Feitos e Factos
da “descolonização” da
Guiné – 12
Com o coração apertado e um
horizonte sombrio nas esperanças da mente, depois do almoço lá partimos de novo
para o acampamento do PAIGC, na mira de recolher, conforme o combinado, os dois
homens que havíamos levado e ali deixados de manhã... Acompanharam-me dois
elementos do “povo”, dois jovens muito activos e nossos colaboradores, mas
vigilantes e apreensivos quanto ao desenrolar dos acontecimentos. Um destes dois era, até, elemento muito
treinado e importante para as nossa tropas, pois, antes, havia sido utilizado
em operações especiais de anti-guerrilha em território do outro lado da
fronteira.
Chegados ao acampamento do PAIGC,
a situação, aparentemente, continuava sem alteração. Iniciámos os contactos, no
sentido de recolhermos os dois homens, ali deixados de manhã, e o ambiente
começou a toldar-se, face à posição assumida pelos meus interlocutores. Disseram que eles tinham confessado os seus erros e que
por isso não podiam continuar em Pirada. Não podia, assim, levá-los de
regresso,
Todo o mundo desabou debaixo de
meus pés. Eu via no rosto dos meus acompanhantes um disfarçado desagrado.
Começavam a sentir-se traídos, por termos levado aqueles dois elementos do povo
às garras do “inimigo”. De repente, as boas graças com o PAIGC começavam a
enfraquecer, ou melhor: a sua autoridade tentava sobrepor-se à nossa
responsabilidade.
Vi-me e desejei-me para convencer
os meus interlocutores de que os seus receios não tinham fundamento, e que tudo
se modificaria, nas nossas relações, se eu regressasse a Pirada sem levar
comigo as pessoas que ali tínhamos conduzido, de manhã, para esclarecimentos.
Um dos chefes, o mais influente em termos de argumentação, severamente agastado
e loquaz, chegou a traçar no chão, com um pequeno pau, uma linha recta e uma
linha quebrada, para explicar que o nosso relacionamento, que até ali tinha
sido rectilíneo, de amizade e confiança, dali em diante passava a ser como
linha quebrada: de confiança e desconfiança; de bons e de maus momentos...
Após penosos minutos, em que me
esforcei para que a diplomacia das palavras e das intenções vencesse qualquer
hipótese de força, que, de qualquer modo, não estávamos em condições de
enfrentar (seria um desastre total), e sob promessa de que, levando os dois
homens comigo, me comprometia a convencer o comandante de Batalhão a
passar-lhes “guia de marcha” para fora de Pirada, lá consegui obter permissão
para resgatar os “detidos”. Afigurava-se-me, então, que o negrume da situação
começava a dissipar-se...
Parecia!...
Até que, inesperadamente, vindo
não sei de onde, por entre as árvores da floresta, uma nova personagem chegou,
de bicicleta, e quedou-se a cerca de 50 metros de distância. Dando conta do
facto, os elementos que estavam a dialogar comigo ficaram um pouco agitados,
interromperam a conversa, e dirigiram-se ao encontro do recém-chegado.
Apercebi-me de que era um outro guerrilheiro de patente superior. Passados
alguns minutos, regressou o meu interlocutor ao contacto, e trouxe-me a notícia
de que os dois homens, afinal, não podiam regressar a Pirada, e que a parir daí
as nossas relações iriam ficar mais enviesadas. Que podia ir embora...
E foi deste modo, abrupto,
preocupante, que demos por terminado o encontro. Regressámos, então ao quartel.
Um dia negro, mais negro na alma do que o negrume da noite que entretanto
caíra.
Ao entrar na povoação, e durante
o percurso, desde a barra do “Controlo” até ao quartel, notávamos que o povo
permanecia em grupos, expectante, ao longo das tabancas. Depressa se
aperceberam que... não trazíamos connosco os dois homens. Os meus dois
acompanhantes pediram para, entretanto, se apearem, e eu continuei até ao
Comando do batalhão, onde todos me esperavam cheios de ansiedade. Foi com o
coração derrotado que comuniquei ao meu comandante o insucesso da diligência. O
encontro iniciado na harmonia de uma
tarde de Domingo, tinha-se prolongado numa
segunda-feira negra, num cenário de
imprevisíveis consequências. Maquiavel, não teria orquestrado melhor a sua estratégia, para alcançar os seus
inconfessáveis desígnios. A guerra psicológica é bem mais
subtil que a força das armas, e mais desgastante, pelos seus ocultos e
perigosos meandros.
Mas deixemos em suspenso o resto
destas negras memórias, de uma “descolonização exemplar”, até ao próximo
número, que recordar o passado, quando ele é doloroso, nem sempre é agradável à
sensibilidade do espírito.
Sem comentários:
Enviar um comentário