sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Para que da memória se faça História





Feitos e Factos
da “descolonização” da Guiné – 14

Na Quarta-feira, dia 3 de Julho de 1974, e no rescaldo dos acontecimentos já relatados na crónica anterior, registava eu, a finalizar num aerograma a enviar para a família:
“...de madrugada, os tipos levantam o acampamento, roubam as armas de três destacamentos (de milícias), na passagem, e fogem para o Senegal, levando os dois homens. Vimo-nos e desejámo-nos para aguentar em calma as milícias e tropa africana (da guarnição) de Pirada, a respeito de tudo isto, pois já na 2ª.-feira à noite eles queriam marchar sobre o acampamento do PAIGC. Evitámo-lo. E de noite (de madrugada) acontece aquilo!... Isto contraria toda a politica do partido e tudo o que se está a viver nos outros pontos da Guiné. Temos passado horas de nervos e de tensão. Não há dúvida que esta paz é talvez pior que a guerra” (sic).
 Os acontecimentos começavam a entrar numa espiral estonteante, de perigosidade crescente e de horizontes imprevisíveis. As conversações de Londres do governo português com o PAIGC, iniciadas a 25 de Maio, tinham sido interrompidas a 31 do mesmo mês. Tudo era obscuro e incerto, e a capacidade de combater, por parte das forças portuguesas, na conjuntura decorrente, estava reduzida a zero. Impressionante, a verdade estratégica de que o melhor meio de vencer o “inimigo” é atacá-lo na retaguarda... E isso tinha-lhe sido oferecido, de mão beijada, com o golpe de Estado ocorrido em Lisboa, cerca de três meses antes. As forças combatentes, na frente de operações, viram o chão fugir-lhes debaixo dos pés, e podia ter-se repetido o cenário dramático de La Lys, em qualquer ponto onde os militares portugueses pretendessem, por insensatez, defender à outrance, a sua Bandeira. A história nua e crua, imparcial e factual, ainda não está feita... E é pena!
Ora, na Terça-feira, dia 2, logo de manhã, reuni com o povo que tinha abandonado as suas tabancas e terras e procurado, durante a noite, acolhimento na área do Comando, em Pirada. Foi difícil encontrar palavras para justificar a situação e para lhes dar alguma confiança, num futuro que se avizinhava problemático. Entretanto, os acontecimentos haviam sido já relatados para o Comando-chefe, em Bissau. Mas, novos problemas apareceram a complicar o estado critico em que já navegávamos...
Uma companhia do nosso batalhão, posicionada em Buruntuma, fronteira leste, recebera no dia 2, um ultimato dos “nossos amigos” para retirar (abandonar a posição) dentro de 24 horas. Neste andar dos acontecimentos, que iam em crescendo como bola de neve, esperávamos a todo o momento que uma pretensão do género nos fosse também comunicada.
No dia 3, pelas 14h00, tinha o comandante saído para Nova Lamego, a fim de contactar o comando de outra Unidade, quando o nosso já conhecido M. S. – enigmático comerciante do “burgo” – entrou no meu gabinete, com ar misterioso, a informar-me que o PAIGC ia mandar-nos nesse mesmo dia um ultimato para desarmarmos as nossas milícias e tropas africanas. Outro informador veio trazer-nos a notícia de que o PAIGC preparava um ataque a Pirada... Nada disto se veio a concretizar, e estas informações – a nosso ver – não eram mais do que testes à nossa capacidade de gerir os acontecimentos, para avaliar a reacção consequente. Maquiavélico!
No dia 4 – Quarta-feira, e em consequência dos nossos relatórios de situação para o Comando-chefe, em Bissau, chega a Pirada o Brig. Fabião. Na fronteira, estabelece contacto com um dos quadros do PAIGC, e, a respeito de Buruntuma, diz-lhe que não precisam de fazer ultimatos, que quando quiserem que a gente retire de determinada posição é só comunicar, que as nossas forças abandonam o local... “A guerra acabou” - disse! Quanto aos 2 homens que o PAIGC reteve, informaram que eles estão bem (mas continuam com eles...).
No dia seguinte, dia 5, o PAIGC fez saber que pretendia entrar de novo na nossa área e reocupar a posição que dias antes tinham abandonado. Queriam passar pela estrada e interior de Pirada. Fiz-lhes saber que isso poderia motivar reacções adversas por parte da população, bem como das tropas africanas e milícias... Resolveram, então, penetrar no território a corta-mato, por fora da área do aquartelamento e da povoação. E deste modo voltou a “ser tudo como dantes, quartel-general em Abrantes”, como soe dizer-se (só que... não mais largaram mão dos dois “detidos”!...)
Estava tudo a correr “muito bem”..., até que, ao fim do dia, um milícia, muito influente, começou a causar problemas... Foi fazer reunião com outros para a tabanca (povoação)... e nós ficámos apreensivos à espera de uma reacção imprevisível...
E foi nesse clima, quente e reactivo, que recolhi ao quarto para algum descanso, sempre à espera do que poderia vir por aí... E a G3, à mão de semear, voltou a ficar pronta a disparar, junto à cabeceira. 

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