sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Para que da memória se faça História





Feitos e Factos
da “descolonização” da Guiné – 14

Na Quarta-feira, dia 3 de Julho de 1974, e no rescaldo dos acontecimentos já relatados na crónica anterior, registava eu, a finalizar num aerograma a enviar para a família:
“...de madrugada, os tipos levantam o acampamento, roubam as armas de três destacamentos (de milícias), na passagem, e fogem para o Senegal, levando os dois homens. Vimo-nos e desejámo-nos para aguentar em calma as milícias e tropa africana (da guarnição) de Pirada, a respeito de tudo isto, pois já na 2ª.-feira à noite eles queriam marchar sobre o acampamento do PAIGC. Evitámo-lo. E de noite (de madrugada) acontece aquilo!... Isto contraria toda a politica do partido e tudo o que se está a viver nos outros pontos da Guiné. Temos passado horas de nervos e de tensão. Não há dúvida que esta paz é talvez pior que a guerra” (sic).
 Os acontecimentos começavam a entrar numa espiral estonteante, de perigosidade crescente e de horizontes imprevisíveis. As conversações de Londres do governo português com o PAIGC, iniciadas a 25 de Maio, tinham sido interrompidas a 31 do mesmo mês. Tudo era obscuro e incerto, e a capacidade de combater, por parte das forças portuguesas, na conjuntura decorrente, estava reduzida a zero. Impressionante, a verdade estratégica de que o melhor meio de vencer o “inimigo” é atacá-lo na retaguarda... E isso tinha-lhe sido oferecido, de mão beijada, com o golpe de Estado ocorrido em Lisboa, cerca de três meses antes. As forças combatentes, na frente de operações, viram o chão fugir-lhes debaixo dos pés, e podia ter-se repetido o cenário dramático de La Lys, em qualquer ponto onde os militares portugueses pretendessem, por insensatez, defender à outrance, a sua Bandeira. A história nua e crua, imparcial e factual, ainda não está feita... E é pena!
Ora, na Terça-feira, dia 2, logo de manhã, reuni com o povo que tinha abandonado as suas tabancas e terras e procurado, durante a noite, acolhimento na área do Comando, em Pirada. Foi difícil encontrar palavras para justificar a situação e para lhes dar alguma confiança, num futuro que se avizinhava problemático. Entretanto, os acontecimentos haviam sido já relatados para o Comando-chefe, em Bissau. Mas, novos problemas apareceram a complicar o estado critico em que já navegávamos...
Uma companhia do nosso batalhão, posicionada em Buruntuma, fronteira leste, recebera no dia 2, um ultimato dos “nossos amigos” para retirar (abandonar a posição) dentro de 24 horas. Neste andar dos acontecimentos, que iam em crescendo como bola de neve, esperávamos a todo o momento que uma pretensão do género nos fosse também comunicada.
No dia 3, pelas 14h00, tinha o comandante saído para Nova Lamego, a fim de contactar o comando de outra Unidade, quando o nosso já conhecido M. S. – enigmático comerciante do “burgo” – entrou no meu gabinete, com ar misterioso, a informar-me que o PAIGC ia mandar-nos nesse mesmo dia um ultimato para desarmarmos as nossas milícias e tropas africanas. Outro informador veio trazer-nos a notícia de que o PAIGC preparava um ataque a Pirada... Nada disto se veio a concretizar, e estas informações – a nosso ver – não eram mais do que testes à nossa capacidade de gerir os acontecimentos, para avaliar a reacção consequente. Maquiavélico!
No dia 4 – Quarta-feira, e em consequência dos nossos relatórios de situação para o Comando-chefe, em Bissau, chega a Pirada o Brig. Fabião. Na fronteira, estabelece contacto com um dos quadros do PAIGC, e, a respeito de Buruntuma, diz-lhe que não precisam de fazer ultimatos, que quando quiserem que a gente retire de determinada posição é só comunicar, que as nossas forças abandonam o local... “A guerra acabou” - disse! Quanto aos 2 homens que o PAIGC reteve, informaram que eles estão bem (mas continuam com eles...).
No dia seguinte, dia 5, o PAIGC fez saber que pretendia entrar de novo na nossa área e reocupar a posição que dias antes tinham abandonado. Queriam passar pela estrada e interior de Pirada. Fiz-lhes saber que isso poderia motivar reacções adversas por parte da população, bem como das tropas africanas e milícias... Resolveram, então, penetrar no território a corta-mato, por fora da área do aquartelamento e da povoação. E deste modo voltou a “ser tudo como dantes, quartel-general em Abrantes”, como soe dizer-se (só que... não mais largaram mão dos dois “detidos”!...)
Estava tudo a correr “muito bem”..., até que, ao fim do dia, um milícia, muito influente, começou a causar problemas... Foi fazer reunião com outros para a tabanca (povoação)... e nós ficámos apreensivos à espera de uma reacção imprevisível...
E foi nesse clima, quente e reactivo, que recolhi ao quarto para algum descanso, sempre à espera do que poderia vir por aí... E a G3, à mão de semear, voltou a ficar pronta a disparar, junto à cabeceira. 

Para que da memória se faça História




Feitos e Factos 

da “descolonização” da Guiné – 13



Chegado ao aquartelamento, com a alma de rastos, e sem poder avaliar o futuro imediato, logo me aprestei a pôr o comandante, que me esperava com ansiedade, a par de tudo o que se tinha passado.
O ten-coronel Matias (já de saudosa memória), cavaleiro de “peido e coice”, segundo a gíria de sua preferência, era homem que não perdia a calma. Ouviu todo o meu relato com compreensão, mas também muito preocupado. Conversávamos os dois, na parada, frente à messe, noite escura, apenas cortada com alguma ténue iluminação periférica, quando se ouve o “zum-zum” de um grande número de gente que se aproximava pela estrada, vindo do interior da povoação em direcção ao quartel.
Logo nos apercebemos de que se tratava de população que vinha tirar satisfações sobre os dois homens que não haviam regressado connosco das conversas com os guerrilheiros do PAIGC. Notando a perigosidade da situação, deixou escapar a meia voz o desabafo (em calão): - Estamos “cozidos”!...
A multidão entrou no recinto, e veio ao nosso encontro, que a aguardávamos, impávidos e (quanto possível) serenos. Um dos elementos que me tinha acompanhado ao acampamento do PAIGC e era fiel colaborador da nossa causa, liderou a comunicação invectivando o procedimento do PAIGC e exigindo explicação sobre qual ia ser agora a nossa reacção, para que os dois “detidos” pelo “Inimigo” fossem libertos. Mais, o povo estava disposto a avançar sobre o acampamento do PAIGC para resgatar os detidos. Seria uma decisão de consequências desastrosas...
De imediato, o meu comandante – que beneficiava de uma grande consideração por parte do povo – tomou, em resposta, a palavra, num discurso tão eloquente, que eu próprio fiquei admirado por aquele “golpe de rins” verbal, que tranquilizou as hostes em protesto. Resumindo, o ten-coronel Matias, sublinhou a traição de que tínhamos sido objecto; apelou aos seus créditos de amigo daquela gente, a quem, como comandante do batalhão, ali em Pirada, estivera sempre pronto a prestar-lhe a melhor ajuda, e prometeu envidar todos os esforços para que a situação fosse resolvida, de modo a regressarem à população os dois elementos detidos. E a turbamulta foi-se desfazendo, saindo dali, até que ficámos sozinhos.
...Sozinhos, mas muito apreensivos quanto ao desenrolar dos acontecimentos imediatos, sem poder prever o dia seguinte.
Entre nós, ali na messe, encontrava-se, como “hóspede”, o comissário politico “Bar”, já referido no nosso “apontamento” nº. 7. Apercebeu-se da situação, sem interferir, e, nessa noite, deixou-nos, de bicicleta, no intuito de – assim pensámos – tomar qualquer iniciativa que pudesse contribuir para, a nível superior dos seus quadros, minimizar o diferendo entretanto surgido... Simplesmente, nunca mais vimos o “Bar”, nem ficámos a saber o que poderá ter feito... para nos ajudar.
Recolhi já tarde aos meus aposentos, debaixo daquele clima nocturno, pesado pela temperatura tropical, e desgastante da sensibilidade do espírito. Encostei à cama, em posição de fácil apanha, a espingarda G3, carregada e com bala na câmara, pronta a utilizar... Debaixo da travesseira, a pistola, também em condições de rápido manejo. No topo do quarto, a cama do capitão B., comandante da 3ª. companhia, adjunta ao comando do batalhão... Dormia ele a sono solto, sem ajuizar do “inferno” em que poderíamos estar metidos.
Deitei-me, cansado mas com sono disperso pelos nervos tensos e em alerta... No chão, a espiral de “mosquito killer” que entretanto acendera, ia ardendo em morrão lento e fumegante, espalhando no quarto um cheiro acre, activo, de modo a afugentar a mosquitada... Pela janela de rede, notava que, lá fora, de vez em quando, o soldado de guarda, um natural, assomava ali a tentar observar o interior do quarto, com certa ironia expressa em disfarçadas tossidelas. De qualquer modo, fui sendo vencido por algum sono intermitente. Até que...  
Cerca das duas horas da madrugada, o soldado nativo que fazia sentinela nas imediações, veio chamar-me à porta do quarto, em voz baixa: Mê capitão!”... “Mê capitão!...
De um salto, fui à porta, empunhando a pistola, e perguntei: Que é?!...
Logo o soldado me deu parte de que a população de Deagobu, um dos aldeamentos em autodefesa (milícias) da periferia da área do comando do batalhão, estava à entrada do arame farpado, no posto de “controlo”, a dizer que o PAIGC tinha passado pela tabanca, levado as armas e o rádio, e que o povo, com medo de mais represálias, tinha vindo para Pirada, e pedia para ali ser recolhido em segurança. Fui inteirar-me da situação, recolher o povo, e prometi encarar o caso na manhã seguinte.
Voltei para o meu quarto, a tentar conciliar o descanso, mas, passados momentos, nova chamada da sentinela: outra aldeia sofrera a mesma interferência dos “nossos amigos”. Repeti o procedimento anterior. Mas dentro de pouco tempo fui de novo chamado: desta feita, foi a vez do terceiro pelotão de milícias, a contar história similar às anteriores.
O que se passara então?...
A força do PAIGC acampada a sul de Pirada, onde tínhamos passado a amena tarde de Domingo e a conturbada 2ª. Feira seguinte, após ter tomado conhecimento da agitação, à noite, em Pirada, pelo não regresso dos dois homens retidos naquele acampamento, e temendo possíveis represálias, resolveu “levantar ferro” e retirar, de noite, para o Senegal. Mas não o fez sem antes passar pelos pelotões de milícias e confiscar o armamento e os meios de transmissões de que estavam equipados. Sentindo-se, desse modo, ameaçados, os componentes desses pelotões e seus familiares apressaram-se a procurar refúgio e protecção no Comando do Batalhão.
A situação estava, assim, a degradar-se perigosamente. Nestas circunstâncias, que fazer?!... Guerra aberta?... Impossível! Diplomacia política?... O quê, e como?!...

Para que da memória se faça História



Feitos e Factos
da “descolonização” da Guiné – 12

Com o coração apertado e um horizonte sombrio nas esperanças da mente, depois do almoço lá partimos de novo para o acampamento do PAIGC, na mira de recolher, conforme o combinado, os dois homens que havíamos levado e ali deixados de manhã... Acompanharam-me dois elementos do “povo”, dois jovens muito activos e nossos colaboradores, mas vigilantes e apreensivos quanto ao desenrolar dos acontecimentos. Um destes dois era, até, elemento muito treinado e importante para as nossa tropas, pois, antes, havia sido utilizado em operações especiais de anti-guerrilha em território do outro lado da fronteira.
Chegados ao acampamento do PAIGC, a situação, aparentemente, continuava sem alteração. Iniciámos os contactos, no sentido de recolhermos os dois homens, ali deixados de manhã, e o ambiente começou a toldar-se, face à posição assumida pelos meus interlocutores. Disseram que eles tinham confessado os seus erros e que por isso não podiam continuar em Pirada. Não podia, assim, levá-los de regresso,
Todo o mundo desabou debaixo de meus pés. Eu via no rosto dos meus acompanhantes um disfarçado desagrado. Começavam a sentir-se traídos, por termos levado aqueles dois elementos do povo às garras do “inimigo”. De repente, as boas graças com o PAIGC começavam a enfraquecer, ou melhor: a sua autoridade tentava sobrepor-se à nossa responsabilidade.
Vi-me e desejei-me para convencer os meus interlocutores de que os seus receios não tinham fundamento, e que tudo se modificaria, nas nossas relações, se eu regressasse a Pirada sem levar comigo as pessoas que ali tínhamos conduzido, de manhã, para esclarecimentos. Um dos chefes, o mais influente em termos de argumentação, severamente agastado e loquaz, chegou a traçar no chão, com um pequeno pau, uma linha recta e uma linha quebrada, para explicar que o nosso relacionamento, que até ali tinha sido rectilíneo, de amizade e confiança, dali em diante passava a ser como linha quebrada: de confiança e desconfiança; de bons e de maus momentos...
Após penosos minutos, em que me esforcei para que a diplomacia das palavras e das intenções vencesse qualquer hipótese de força, que, de qualquer modo, não estávamos em condições de enfrentar (seria um desastre total), e sob promessa de que, levando os dois homens comigo, me comprometia a convencer o comandante de Batalhão a passar-lhes “guia de marcha” para fora de Pirada, lá consegui obter permissão para resgatar os “detidos”. Afigurava-se-me, então, que o negrume da situação começava a dissipar-se...
Parecia!...
Até que, inesperadamente, vindo não sei de onde, por entre as árvores da floresta, uma nova personagem chegou, de bicicleta, e quedou-se a cerca de 50 metros de distância. Dando conta do facto, os elementos que estavam a dialogar comigo ficaram um pouco agitados, interromperam a conversa, e dirigiram-se ao encontro do recém-chegado. Apercebi-me de que era um outro guerrilheiro de patente superior. Passados alguns minutos, regressou o meu interlocutor ao contacto, e trouxe-me a notícia de que os dois homens, afinal, não podiam regressar a Pirada, e que a parir daí as nossas relações iriam ficar mais enviesadas. Que podia ir embora...
E foi deste modo, abrupto, preocupante, que demos por terminado o encontro. Regressámos, então ao quartel. Um dia negro, mais negro na alma do que o negrume da noite que entretanto caíra.
Ao entrar na povoação, e durante o percurso, desde a barra do “Controlo” até ao quartel, notávamos que o povo permanecia em grupos, expectante, ao longo das tabancas. Depressa se aperceberam que... não trazíamos connosco os dois homens. Os meus dois acompanhantes pediram para, entretanto, se apearem, e eu continuei até ao Comando do batalhão, onde todos me esperavam cheios de ansiedade. Foi com o coração derrotado que comuniquei ao meu comandante o insucesso da diligência. O encontro iniciado na harmonia de uma tarde de Domingo, tinha-se prolongado numa segunda-feira negra, num cenário de imprevisíveis consequências. Maquiavel, não teria orquestrado melhor a sua estratégia, para alcançar os seus inconfessáveis desígnios. A guerra psicológica é bem mais subtil que a força das armas, e mais desgastante, pelos seus ocultos e perigosos meandros.
Mas deixemos em suspenso o resto destas negras memórias, de uma “descolonização exemplar”, até ao próximo número, que recordar o passado, quando ele é doloroso, nem sempre é agradável à sensibilidade do espírito.

terça-feira, 7 de agosto de 2012

Para que da memória se faça História


Feitos e Factos
da “descolonização” da Guiné – 11

Logo depois de almoço, naquele Domingo, apareceu na messe o “M. S.” – o já referido comerciante – eufórico, a convidar-me para irmos ao acampamento do Paigc conversar e confraternizar com eles... Sugeriu que levasse umas bebidas, para o efeito. Um dos oficiais subalternos, que ouviu a conversa, ficou entusiasmado, e ofereceu-se logo para me acompanhar. Nós de jeep, o M.S., em viatura própria. Não gostei nada da ideia, pois logo desconfiei que algumas coisa me não “cheirava bem”... Mas lá fomos, pois recusar o evento, seria um acto de más “relações públicas”, e, naquele caso conjuntural, desaconselhável como negativo tacto político.
Chegados ao acampamento dos “nossos amigos”, a cerca de 4 km a sul de Pirada, receberam-nos com abraços e a pergunta sacramental “corpo, bom?”, maneira peculiar de cumprimentar naquele solo africano. Decorreram alguns momentos de efusiva conversa, e de boa disposição, sempre na perspectiva de que a guerra tinha acabado, e que a paz e a concórdia começavam a mostrar-se uma realidade garantida.



Porém, pouco tempo depois, aquele clima de boa disposição foi interrompido por um emissário que chegou ao local, a dar notícia de que, em Pirada, andava um elemento das milícias a dar vivas à FLING, e meteu também no mesmo saco das suspeitas um outro conhecido homem da população, que detinha o negócio da carne de bovino – o talhante. O primeiro, o “milícia”, tinha um irmão militar, em Bissau, nos “Comandos”, e por isso era tido, pelo Paigc, como “persona non grata”; o segundo, matava gado e vendia carne à tropa, mas havia no vulgo “queixas” de que ele nada fornecia ao povo. Por isso, tudo indicava que este episódio rocambolesco não passaria de uma tramóia “diabolicamente” orquestrada para um ajuste de contas pessoais, vinganças oportunistas, ou manobras tácticas de uma estratégia encapotada que começava a delinear os seus contornos. E esta situação exigia muito tacto, pois não estávamos, já, em condições de supremacia.   
“Todo o caldo se entornou”, então!... Desfez-se o clima de bem-aventurança que, por momentos, tínhamos vivido ali. Os elementos do Paigc, inquietos, queriam ir a Pirada prender os dois personagens, pois, para eles, ouvir falar na Fling, era o mesmo que falar ao diabo na cruz! (A Fling – Frente de Libertação Nacional da Guiné – era o movimento que tinha iniciado a luta pela independência do território, e por isso era hostil ao Paigc). Entretanto, na confusão, e talvez para “ver” o que se passava na povoação, “M.S.” desapareceu da cena. Vi-me e desejei-me para dominar a contenda, não sem prometer que no dia seguinte, eu e o comandante de batalhão, levaríamos os dois indivíduos à presença deles (Paigc), pois os meus interlocutores exigiam falar-lhes e “esclarecê-los”.
Assim acabou a “festa”, de modo tão insólito. Comecei a compreender que tudo tinha sido programado com perícia... O “maquiavelismo” em acção. A paz que se esperava fosse consolidada em harmonia, começava a mostrar os seus espinhos, e o futuro adivinhava-se de negra imprevisão.
Regressados, em frustração, ao quartel, dei conta ao comandante da Unidade do modo como tudo tinha decorrido. A preocupação nossa era notória. Havia a sensação de que a perfídia começava, como cobra rastejante, a enroscar-se ameaçadoramente à nossa volta. Ficou, então, combinado que, na manhã seguinte, iríamos fazer uma visita aos pelotões de milícias, e, com esse pretexto, levaríamos os dois homens connosco... Passaríamos pelo acampamento do Paigc e eles ficariam ali para o desejado esclarecimento, enquanto nós continuaríamos o périplo pelos pelotões de milícias, em visita de rotina. Estes pelotões não eram nada mais do que as várias povoações organizadas em autodefesa, espalhadas pela nossa área de responsabilidade.
Depois de uma noite mal dormida, com o peso do desconhecido sobre os ombros, logo de manhã cedo nos aprestámos para, num jeep, cumprirmos o nosso plano. Levámos connosco os dois protagonistas da polémica (o milícia e o magarefe). Chegados ao acampamento do Paigc, fomos recebidos amistosamente, e um dos seus elementos de comando pediu até desculpa de não ter “a guarda formada” para prestar as devidas honras ao comandante. Ironia ou delicadeza?!... Talvez a segunda.
Ficou combinado, então, que iríamos prosseguir a nossa missão de rotina, e que ao meio dia, no regresso, por ali passaríamos de novo para recolher os dois homens, com quem eles queriam falar, a fim de os esclarecer sobre a nova situação presente no território.
Cumprida a nossa tarefa, voltámos ao local, à hora aprazada. Perplexidade! Disseram-nos que “ainda não tinham falado com eles”...  As coisas começavam a complicar-se. Ficou, assim, assente que, de tarde, eu próprio os iria lá buscar, e regressámos a Pirada, com alguma negrura na alma. Ao entrarmos na povoação, sozinhos, atraímos os olhares de angústia interrogativa daquele gente. Os dois homens... não vinham connosco!... Que se passava?!...
Para tranquilizar aqueles que logo nos vieram pedir explicações... tivemos de dizer que, de tarde, os iríamos buscar, mas a desconfiança começava a instalar-se entre as hostes... E, ainda a procissão não tinha saído do adro (como soe dizer-se).
Mas, deixemos o resto para a próxima crónica... 

Para que da memória se faça História


Feitos e Factos 

da "descolonização" da Guiné – 10





Continuo a descrever os factos por mim vividos na Guiné, nesses conturbados tempos de Junho/Julho 1974, em que a famigererada “descolonização” começava a pintar-se com cores de camaleão... Tão depressa mudavam do vistoso verde da esperança para o negro imprevisível da ameaça. Ninguém sabia, de manhã, como a situação se iria apresentar ao cair do dia.

Os acontecimentos iam tomando matizes diferentes, e com uma rapidez estonteante. Os nervos começavam a ficar esfrangalhados, naquele clima tropical, na altura seco, mais tarde chuvoso, onde o futuro deixara de ser programável. Em alguns momentos, desfrutávamos uma paz consoladora... Mas quando a avioneta chegava de Bissau, trazendo “M. S.” – cantineiro, comerciante, lá do sítio – sentíamos um calafrio pelas costas: com a sua presença em Pirada tudo mudava... Ficávamos à espera do primeiro problema, que não tardava.
Em carta de 26 de Junho de 1974, registei o seguinte apontamento:
“Hoje tive uma longa conversa com dois indivíduos que servem de intermediários entre nós e o PAIGC. Tenho-me esforçado para que as relações aqui entre os nossos “vizinhos sejam das melhores. O chefe deles é um bocado torrão e desconfiado (referia-me a Q. M., que comandava a guerrilha a norte de Pirada). Domingo, quando vieram fazer o comício (a que aludi na crónica anterior), vinham armados até aos dentes“... Mas verificando que com “outros“, de uma outra zona mais a sul, as relações são cordiais, eles já se convenceram mais. Agora já querem entrar na zona de Pirada e prometem vir ao quartel falar connosco. Começaram a sentir-se atrasados em relação aos outros “camaradas“.
Os “outros”, eram dois “comissários políticos” (que aqui identifico por) “Tim“ e “Bar“, de outro escalão de comando, que possuíam um trato diferente, mais dialogantes e diplomatas – evoluídos. Seriam, por assim dizer, “testas de ponte” de uma outra dependência, que – como se verificaria mais tarde – viria a liderar as actividades de ocupação aquando da nossa definitiva retirada.
Mas as coisas continuavam o seu rumo... Respigo outro apontamento, desses dias, a 29 de Junho, no fim da terceira semana passada em Pirada:

“Os acontecimentos vão tomando novas formas. Hoje, mais um dia desses. Um grupo dos nossos “amigos” entrou ontem na nossa zona, vindo das suas bases do lado de lá de fronteira. Instalaram-se a uns 6 km daqui. Os chefes estiveram cá hoje a falar com o Comando, em casa de “M.S.”. Tudo correu bem. Preocupação fundamental: não haver o recomeço da guerra, antes ajuda mútua na construção da paz. Não demora que os tenhamos aqui , como já aconteceu com outros, sentados à mesa a comer connosco. É uma situação que jamais alguém previu ou acreditou! Que seja para bem de todos, agora e no futuro.

E mais à frente:
“Por aqui, tudo tem corrido bem. Às vezes, os acontecimentos são mais delicados e deixam os nervos em pé; outras vezes, são mais consoladores, mais prometedores. ...
“Neste momento, o Comandante e alguns oficiais estão para Bajocunda, sítio onde está outra companhia. Foram lá a uma “festa”, por ser dia de S. Pedro. Eu, depois de jantar fui a casa do “M.S”., pois ele tinha mandado recado para eu lá ir; conversámos sobre a reunião da tarde com os elementos do PAIGC. Nada de especial nem de negativo”.
Nada de especial nem de negativo... – terminava assim o meu comentário acerca do encontro com “M.S.”, em sua casa... No dia seguinte, Domingo, 30 de Junho, registei, pelas 7h e 20 m da manhã, este apontamento epistolar:
“Deitei-me cerca da 01h30. O comandante chegou (de Bajocunda) cerca das 02h30. Domingo: dia calmo. Mas Domingo sem missa. Que tristeza, que infelicidade”. 
Mal sabia eu o que a tarde desse dia me reservava: uma das mais intrigantes experiências da minha vida de soldado. O que a perfídia dos homens sem escrúpulos pode tecer para atingir os seus fins!...
Mas, deixemos isso para a próxima “Memória...”.

sexta-feira, 6 de julho de 2012

Para que da memória se faça História


Feitos e Factos
da “descolonização” da Guiné – 9


Em carta de 25 de Junho de 1974, escrevia eu:
“... a “guerra” está parada... E julgo, realmente, que não recomeçará... pois isto chegou a um ponto em que seria um desastre continuar a guerra, e ninguém o pensa fazer, nem quer. Tanto nós, como o próprio PAIGC (Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde). O problema é que há certas facções que são anti-PAIGC, e a favor de uma terceira força, a FLING (Frente de Libertação e Independência Nacional da Guiné)... As nossas milícias e tropas africanas, temendo represálias do PAIGC, quando a Guiné ficar independente, pendem para o lado da FLING... e é esse o nosso perigo, que surja uma nova guerra na Guiné, entre a FLING e o PAIGC, deixando-nos no meio de uma posição dificílima... Não me admira nada que num futuro provável tenhamos de pegar em armas ao lado do PAIGC! Seria o cúmulo, mas é uma realidade que não é apenas vista pelos meus olhos. As milícias e tropas negras andam desconfiadas e preocupadas quanto ao seu futuro. Até por que agora nos vêem de braço dado com os elementos do PAIGC, e dizem que os brancos se estão a deixar enganar, e que também os enganamos a eles, milícias e tropas africanas”.
 Esta era a realidade nua e crua, e o tempo viria a confirmar as previsões, por desconfiança mas lúcidas, do povo africano da Guiné que tinha vivido à sombra da Bandeira de Portugal: ajuste de contas, lutas intestinas pela hegemonia do poder; golpes de estado; assassínios; ingovernabilidade; pobreza; miséria.
Os militares que protagonizaram na sua génese (na Guiné) o “movimento” que levou ao “25 de Abril”, nunca pensaram, com certeza, neste futuro do solo e do povo que tinham obrigação de defender (para não referir já o futuro de uma Nação). E se, pelo contrário, alguma vez o admitiram..., então, não podem jamais fugir ao julgamento da História. As contas são fáceis de fazer, se nos é dado medir a responsabilidade moral e patriótica pela matemática dos efectivos: desmobilizámos 17 000 homens que, armados, defendiam o seu “chão” da guerrilha inimiga, contra uma força de apenas 7 000 guerrilheiros. Tinham razão os nativos, para desconfiar do seu futuro. Pesa-nos o fardo do abandono, para não usar, aqui, o da “traição”. Há, porém, quem lhe dê outro nome: “Descolonização Exemplar”!
Mas... continuemos a crónica.
Quando no dia 23 de Junho de 1974 se pensou fazer a festa da FAP (Força Aérea Portuguesa), a que já nos referimos em “memória” passada, o cmdt do Batalhão havia apontado o almoço para a “bolanha”, local aprazível, à sombra de mangueiras, um pouco mais a sul da nossa posição, a caminho para Nova Lamego. Só que, o “Inimigo” também tem as suas “Informações” (hoje, por causa do caso das “Secretas”, todo o leitor saberá o que isto significa...), e por certo soube dos nossos intentos. Então, resolveu, sem dar “cavaco” (manobra de força, intencional?...), instalar-se, por vias paralelas, no nosso tão apetecível e pretendido local, para aí – escudado por uma força de 80 homens armados de kalashnikov – proceder a uma sessão de esclarecimento para os naturais (comício).
Aprestei-me a contactar o “chefe” dos “invasores”, um “comissário politico”, B. C., que, no momento só falava “crioulo” (intencionalmente, para manter as distancias...), e, mais tarde, verifiquei que “também” falava português fluente. Não consegui, contudo, demover os “ocupantes” a optarem por outro sítio... Afinal, aquilo não era, já, deles?!... Que autoridade mais tínhamos nós, na circunstância, para “puxar a brasa para a nossa sardinha”?...
Por causa disto, houve um ajustamento de planos, e o convívio militar transferiu-se para as instalações do nosso já referido e influente comerciante “M. S.”, de Pirada. Hoje podemos perguntar: não teria sido esta manobra de diversão já previamente cozinhada pelo enigmático mas influente “M. S”.?
E foi aí que nos reunimos todos, oficiais, sargentos, praças, e, até, elementos do PAIGC. Era a “apologia cénica” da paz e da concórdia; ou, se quiserem, um “ritual celebrativo” do fim da guerra, ainda que de efeito periclitante.
Entretanto, a alguns quilómetros dali, na bolanha, processava-se uma outra “catequese”... A “psico” do PAIGC às populações, a confirmar a “conquista”.
Escrevi, nessa altura:
“Isto tudo que tenho aqui vivido em Pirada, principalmente nestes últimos dias, tanto no aspecto positivo como no aspecto negativo, como no aspecto “dúbio”... dava muito que falar”...
Então, não falemos mais, por hoje. Fiquemos por aqui, à espera do “sol” e das “nuvens negras” dos próximos “capítulos”... 





Para que da memória se faça História


Feitos e Factos
da “descolonização” da Guiné – 8


Vou continuar a deixar por aqui alguns apontamentos desta nossa história recente. Sirvo-me do apoio da “memória”, mas reconheço que com o passar dos anos a memória vai apenas deixando salientes os factos que mais nos marcaram, e esses persistem no “arquivo” como luzeiros que depois nos puxam outras lembranças já atiradas para o chamado “arquivo morto”, ou “inactivo” – o subconsciente e o inconsciente.
Corremos também o perigo de sermos atraiçoados pela “nossa” memória, e, quando trazemos à sua ribalta alguma recordação, as imagens arquivadas podem induzir-nos em erro, ou, como nos sonhos, desfigurarem a realidade e nos levarem a tomar como verdade o que apenas é semelhante ou aparente.
Descrever a História, não é coisa fácil. Dificilmente o historiador – aquele que investiga e conta os factos da História – diz a verdade factual. Porquê? Porque ao arrumar todas as pedrinhas da descoberta para interpretar a construção feita, fica ele refém da sua formação intelectual, moral e ideológica, e, assim, a sua personalidade influencia as conclusões a que chega. Pode ser sua convicção que os factos sejam “assim”, mas também pode a realidade ser “de outro modo”.
Edgar Morin dá-nos exemplo disso, por experiência própria, no início da sua obra “As grandes questões do nosso tempo”, quando é confrontado a testemunhar um acidente de automóvel, num cruzamento onde ele aguardava que o semáforo, em vermelho, passasse a verde, para continuar o percurso que seguia... Afirmava ele “a pés juntos” que a ocorrência – que tinha visto - tinha sido como descrevia, mas – perplexidade sua! – ficou provado que tudo se tinha processado de outro modo.
É assim. Todos temos experiência pessoal de que não só “a memória nos atraiçoa”, como também a nossa visão (não é só no deserto que podemos ter miragens...). É por isso que para escrever estes apontamentos me vou socorrendo, não do que foi “escrito na pedra”, mas da correspondência familiar que fui mantendo... – uma verdadeira “fonte da História”.
Pois bem. E então o que descobri, e disso já a memória me ia ficando envolta em nevoeiro (a idade não perdoa! – dizia-me há tempos um muito amigo meu)? Vou transcrever, textualmente, de uma carta de 7 de Junho de 1974, escrita aquando do meu percurso de Bissau até ao meu destino:
... “E, assim, aqui chegámos, para continuar amanhã, talvez, ou Domingo, mas talvez seja mesmo amanhã, até Pirada. Aqui, em Nova Lamego, estamos no quartel de um batalhão. Boas instalações. A cidade é mais à frente, e há lá mais tropa. Encontrei aqui dois soldados que foram meus recrutas no GACA 3 e um cabo, o da messe, que era lá estofador. Encontro também aqui um alferes de Fufim, que parece é ainda sobrinho do Sr. Elísio. Dá-se com o Barbosa. Foi meu aluno de ginástica no Colégio, em 1965. Chama-se Ribeiro dos Santos. É família dos Costas da Santa Marinha e dos Cavadas de Fufim” (sic).
Como o mundo é pequeno!... E como este Portugal de então era tão grande no espaço, e tão próximo nas almas!... Mas há mais: já regressado a esta nossa terra, longe dos cenários da guerra, tornei a encontrar o “Alferes” Ribeiro dos Santos – o Dr. Ribeiro dos Santos, agora meu vizinho e prezado amigo. Fui catequista dos filhos, e muito prezo a consideração mútua com esta família. Este nosso encontro nas longínquas paragens da Guiné, dessa martirizada Guiné que foi terra de Portugal, havia, de facto, ficado escrito na “pedra” do papel, para que a Memória o não deixasse no olvido dos tempos. 

quinta-feira, 3 de maio de 2012

Para que da memória se faça História



Feitos e Factos da “descolonização” da Guiné – 7




Os acontecimentos, em Pirada, desenvolviam-se a ritmo alucinante e imprevisível. O futuro era uma incógnita, desgastante. A actividade operacional tinha sido suspensa. Apenas se cumpriam as necessidades imediatas de vigilância próxima. Vivia-se na incerteza, no que poderia acontecer no amanhã... Cada minuto, cada hora por sua vez. A situação não era, porém, favorável a uma boa saúde mental das tropas, tanto entre os europeus como quanto aos naturais (militares e milícias).
A tropa metropolitana ansiava o seu regresso imediato ao torrão europeu. A disciplina caíra a padrões inadmissíveis, e esse estado de espírito tendia a agravar-se, em descontrolo psíquico. Certo dia, à tarde, talvez em dia de domingo, estando eu a trabalhar no meu gabinete, dei conta de que, fora, algo de anormal se passava entre dois militares: um de cor, o outro, europeu. O primeiro ia lesto, perseguido pelo segundo, de G3 (espingarda) na mão e de ânimo exaltado. Corri para o jeep, fui rápido ao campo de voleibol, ali próximo, e disse ao major M.B., que ali jogava numa equipa, se metesse na viatura e me acompanhasse, numa emergência... Disparado na direcção da ocorrência, conseguimos chegar junto dos contendores, a tempo de evitar o pior, de acalmar os ânimos e desarmar os intentos do potencial agressor.
Vivíamos, pois, num ambiente delicado, quase explosivo, quanto ao comportamento dos militares, de modo particular dos europeus. De resto, isso era flagrante no atavio: tronco nu, calçando “chanatas”, cabelo e barba sem esmero, modos bruscos e alarves – a decadência do brio e decoro militares. Para os soldados de cor, para a população civil, e não só, isto era uma imagem desprestigiante do Exército que até aí tanto sofrera e dera a vida pela defesa do seu chão, do território guineense.
Dizia atrás: “e não só”, pois, em certa ocasião, o povo e, mesmo, soldados e milícias nativos foram convidados, nos primeiros dias de Junho (1974) a sessões de esclarecimento ministradas por elementos do PAIGC, na fronteira e do lado do Senegal. As coisas iam já acontecendo à margem do nosso controlo. Muitos foram para lá, e até os nossos soldados brancos se aprestaram a ver in loco, por curiosidade, o que se passava. Não puderam, contudo, passar além do limite do território (português), pois, junto da barra da fronteira, estavam militares senegaleses, vigilantes, a impedir a passagem dos europeus. Verifiquei, presencialmente, o facto, e senti-me envergonhado perante o contraste, ali, entre os nossos militares e os do Senegal: estes, educados, gentis, bem uniformizados; os nossos, mais parecendo elementos de um bando de rufias. Que mau cartão de identidade!...
Outras “sessões de esclarecimento” se foram seguindo, primeiro junto à fronteira, depois já dentro do nosso território, em Pirada. O elemento feminino era a pedra de toque destas reuniões, com as suas vestes tradicionais, as suas danças rítmicas e os seus cantares tão genuinamente nativos. Constituíam, as mulheres, uma espécie de claque de apoio, motivadora, entusiasta. Tudo fazia parte de uma bem orquestrada acção psicológica a fim de preparar e convencer as populações para a mudança de domínio politico. O povo mostrava-se apreensivo, os militares naturais e os elementos das milícias começavam a dar mostras de pouca esperança no futuro dos seus dias, e de algum temor quanto a possíveis retaliações vingativas. Pouco a pouco, ia eu meditando no meu íntimo: “esta gente não vai conquistar a liberdade; vamos entregá-la de mão beijada, agora sim, a uma feroz ditadura”. 
Entretanto, continuávamos a dar apoio à população, em estreito contacto com o adjunto da administração civil local, um natural, e com boas relações estabelecidas com alguns comerciantes da localidade. Um deles, o mais influente, que aqui apenas designarei, por razões óbvias, de “M. S”., costumava reunir, à noite, no seu estabelecimento, alguns oficiais do Batalhão, em ameno convívio, a que não faltavam as bebidas que o ambiente proporcionava. Todos se admiravam e entusiasmavam com tanta “generosidade”... Só que, mais tarde, nas vésperas da partida da Unidade para Bissau, abandonando o aquartelamento (que foi entregue ao PAIGC), as contas, individuais, apareceram, com a perplexidade de cada um dos seus destinatários... Bem avisado andou o autor destas linhas, que, logo de princípio, não se mostrou disposto a  integrar esse “clube” de amigos.
Certo dia, estando o comandante de batalhão ausente, de licença, e tendo o 2º. Comandante também partido a visitar uma outra unidade vizinha, “M. S”., entrou no quartel e quis fornecer-me uma informação importante. Recebi-o no gabinete do comando e aprestei-me a ouvi-lo. Disse que tinha recebido notícias recentes, por um emissário, de que em Zinguinchor, porto de mar do Senegal, perto da fronteira com a Guiné, a norte, havia chegado um navio que descarregara grande quantidade de material de guerra, prevendo-se por isso um ataque em força, do PAIGC, às posições portuguesas. Era preciso tomar medidas imediatas, acrescentou o “informador”.
Ouvi-o com atenção, e respondi-lhe que agradecia o comunicado, mas que lamentava não tivesse vindo uns minutos antes, para dar a notícia, directamente, ao major “M. B”., 2º. Comandante, que tinha partido, havia pouco, para Nova Lamego. Mais lhe disse que, no regresso do meu superior, logo o colocaria a par da informação. Fiquei com a noção de que a intenção de M.S. era experimentar-me, para avaliar a minha reacção, dado que era eu, ali, ainda novo nas funções. No regresso de “M. B”., dei-lhe conta do sucedido, e o caso ficou por aí... Nada de gravoso surgiu posteriormente, que viesse confirmar a notícia e a alterar a situação vivida.
De resto, esta figura típica do conhecido e influente “comerciante”, cujo protagonismo espontâneo era considerado pouco fiável, por se admitir que “jogasse” com um “pau de dois bicos”, apoiando as nossas forças, sem deixar de favorecer também o lado contrário, viria a ser vítima da sua suposta duplicidade de actuação: não logrou garantir as boas graças dos “Libertadores” da Guiné. Quando abandonámos a posição, “M. S.” manteve-se, como antes, em Pirada. Soube-se mais tarde que tivera de enfrentar, logo a seguir, uma situação muito atribulada, difícil, até conseguir sair para Portugal. (Disso, deu conta, vinte anos depois, a “Revista “ do semanário “Expresso”, de 22 de aneiro de 1994).