terça-feira, 7 de agosto de 2012

Para que da memória se faça História


Feitos e Factos
da “descolonização” da Guiné – 11

Logo depois de almoço, naquele Domingo, apareceu na messe o “M. S.” – o já referido comerciante – eufórico, a convidar-me para irmos ao acampamento do Paigc conversar e confraternizar com eles... Sugeriu que levasse umas bebidas, para o efeito. Um dos oficiais subalternos, que ouviu a conversa, ficou entusiasmado, e ofereceu-se logo para me acompanhar. Nós de jeep, o M.S., em viatura própria. Não gostei nada da ideia, pois logo desconfiei que algumas coisa me não “cheirava bem”... Mas lá fomos, pois recusar o evento, seria um acto de más “relações públicas”, e, naquele caso conjuntural, desaconselhável como negativo tacto político.
Chegados ao acampamento dos “nossos amigos”, a cerca de 4 km a sul de Pirada, receberam-nos com abraços e a pergunta sacramental “corpo, bom?”, maneira peculiar de cumprimentar naquele solo africano. Decorreram alguns momentos de efusiva conversa, e de boa disposição, sempre na perspectiva de que a guerra tinha acabado, e que a paz e a concórdia começavam a mostrar-se uma realidade garantida.



Porém, pouco tempo depois, aquele clima de boa disposição foi interrompido por um emissário que chegou ao local, a dar notícia de que, em Pirada, andava um elemento das milícias a dar vivas à FLING, e meteu também no mesmo saco das suspeitas um outro conhecido homem da população, que detinha o negócio da carne de bovino – o talhante. O primeiro, o “milícia”, tinha um irmão militar, em Bissau, nos “Comandos”, e por isso era tido, pelo Paigc, como “persona non grata”; o segundo, matava gado e vendia carne à tropa, mas havia no vulgo “queixas” de que ele nada fornecia ao povo. Por isso, tudo indicava que este episódio rocambolesco não passaria de uma tramóia “diabolicamente” orquestrada para um ajuste de contas pessoais, vinganças oportunistas, ou manobras tácticas de uma estratégia encapotada que começava a delinear os seus contornos. E esta situação exigia muito tacto, pois não estávamos, já, em condições de supremacia.   
“Todo o caldo se entornou”, então!... Desfez-se o clima de bem-aventurança que, por momentos, tínhamos vivido ali. Os elementos do Paigc, inquietos, queriam ir a Pirada prender os dois personagens, pois, para eles, ouvir falar na Fling, era o mesmo que falar ao diabo na cruz! (A Fling – Frente de Libertação Nacional da Guiné – era o movimento que tinha iniciado a luta pela independência do território, e por isso era hostil ao Paigc). Entretanto, na confusão, e talvez para “ver” o que se passava na povoação, “M.S.” desapareceu da cena. Vi-me e desejei-me para dominar a contenda, não sem prometer que no dia seguinte, eu e o comandante de batalhão, levaríamos os dois indivíduos à presença deles (Paigc), pois os meus interlocutores exigiam falar-lhes e “esclarecê-los”.
Assim acabou a “festa”, de modo tão insólito. Comecei a compreender que tudo tinha sido programado com perícia... O “maquiavelismo” em acção. A paz que se esperava fosse consolidada em harmonia, começava a mostrar os seus espinhos, e o futuro adivinhava-se de negra imprevisão.
Regressados, em frustração, ao quartel, dei conta ao comandante da Unidade do modo como tudo tinha decorrido. A preocupação nossa era notória. Havia a sensação de que a perfídia começava, como cobra rastejante, a enroscar-se ameaçadoramente à nossa volta. Ficou, então, combinado que, na manhã seguinte, iríamos fazer uma visita aos pelotões de milícias, e, com esse pretexto, levaríamos os dois homens connosco... Passaríamos pelo acampamento do Paigc e eles ficariam ali para o desejado esclarecimento, enquanto nós continuaríamos o périplo pelos pelotões de milícias, em visita de rotina. Estes pelotões não eram nada mais do que as várias povoações organizadas em autodefesa, espalhadas pela nossa área de responsabilidade.
Depois de uma noite mal dormida, com o peso do desconhecido sobre os ombros, logo de manhã cedo nos aprestámos para, num jeep, cumprirmos o nosso plano. Levámos connosco os dois protagonistas da polémica (o milícia e o magarefe). Chegados ao acampamento do Paigc, fomos recebidos amistosamente, e um dos seus elementos de comando pediu até desculpa de não ter “a guarda formada” para prestar as devidas honras ao comandante. Ironia ou delicadeza?!... Talvez a segunda.
Ficou combinado, então, que iríamos prosseguir a nossa missão de rotina, e que ao meio dia, no regresso, por ali passaríamos de novo para recolher os dois homens, com quem eles queriam falar, a fim de os esclarecer sobre a nova situação presente no território.
Cumprida a nossa tarefa, voltámos ao local, à hora aprazada. Perplexidade! Disseram-nos que “ainda não tinham falado com eles”...  As coisas começavam a complicar-se. Ficou, assim, assente que, de tarde, eu próprio os iria lá buscar, e regressámos a Pirada, com alguma negrura na alma. Ao entrarmos na povoação, sozinhos, atraímos os olhares de angústia interrogativa daquele gente. Os dois homens... não vinham connosco!... Que se passava?!...
Para tranquilizar aqueles que logo nos vieram pedir explicações... tivemos de dizer que, de tarde, os iríamos buscar, mas a desconfiança começava a instalar-se entre as hostes... E, ainda a procissão não tinha saído do adro (como soe dizer-se).
Mas, deixemos o resto para a próxima crónica... 

Para que da memória se faça História


Feitos e Factos 

da "descolonização" da Guiné – 10





Continuo a descrever os factos por mim vividos na Guiné, nesses conturbados tempos de Junho/Julho 1974, em que a famigererada “descolonização” começava a pintar-se com cores de camaleão... Tão depressa mudavam do vistoso verde da esperança para o negro imprevisível da ameaça. Ninguém sabia, de manhã, como a situação se iria apresentar ao cair do dia.

Os acontecimentos iam tomando matizes diferentes, e com uma rapidez estonteante. Os nervos começavam a ficar esfrangalhados, naquele clima tropical, na altura seco, mais tarde chuvoso, onde o futuro deixara de ser programável. Em alguns momentos, desfrutávamos uma paz consoladora... Mas quando a avioneta chegava de Bissau, trazendo “M. S.” – cantineiro, comerciante, lá do sítio – sentíamos um calafrio pelas costas: com a sua presença em Pirada tudo mudava... Ficávamos à espera do primeiro problema, que não tardava.
Em carta de 26 de Junho de 1974, registei o seguinte apontamento:
“Hoje tive uma longa conversa com dois indivíduos que servem de intermediários entre nós e o PAIGC. Tenho-me esforçado para que as relações aqui entre os nossos “vizinhos sejam das melhores. O chefe deles é um bocado torrão e desconfiado (referia-me a Q. M., que comandava a guerrilha a norte de Pirada). Domingo, quando vieram fazer o comício (a que aludi na crónica anterior), vinham armados até aos dentes“... Mas verificando que com “outros“, de uma outra zona mais a sul, as relações são cordiais, eles já se convenceram mais. Agora já querem entrar na zona de Pirada e prometem vir ao quartel falar connosco. Começaram a sentir-se atrasados em relação aos outros “camaradas“.
Os “outros”, eram dois “comissários políticos” (que aqui identifico por) “Tim“ e “Bar“, de outro escalão de comando, que possuíam um trato diferente, mais dialogantes e diplomatas – evoluídos. Seriam, por assim dizer, “testas de ponte” de uma outra dependência, que – como se verificaria mais tarde – viria a liderar as actividades de ocupação aquando da nossa definitiva retirada.
Mas as coisas continuavam o seu rumo... Respigo outro apontamento, desses dias, a 29 de Junho, no fim da terceira semana passada em Pirada:

“Os acontecimentos vão tomando novas formas. Hoje, mais um dia desses. Um grupo dos nossos “amigos” entrou ontem na nossa zona, vindo das suas bases do lado de lá de fronteira. Instalaram-se a uns 6 km daqui. Os chefes estiveram cá hoje a falar com o Comando, em casa de “M.S.”. Tudo correu bem. Preocupação fundamental: não haver o recomeço da guerra, antes ajuda mútua na construção da paz. Não demora que os tenhamos aqui , como já aconteceu com outros, sentados à mesa a comer connosco. É uma situação que jamais alguém previu ou acreditou! Que seja para bem de todos, agora e no futuro.

E mais à frente:
“Por aqui, tudo tem corrido bem. Às vezes, os acontecimentos são mais delicados e deixam os nervos em pé; outras vezes, são mais consoladores, mais prometedores. ...
“Neste momento, o Comandante e alguns oficiais estão para Bajocunda, sítio onde está outra companhia. Foram lá a uma “festa”, por ser dia de S. Pedro. Eu, depois de jantar fui a casa do “M.S”., pois ele tinha mandado recado para eu lá ir; conversámos sobre a reunião da tarde com os elementos do PAIGC. Nada de especial nem de negativo”.
Nada de especial nem de negativo... – terminava assim o meu comentário acerca do encontro com “M.S.”, em sua casa... No dia seguinte, Domingo, 30 de Junho, registei, pelas 7h e 20 m da manhã, este apontamento epistolar:
“Deitei-me cerca da 01h30. O comandante chegou (de Bajocunda) cerca das 02h30. Domingo: dia calmo. Mas Domingo sem missa. Que tristeza, que infelicidade”. 
Mal sabia eu o que a tarde desse dia me reservava: uma das mais intrigantes experiências da minha vida de soldado. O que a perfídia dos homens sem escrúpulos pode tecer para atingir os seus fins!...
Mas, deixemos isso para a próxima “Memória...”.