quarta-feira, 5 de junho de 2013

Para que da memória se faça História


Feitos e Factos

da “descolonização” da Guiné – 20




 


A Paz... nem sempre é mais fácil de gerir 
do que a guerra


Situação desgastante, dizia eu no meu anterior apontamento. Na verdade, aquela paz podre em que vivíamos era bem pior do que o fragor mortífero das armas. Neste cenário, há planos, preparação, determinação, coragem, resultados... Naquela, o imprevisível, o desconhecido, o perigo escondido, a indefinição final. Mas, continuemos a ler o que então escrevi, “ipsis verbis”:

“28 de Julho de 1974. É Domingo. Mais um Domingo. Já fiz umas coisas do meu trabalho normal. ... Entrou agora o comandante aqui no meu gabinete... anda abatido, como se lhe tivessem dado uma valente coça. É por causa daquele soldado “comando” que ontem à noite elementos do PAIGC prenderam e levaram para o acampamento. Hoje de manhã tivemos a confirmação, através de um aerograma que uns “milícias” mandaram ao comandante, a informar o acontecido e a pedir para o comandante mandar uma mensagem ao Batalhão de Comandos (pretos), em Bissau. O problema resume-se ao fim e ao cabo nisto: um militar é preso pelo PAIGC dentro da nossa área de responsabilidade. Isto é um incidente que pode dar reacções imprevisíveis por parte dos outros militares africanos. Parece que já têm acontecido outros actos noutras localidades. Estamos à espera de um major, comandante das tropas africanas, de Bissau, a ver se vem tomar conhecimento do problema. O mais engraçado é que os do PAIGC estiveram cá hoje de manhã e não falaram no assunto. São estes os problemas que nos dão cabo da cabeça, dos nervos e, sei lá, do coração. Estas situações são piores do que debaixo de fogo, na guerra, onde se dominam perfeitamente os acontecimentos.”

E, adiante do meu escrito, anotava mais:

“É que há uma organização, a FLING, que é contra o PAIGC, e está a recrutar adeptos para combater o PAIGC. E este (soldado) comando parece que andava por aí a dar com a língua nos dentes p’ro FLING. O PAIGC tem medo da FLING como o diabo da Cruz. A FLING está proibida na Guiné, pois não interessa mais guerra e não há dúvida que o PAIGC é o partido que está em condições de tomar conta da Guiné. Mas - oxalá que não -, eu tenho a impressão de que quando as tropas portuguesas de cá saírem, isto vai andar por aqui tudo à porrada. Até já ouvi dizer que ontem ou há dias, houve para o sul uns problemas com a FLING, em que teve de intervir a própria aviação portuguesa... Se é verdade, confirma o que eu disse no princípio: “não me admira se um dia tivermos de pegar em armas novamente para lutar, desta vez, ao lado do PAIGC”.

Era esta a situação delicadíssima em que vivíamos, nunca imaginada, antes, como possível!... De resto, em Angola e Moçambique viriam a desenrolar-se problemas semelhantes: em Angola, com a actividade da UNITA, principalmente, e, em Moçambique, com a RENAMO.
Mas voltemos ao meu apontamento epistolar:

“Ontem, ouvimos na BBC que o Gen Spínola tinha reconhecido o direito dos povos dos territórios ultramarinos à autodeterminação e independência. Oxalá se chegue a uma solução para todos, porque o Ultramar Português, isso acabou e não volta atrás. Os acontecimentos são irreversíveis e mais uma vez se prova que não são os militares que perdem, mas sim a Politica dos homens que não sabem governar os povos.”

E terminava, com a seguinte notícia:

“Parece que já não vem para a Guiné mais ninguém, nem individualmente nem em Unidades. Vão começar a mandar pessoal embora, de modo que até Dezembro esteja na Metrópole 50% dos efectivos combatentes.”

Estas previsões viriam a ser, afinal, antecipadas. O processo acelerou-se vertiginosamente, como na oportunidade hei-de referir. Entretanto, no dia seguinte voltei a registar:

“Sempre veio cá o tal major que tínhamos pedido a Bissau para vir ajudar a resolver o problema do “comando”, e outros de menos importância. O PAIGC entrega o “sujeito”, mas temos de o enviar para Bissau, ao cuidado do Comandante-chefe (Brig Fabião). Portanto, mais um problema em vias de solução.”

Noutro passo da carta, deixei este aparte,

“Hoje foi um dia de trabalho insano, com os meus papéis. Dei graças a Deus, porque o comandante está satisfeito com o meu serviço. Até agora (há pouco), apresentei-lhe uma nota, a tratar de um problema, que era para o major levar para Bissau. Ele disse: “Tu és uma máquina. Só tens uma coisa que deves corrigir. Tens grande capacidade para resolver os assuntos, mas precisas de fazer um esforço no sentido de sintetizar”.
Eu ri-me... E, afinal, este meu saudoso comandante, tentou cortar algumas coisas no trabalho em mãos, mas, por fim, ficou quase tudo na mesma... 

Deus tenha em paz o saudoso e bom amigo Coronel Jorge Mathias, de quem sempre guardei a recordação do seu prestimoso conselho, mas que – me perdoe, lá do Céu – ainda hoje não consigo pô-lo em prática...