sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Para que da memória se faça História



Feitos e Factos
da “descolonização” da Guiné – 12

Com o coração apertado e um horizonte sombrio nas esperanças da mente, depois do almoço lá partimos de novo para o acampamento do PAIGC, na mira de recolher, conforme o combinado, os dois homens que havíamos levado e ali deixados de manhã... Acompanharam-me dois elementos do “povo”, dois jovens muito activos e nossos colaboradores, mas vigilantes e apreensivos quanto ao desenrolar dos acontecimentos. Um destes dois era, até, elemento muito treinado e importante para as nossa tropas, pois, antes, havia sido utilizado em operações especiais de anti-guerrilha em território do outro lado da fronteira.
Chegados ao acampamento do PAIGC, a situação, aparentemente, continuava sem alteração. Iniciámos os contactos, no sentido de recolhermos os dois homens, ali deixados de manhã, e o ambiente começou a toldar-se, face à posição assumida pelos meus interlocutores. Disseram que eles tinham confessado os seus erros e que por isso não podiam continuar em Pirada. Não podia, assim, levá-los de regresso,
Todo o mundo desabou debaixo de meus pés. Eu via no rosto dos meus acompanhantes um disfarçado desagrado. Começavam a sentir-se traídos, por termos levado aqueles dois elementos do povo às garras do “inimigo”. De repente, as boas graças com o PAIGC começavam a enfraquecer, ou melhor: a sua autoridade tentava sobrepor-se à nossa responsabilidade.
Vi-me e desejei-me para convencer os meus interlocutores de que os seus receios não tinham fundamento, e que tudo se modificaria, nas nossas relações, se eu regressasse a Pirada sem levar comigo as pessoas que ali tínhamos conduzido, de manhã, para esclarecimentos. Um dos chefes, o mais influente em termos de argumentação, severamente agastado e loquaz, chegou a traçar no chão, com um pequeno pau, uma linha recta e uma linha quebrada, para explicar que o nosso relacionamento, que até ali tinha sido rectilíneo, de amizade e confiança, dali em diante passava a ser como linha quebrada: de confiança e desconfiança; de bons e de maus momentos...
Após penosos minutos, em que me esforcei para que a diplomacia das palavras e das intenções vencesse qualquer hipótese de força, que, de qualquer modo, não estávamos em condições de enfrentar (seria um desastre total), e sob promessa de que, levando os dois homens comigo, me comprometia a convencer o comandante de Batalhão a passar-lhes “guia de marcha” para fora de Pirada, lá consegui obter permissão para resgatar os “detidos”. Afigurava-se-me, então, que o negrume da situação começava a dissipar-se...
Parecia!...
Até que, inesperadamente, vindo não sei de onde, por entre as árvores da floresta, uma nova personagem chegou, de bicicleta, e quedou-se a cerca de 50 metros de distância. Dando conta do facto, os elementos que estavam a dialogar comigo ficaram um pouco agitados, interromperam a conversa, e dirigiram-se ao encontro do recém-chegado. Apercebi-me de que era um outro guerrilheiro de patente superior. Passados alguns minutos, regressou o meu interlocutor ao contacto, e trouxe-me a notícia de que os dois homens, afinal, não podiam regressar a Pirada, e que a parir daí as nossas relações iriam ficar mais enviesadas. Que podia ir embora...
E foi deste modo, abrupto, preocupante, que demos por terminado o encontro. Regressámos, então ao quartel. Um dia negro, mais negro na alma do que o negrume da noite que entretanto caíra.
Ao entrar na povoação, e durante o percurso, desde a barra do “Controlo” até ao quartel, notávamos que o povo permanecia em grupos, expectante, ao longo das tabancas. Depressa se aperceberam que... não trazíamos connosco os dois homens. Os meus dois acompanhantes pediram para, entretanto, se apearem, e eu continuei até ao Comando do batalhão, onde todos me esperavam cheios de ansiedade. Foi com o coração derrotado que comuniquei ao meu comandante o insucesso da diligência. O encontro iniciado na harmonia de uma tarde de Domingo, tinha-se prolongado numa segunda-feira negra, num cenário de imprevisíveis consequências. Maquiavel, não teria orquestrado melhor a sua estratégia, para alcançar os seus inconfessáveis desígnios. A guerra psicológica é bem mais subtil que a força das armas, e mais desgastante, pelos seus ocultos e perigosos meandros.
Mas deixemos em suspenso o resto destas negras memórias, de uma “descolonização exemplar”, até ao próximo número, que recordar o passado, quando ele é doloroso, nem sempre é agradável à sensibilidade do espírito.

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