Feitos e Factos
da "descolonização" da Guiné – 10
Continuo a descrever os factos por mim vividos na Guiné, nesses conturbados tempos de Junho/Julho 1974, em que a famigererada “descolonização” começava a pintar-se com cores de camaleão... Tão depressa mudavam do vistoso verde da esperança para o negro imprevisível da ameaça. Ninguém sabia, de manhã, como a situação se iria apresentar ao cair do dia.
Os acontecimentos iam
tomando matizes diferentes, e com uma rapidez estonteante. Os nervos começavam
a ficar esfrangalhados, naquele clima tropical, na altura seco, mais tarde
chuvoso, onde o futuro deixara de ser programável. Em alguns momentos,
desfrutávamos uma paz consoladora... Mas quando a avioneta chegava de Bissau,
trazendo “M. S.” – cantineiro, comerciante, lá do sítio – sentíamos um calafrio
pelas costas: com a sua presença em Pirada tudo mudava... Ficávamos à espera do
primeiro problema, que não tardava.
Em carta de 26 de Junho de
1974, registei o seguinte apontamento:
“Hoje tive uma longa conversa com dois indivíduos que servem de
intermediários entre nós e o PAIGC. Tenho-me esforçado para que as relações aqui entre os
nossos “vizinhos“ sejam das melhores. O chefe deles é um bocado “torrão“ e desconfiado (referia-me a Q. M., que comandava a guerrilha a norte de Pirada). Domingo, quando vieram
fazer o comício (a que aludi na crónica anterior), vinham armados “até aos dentes“... Mas verificando que
com “outros“, de uma outra zona mais a
sul, as relações são cordiais, eles já se convenceram mais. Agora já querem
entrar na zona de Pirada e prometem vir ao quartel falar connosco. Começaram a
sentir-se atrasados em relação aos outros “camaradas“”.
Os “outros”, eram dois “comissários políticos” (que aqui identifico por) “Tim“ e
“Bar“, de outro escalão de comando, que possuíam um trato diferente, mais
dialogantes e diplomatas – evoluídos. Seriam, por assim dizer, “testas de
ponte” de uma outra dependência, que – como se verificaria mais tarde – viria a
liderar as actividades de ocupação aquando da nossa definitiva retirada.
Mas as coisas continuavam o
seu rumo... Respigo outro apontamento, desses dias, a 29 de Junho, no fim da
terceira semana passada em Pirada:
“Os acontecimentos vão tomando novas formas. Hoje, mais um dia desses.
Um grupo dos nossos “amigos” entrou ontem na nossa zona, vindo das suas bases
do lado de lá de fronteira. Instalaram-se a uns 6 km daqui. Os chefes estiveram
cá hoje a falar com o Comando, em casa de “M.S.”. Tudo correu bem. Preocupação
fundamental: não haver o recomeço da guerra, antes ajuda mútua na construção da
paz. Não demora que os tenhamos aqui , como já aconteceu com outros, sentados à
mesa a comer connosco. É uma situação que jamais alguém previu ou acreditou!
Que seja para bem de todos, agora e no futuro”.
E mais à frente:
“Por aqui, tudo tem corrido bem. Às vezes, os acontecimentos são mais
delicados e deixam os nervos em pé; outras vezes, são mais consoladores, mais
prometedores. ...
“Neste momento, o Comandante e alguns oficiais estão para Bajocunda,
sítio onde está outra companhia. Foram lá a uma “festa”, por ser dia de S.
Pedro. Eu, depois de jantar fui a casa do “M.S”., pois ele tinha mandado recado
para eu lá ir; conversámos sobre a reunião da tarde com os elementos do PAIGC.
Nada de especial nem de negativo”.
Nada de especial nem de
negativo... – terminava assim o meu comentário acerca do encontro com “M.S.”,
em sua casa... No dia seguinte, Domingo, 30 de Junho, registei, pelas 7h e 20 m
da manhã, este apontamento epistolar:
“Deitei-me cerca da 01h30. O comandante chegou (de Bajocunda) cerca das
02h30. Domingo: dia calmo. Mas Domingo sem missa. Que tristeza, que
infelicidade”.
Mal sabia eu o que a tarde
desse dia me reservava: uma das mais intrigantes experiências da minha vida de
soldado. O que a perfídia dos homens sem escrúpulos pode tecer para atingir os
seus fins!...
Mas, deixemos isso para a
próxima “Memória...”.
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