sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Para que da memória se faça História




Feitos e Factos 

da “descolonização” da Guiné – 13



Chegado ao aquartelamento, com a alma de rastos, e sem poder avaliar o futuro imediato, logo me aprestei a pôr o comandante, que me esperava com ansiedade, a par de tudo o que se tinha passado.
O ten-coronel Matias (já de saudosa memória), cavaleiro de “peido e coice”, segundo a gíria de sua preferência, era homem que não perdia a calma. Ouviu todo o meu relato com compreensão, mas também muito preocupado. Conversávamos os dois, na parada, frente à messe, noite escura, apenas cortada com alguma ténue iluminação periférica, quando se ouve o “zum-zum” de um grande número de gente que se aproximava pela estrada, vindo do interior da povoação em direcção ao quartel.
Logo nos apercebemos de que se tratava de população que vinha tirar satisfações sobre os dois homens que não haviam regressado connosco das conversas com os guerrilheiros do PAIGC. Notando a perigosidade da situação, deixou escapar a meia voz o desabafo (em calão): - Estamos “cozidos”!...
A multidão entrou no recinto, e veio ao nosso encontro, que a aguardávamos, impávidos e (quanto possível) serenos. Um dos elementos que me tinha acompanhado ao acampamento do PAIGC e era fiel colaborador da nossa causa, liderou a comunicação invectivando o procedimento do PAIGC e exigindo explicação sobre qual ia ser agora a nossa reacção, para que os dois “detidos” pelo “Inimigo” fossem libertos. Mais, o povo estava disposto a avançar sobre o acampamento do PAIGC para resgatar os detidos. Seria uma decisão de consequências desastrosas...
De imediato, o meu comandante – que beneficiava de uma grande consideração por parte do povo – tomou, em resposta, a palavra, num discurso tão eloquente, que eu próprio fiquei admirado por aquele “golpe de rins” verbal, que tranquilizou as hostes em protesto. Resumindo, o ten-coronel Matias, sublinhou a traição de que tínhamos sido objecto; apelou aos seus créditos de amigo daquela gente, a quem, como comandante do batalhão, ali em Pirada, estivera sempre pronto a prestar-lhe a melhor ajuda, e prometeu envidar todos os esforços para que a situação fosse resolvida, de modo a regressarem à população os dois elementos detidos. E a turbamulta foi-se desfazendo, saindo dali, até que ficámos sozinhos.
...Sozinhos, mas muito apreensivos quanto ao desenrolar dos acontecimentos imediatos, sem poder prever o dia seguinte.
Entre nós, ali na messe, encontrava-se, como “hóspede”, o comissário politico “Bar”, já referido no nosso “apontamento” nº. 7. Apercebeu-se da situação, sem interferir, e, nessa noite, deixou-nos, de bicicleta, no intuito de – assim pensámos – tomar qualquer iniciativa que pudesse contribuir para, a nível superior dos seus quadros, minimizar o diferendo entretanto surgido... Simplesmente, nunca mais vimos o “Bar”, nem ficámos a saber o que poderá ter feito... para nos ajudar.
Recolhi já tarde aos meus aposentos, debaixo daquele clima nocturno, pesado pela temperatura tropical, e desgastante da sensibilidade do espírito. Encostei à cama, em posição de fácil apanha, a espingarda G3, carregada e com bala na câmara, pronta a utilizar... Debaixo da travesseira, a pistola, também em condições de rápido manejo. No topo do quarto, a cama do capitão B., comandante da 3ª. companhia, adjunta ao comando do batalhão... Dormia ele a sono solto, sem ajuizar do “inferno” em que poderíamos estar metidos.
Deitei-me, cansado mas com sono disperso pelos nervos tensos e em alerta... No chão, a espiral de “mosquito killer” que entretanto acendera, ia ardendo em morrão lento e fumegante, espalhando no quarto um cheiro acre, activo, de modo a afugentar a mosquitada... Pela janela de rede, notava que, lá fora, de vez em quando, o soldado de guarda, um natural, assomava ali a tentar observar o interior do quarto, com certa ironia expressa em disfarçadas tossidelas. De qualquer modo, fui sendo vencido por algum sono intermitente. Até que...  
Cerca das duas horas da madrugada, o soldado nativo que fazia sentinela nas imediações, veio chamar-me à porta do quarto, em voz baixa: Mê capitão!”... “Mê capitão!...
De um salto, fui à porta, empunhando a pistola, e perguntei: Que é?!...
Logo o soldado me deu parte de que a população de Deagobu, um dos aldeamentos em autodefesa (milícias) da periferia da área do comando do batalhão, estava à entrada do arame farpado, no posto de “controlo”, a dizer que o PAIGC tinha passado pela tabanca, levado as armas e o rádio, e que o povo, com medo de mais represálias, tinha vindo para Pirada, e pedia para ali ser recolhido em segurança. Fui inteirar-me da situação, recolher o povo, e prometi encarar o caso na manhã seguinte.
Voltei para o meu quarto, a tentar conciliar o descanso, mas, passados momentos, nova chamada da sentinela: outra aldeia sofrera a mesma interferência dos “nossos amigos”. Repeti o procedimento anterior. Mas dentro de pouco tempo fui de novo chamado: desta feita, foi a vez do terceiro pelotão de milícias, a contar história similar às anteriores.
O que se passara então?...
A força do PAIGC acampada a sul de Pirada, onde tínhamos passado a amena tarde de Domingo e a conturbada 2ª. Feira seguinte, após ter tomado conhecimento da agitação, à noite, em Pirada, pelo não regresso dos dois homens retidos naquele acampamento, e temendo possíveis represálias, resolveu “levantar ferro” e retirar, de noite, para o Senegal. Mas não o fez sem antes passar pelos pelotões de milícias e confiscar o armamento e os meios de transmissões de que estavam equipados. Sentindo-se, desse modo, ameaçados, os componentes desses pelotões e seus familiares apressaram-se a procurar refúgio e protecção no Comando do Batalhão.
A situação estava, assim, a degradar-se perigosamente. Nestas circunstâncias, que fazer?!... Guerra aberta?... Impossível! Diplomacia política?... O quê, e como?!...

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