os nativos fugiam aos missionários religiosos, os leigos começaram a penetrar e habilmente cativaram as simpatias daquela gente atemorizada, através de ensinamentos diversos e interessantes. Daí à catequese, não foi muito, e assim se abriu para aquele povo desconfiado o caminho da luz cristã. Em muitos outros pontos, embora não com tão esmerada organização, se está a exercer também acção meritória através de elementos militares, chegando a haver casos de ensino técnico profissional.
O Dr. Pinheiro da Silva, Secretário Provincial para a Educação, tem desenvolvido notável trabalho no campo escolar, destacando-se, em particular, a obra das cantinas, inovação que muito veio trazer de bem à juventude angolana. É com grande consolação que se verifica o maior êxito nas suas visitas por terras onde o terrorismo dominou, e que agora são iluminadas por este sol novo do ressurgimento angolano. Os Estudos Gerais Universitários são uma prova convincente desse renascer das cinzas. Não foi em vão que esse português teimoso sulcou as águas, deixando para trás tudo o que tinha de seu e de mais amado, e de armas na mão aqui velo lutar... e morrer. Não foi em vão, e não o será persistir ainda nessa luta que nos travam, e onde quer que ela rebente. Os braços que seguram as espingardas também saberão sustentar a Cruz, e hão-de levantá-la sempre bem alto, como o fizeram os portugueses teimosos de antanho. E as vidas em holocausto dos que caem pela Pátria, aos golpes traiçoeiros do inimigo, são bem o grito da generosidade do Povo Lusitano.
A Nação, ferida, saberá levantar-se e retomar com mais vigor a sua vocação histórica. Um povo que é experimentado pelo sangue derramado na luta, ganha uma nova vitalidade. A guerra que sobre nós caiu ainda dura! Na Guiné e em Angola, o inimigo ainda espreita e ataca. Mas um ar fresco de manhã primaveril se faz sentir depois de uma noite escura e tremenda. O sol da caridade de Cristo desponta novamente, e rasga as trevas do ódio, que perverte as almas.
Angola – Agosto de 1964