terça-feira, 27 de julho de 2010

Para que da Memória se faça História

Episódios do “Verão quente de 75” - I (*)
1. Antecedentes
Regressado da Guiné, para onde parti a 25 de Maio de 1974, em terceira comissão de serviço, voltei, em 24 de Outubro, ao GACA 3, donde tinha saído, e aí tomei contacto com a situação de convulsão que grassava na disciplina das forças militares... De resto, não havia muita diferença entre esta situação e aquela com que tinha deparado na Guiné, onde a indisciplina dos militares portugueses tinha caído a patamares insustentáveis, por de mais aviltantes e inimagináveis! Como a pessoa humana se descontrola, no mau uso daquilo que pensa é a Liberdade!...
De notar que, no GACA3, em Espinho, as coisas, pelo que ouvia falar, já estavam mais normalizadas. Comandava esta Unidade, nessa altura, um conhecido e bem conceituado coronel de Artilharia, homem que brilhava pelo seu fino trato e esmerada educação cívica e militar, organizativo até ao mais elementar pormenor, pelo que não podia dispensar nunca o seu bloco de apontamentos, fiel companheiro de todo o desempenho das suas funções profissionais, e até da sua vida particular.
Recordo-me também de que ali prestava serviço um capitão da mesma Arma, puro transmontano (hoje coronel, na situação de reforma), que conseguia contrapor uma certa moderação ao ímpeto revolucionário dos aspirantes milicianos que faziam a famigerada «dinamização cultural» pelas aldeias da zona de responsabilidade. Lembro-me, até, que, de certa vez, o substituí, por sua impossibilidade pessoal, na presidência de uma destas sessões, em Alvarenga (Arouca), onde fiquei estupefacto perante os temas e a argumentação correspondente desenvolvidos e defendidos pela equipa dos «dinamizadores». Tudo não passava de uma verdadeira “lavagem do cérebro” das populações, à boa maneira dos métodos revolucionários marxistas e leninistas. Era a “Revolução” em marcha, ideológica, dogmática, massificadora.
De outra feita, já ao fim da tarde de certo dia, e a solicitação do já citado comandante da Unidade, tive de ir resolver uma situação de conflito laboral, numa unidade fabril das proximidades, onde a RTP já se aprestava para registar imagens, fazer entrevistas, e noticiar o acontecimento. Isto, de resto, era já vulgar, um dado quotidiano, nessa altura. Situações difíceis, num país que tinha perdido o sentido da justiça, onde cada um puxava a brasa para os seus próprios interesses mais imediatos, e onde o horizonte do futuro se divisava sem esperança, enigmático, incerto, obscuro, ou mesmo absurdo.
Mas, neste período, sentia-se que a Unidade militar de Espinho, apesar de tudo, estava devidamente comandada, ao contrário do que teria acontecido algum tempo antes, logo após o “25 de Abril”, em que os militares «progressistas» tinham chegado ao ponto de incluir o próprio comandante do Quartel nas escalas de serviço de limpeza da parada – faxinagem. Ao que se tinha chegado!... Entretanto, fui nomeado para a frequência de um curso (estágio), no IAEM - Instituto de Altos Estudos Militares, em Pedrouços (Lisboa), incluído numa turma de três dezenas de oficiais do meu Quadro. Aí conheci professores (militares do antigo Corpo de Estado Maior) de grande integridade profissional e moral, de apurada competência e conceituado renome. Alguns chegaram, depois, a generais e desempenharam altos cargos na organização operacional e administrativa do Exército.
Marchei para essa actividade em Fevereiro de 1975. Passei ali, em Pedrouços, o célebre “11 de Março”, onde acompanhei pela rádio, nesse dia, o acontecimento no “RALIS”, enquanto, à hora de almoço, todos assistíamos às evoluções dos caças a jacto, da Força Aérea, a picarem sobre o COPCON (Comando Operacional do Continente), logo acima, no forte do Alto do Duque. Ouviu-se, depois, dizer que os aviões estavam desarmados… Apenas intimidação de sinal contrário, dissuasão!
No dia seguinte, nas aulas, não havia serenidade… Não se falava de outra coisa. Os comentários e os comentadores eram dos mais diversos. Spínola tinha fugido de helicóptero para Espanha. Sabia-se, ainda, que tinha havido, entretanto, de noite, uma agitada Assembleia do MFA (Movimento das Forças Armadas), donde arrancou o ímpeto para as nacionalizações desenfreadas. Na turma do nosso Curso, notava-se a ausência de um “condiscípulo”, que apareceu dias depois, a contar o que se havia passado nesse tumultuoso encontro da “vanguarda” revolucionária – da qual era, de resto, elemento activo (veio a ficar conhecido, tempo depois, pela sua actuação num avantajado desvio de armas, que, segundo as declarações de outro prócer do Movimento, tinham ido cair em boas mãos).
Só regressei ao Norte no fim do curso, em meados de Julho, mas agora para ser colocado no RASP (Regimento de Artilharia da Serra do Pilar), devido à extinção da minha anterior Unidade - o GACA 3, de Espinho - entretanto superiormente decidida no decurso da reestruturação do Exército. … … …
(Continua)
(*) – Por questão de ética jornalística, tenta omitir-se nestes relatos qualquer referência nominal aos protagonistas dos acontecimentos evocados, quando não sejam do conhecimento universal.