domingo, 17 de fevereiro de 2013

Para que da memória se faça História


Feitos e Factos
da “descolonização” da Guiné – 17




Como já temos vindo a dizer, os acontecimentos relativos à descolonização da Guiné iam tomando, dia a dia, matizes diferentes, imprevisíveis, o que contribuía para arrasar os nervos das nossas tropas. A disciplina degradava-se, mercê da situação psicológica criada nos militares, que, agora, sem actividade operacional e com futuro incerto, ocupavam o seu tempo nas tarefas de serviço diário de escala, em actividades desportivas, ou, livremente, visitando, nas imediações do aquartelamento, o comércio de Pirada
Importa referir que a situação de guerra “quente”  anteriormente vivida, com frequentes ataques aos aquartelamentos, obrigava a que estes se configurassem a um dispositivo disperso de segurança, ou seja: os pelotões estavam disseminados ao redor de toda a povoação, em abrigos cavados no terreno (bunkers), com os efectivos a guarnecer armas pesadas de infantaria e de artilharia, para defesa contra as flagelações do inimigo. Este, possuindo já artilharia de foquetões (mísseis) dirigidos, terra a terra ou terra - ar, desenvolvia os seus ataques desde alongadas distâncias, que as nossas armas de defesa tinham dificuldade em vencer (morteiros, artilharia de 8,8 cm, 14cm, 11,4 cm, e peças de 9,4 cm).
A este propósito, é oportuno lembrar que no próprio dia 25 de Abril de 1974, enquanto em Lisboa decorriam as operações do golpe de Estado, Pirada sofria um violento ataque, de cuja “memória”, e com a devida vénia ao autor do blog “blogueforanadaevaotres.blogspot.pt”, aqui se transcreve um excerto do registo nele deixado pelo então 1º cabo atirador, Joaquim Vicente da Silva:
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“Eram mais ou menos dez e meia, eu já tinha tomado banho e estava no meu quarto, abrigo nº. 1, deitado em cima da minha cama e ouvi um pequeno estalido. Um colega que estava cá fora sentado num banco, gritou logo:
-Saiam para a vala que isto é o início de um ataque!...
Naquele dia o PAIGG bombardeou Pirada com muitos mísseis e morteiros, alguns caíram bem perto do local onde eu me encontrava, eu não morri por sorte. A meu lado, morreram três africanos nossos colegas, um míssil caiu-lhes aos pés e cortou-os em pedaços. Nunca tinha visto nada daquilo. Fiquei horrorizado, ainda hoje mexe comigo.
Nós, soldados brancos, não morremos nenhum, porque estávamos bem agachados nas valas ou trincheiras. Vieram juntar-se a nós vários oficiais, incluindo o alferes médico que nos disse para nos espalharmos mais pelas valas porque aquilo estava a ficar feio.
Este bombardeamento durou cerca de duas horas. Nós respondemos com os morteiros 81, os nossos obuses 10.5 e o nosso obus 14 que estava junto ao aeroporto de Pirada.  Bajocunda também nos deu apoio de fogo com o obus 14 deles. Foi um inferno. Só se ouviam bombas a voar, outras a assobiar e a rebentar por cima ou perto de nós.”
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Mas a guerra tinha efectivamente terminado... A luta armada, que não os problemas sobrevindos!
A paz efectiva, tem de ser construída, porque não pode fundamentar-se na simples determinação e vontade do mais forte. E não estávamos nós já, nas circunstâncias presentes, em situação de pensar que detínhamos  a supremacia da força – nem a força moral, e nem, muito menos, a das armas. Por isso, os problemas continuavam a surgir a cada momento.
O nosso relacionamento com os elementos do PAIGC desenvolvia-se em termos amistosos. Falávamos a mesma língua – o Português – embora alguns, a princípio, preferissem o crioulo, que logo era abandonado, ultrapassadas as primeiras barreiras da desconfiança. Mesmo assim, o imprevisto estava sempre a dar cabo dos nossos nervos. Não era fácil convencer aquela gente, e principalmente aqueles que pegaram em armas para, a nosso lado, defenderem o seu chão. De um dia para o outro, tudo tinha mudado. Íamos entregar o património sócio-histórico e cultural nas mãos daqueles que até aí nos tinham combatido... Inacreditável! A retaguarda, a milhares de quilómetros de distância, tinha abalado os alicerces de um povo, que se via agora diante de uma perspectiva de futuro desconhecido. Era preciso, pois, convencer o povo – esse povo que tanto tinha apostado na politica de Spínola, com rumo a um futuro risonho e livre – de que, afinal, o “Inimigo” é que tinha “razão”!... Uma reviravolta! Para alguns, ou mesmo para muitos, uma “traição”!
Entretanto, o PAIGC continuava a desenvolver a sua “Psico”, através de reuniões, comícios, manifestações públicas, cortejos de propaganda... O Administrador – um branco – temendo pela fragilidade da sua segurança (não estava nas boas simpatias do já referido e influente M. S.), afastou-se definitivamente do seu posto e função. Deixou de ser visto em Pirada, presumindo-se que tenha “regressado” a Lisboa... A substituí-lo, ficou o seu adjunto, um natural, que rapidamente se integrou nas actividades do “Partido”.
Tudo se sucedia a uma velocidade impressionante... As ocorrências do dia a dia ultrapassavam todos os nossos planos e previsões. A disciplina dos nossos militares degradava-se, e alguns episódios graves iam surgindo a escaparem à nossa capacidade de controlo. Entretanto, apareceu em Pirada um soldado comando (preto), vindo de Bissau, a pedir satisfações ao Comando do batalhão pelo que tinha acontecido ao seu irmão – o milícia que tinha sido retido pelo PAIGC com o negociante de carne, já aqui referidos em crónicas anteriores.
Mas deixemos este e mais outros factos para a próxima conversa...