segunda-feira, 19 de março de 2012

Para que da Memória se faça História



Feitos e Factos
da “descolonização” da Guiné - 6


Aquela “Festa da F.A.P.”, fora um “ronco” (feito vistoso, êxito retumbante, que dá nas vistas), em Pirada. A população local entusiasmou-se com o acontecimento, e participou efusivamente. De resto vivíamos, ali, em franca amizade e colaboração. A tropa fornecia ao povo, gratuitamente, sacos de arroz, como ajuda de subsistência, e eram frequentes os pedidos nesse sentido, naqueles tempos difíceis de guerra.

Havia, em Pirada, um Posto Administrativo, e cheguei a conhecer o respectivo administrador (branco), mas dentro de pouco tempo este funcionário do Estado português ausentou-se definitivamente. Ficara com as suas funções o seu adjunto, um natural do território, homem jovem, culto, activo, que dentro de pouco tempo se integrou nas actividades propagandísticas do PAIGC. Tinham cessado as hostilidades, e o “Partido” iniciara já a sua acção psicológica através de “testas de ponte”, organizando comícios (banjas), onde as mulheres, trajando vestes exuberantes, manifestavam ruidosamente o seu apoio folclórico.

Notava-se na povoação um certo desenvolvimento comercial, e a ela afluíam gentes vindas a pé do Senegal, fronteiriço a norte, a cerca de um quilómetro. O povo vivia dos seus próprios recursos hortícolas e da criação de gado. A antiga capela, abandonada, servia de armazém... Antes do golpe de Estado, em Lisboa, existira em Pirada uma delegação da DGS (Direcção Geral de Segurança, antiga PIDE – Policia Internacional e de Defesa do Estado), que, em consequência, havia sido extinta. A situação geral era precária, e, dia a dia, apresentava novas facetas, às vezes desconcertantes. Não se podia prever com razoável certeza a evolução dos acontecimentos, tanto no aspecto político-militar, como no âmbito social.

Estava na memória de todos, ainda, o violento ataque sofrido em Pirada no próprio dia 25 de Abril, com mísseis e morteiros, de que resultaram vários mortos e feridos, e, por isso, tinha sido com enorme regozijo que, nesse próprio dia, à noite, a tropa ouvira as notícias da BBC sobre o golpe de Estado em Lisboa. Tal significava o fim da guerra, tão violenta e traiçoeira.


Daí em diante, apenas latejava no espírito dos militares europeus a vontade de regressar ao torrão metropolitano o mais depressa possível... Contudo, entre os naturais, as preocupações eram de outra índole: o que lhes iria acontecer, quando o PAIGC tomasse conta dos seus destinos; a eles, especialmente militares e milícias, que tinham integrado as forças portuguesas na defesa das suas vidas e tabancas contra o inimigo comum? Temiam esperadas retaliações, ajustes de contas... E não eram infundados os seus receios, pois é do domínio público o facto de terem sido executados, após a retirada dos portugueses, centenas de guineenses que tinham lutado sob a Bandeira de Portugal (foi dito por Otelo Saraiva de Carvalho, e admitido, mais tarde, como verdadeiro, por Luís Cabral, já falecido, num programa da RTP).

A conjuntura tornava-se, assim, dia a dia mais imprecisa e ameaçadora, pois o que mais desgastava o moral das tropas era o desconhecimento do futuro próximo. Acreditava-se que a guerra tinha terminado... Mas, e agora?!... Poderiam deflagrar a qualquer momento retaliações!... Os cenários eram nebulosos, e sentíamos que o “timão do navio” tinha fugido das nossas mãos. Mais do que condutores dos acontecimentos, estávamos à mercê deles, à deriva num mar de incertezas...

Era flagrante a satisfação da paz, ainda que precária, mas sob o síndrome de “vencidos”. Tínhamos perdido toda a capacidade de escolher o caminho... Consequentemente, a disciplina fraquejava. Comandar, começava a ser uma tarefa de bom senso, mais do que um exercício de autoridade. Recordo que em certo dia, quando o pessoal do rancho geral – um cozinheiro e o cabo responsável – levava, à hora da refeição da tarde, a “amostra” ao Comando, um corpulento soldado oriundo de um dos bairros mais castiços de Lisboa abordou, na parada, o duo do respectivo serviço, e exigiu provar ele próprio a comida, apesar da reacção negativa do cabo responsável. Depois de levar à boca uma colher do cozinhado, exclamou: “isto está uma merda!...”, e desferiu, acto contínuo, um pontapé no tabuleiro da “amostra”, mandando tudo pelos ares. Claro que, comunicado o facto superiormente ao oficial de dia, houve participação do acontecido, auto de averiguação consequente, por um oficial de justiça, e decisão do Comando punindo o infractor com... uma “repreensão agravada”... Em situação normal, este acto grave de indisciplina teria merecido uma pena mais severa, mas havia que não mexer muito as águas, para não provocar nos ânimos da soldadesca, já “em fio de navalha”, um vórtice que tudo engolisse. Mas o epílogo foi bem pior, para caracterizar o clima de quase anarquia em que tínhamos caído...

Elaborado, no auto de averiguações, o despacho do comandante em exercício (major M. B.), foi chamado o infractor ao seu gabinete, para ouvir a leitura da “repreensão”. Presentes no acto, o autor destas linhas (nas funções interinas de 2º. Comandante) e o comandante da Companhia (CCS) do militar a punir. Era já noite. Havia certa apreensão pelas consequências, pois, entretanto, nas imediações, ia-se formando uma “claque de apoio” ao indisciplinado autor do pontapé no tabuleiro da amostra. Tudo a postos, e antes da leitura do despacho, começara o comandante a caracterizar a falta cometida, dirigindo ao soldado uma “palestra” moralizadora, justificando a benevolência da punição perante a gravidade do acto cometido. Fora, a “claque” observava a evolução do acontecimento... A certo ponto, o comandante da CCS segreda-me ao ouvido para aconselhar, veladamente, o comandante a “indultar” a punição, clemência justificada face à situação de circunstância geral vivida... Temia que, ali, o poder (do comando) caísse... na parada. Comungando da mesma ideia, cochichei ao ouvido do meu superior imediato que o melhor era perdoar ao infractor... Foi o que ele fez, ajuizando pela melhor solução, face à instabilidade que, de contrário, era previsível.

Na verdade, e na prática, com um golpe de Estado na retaguarda, o comando das tropas combatentes nas primeira linhas, a milhares de quilómetros de distância, já tinha caído na rua... A missão, agora, era evitar o descalabro, prevenindo a anarquia... Jogar com um pau de dois bicos, como diz o povo. E a sabedoria popular, geralmente, é sensata, para que se evite o pior. Do mal, o menos.

O indisciplinado soldado foi perdoado, para que se prevenisse a “paz social” entre as hostes... sob estes custos conjunturais, que não foram únicos...

Para que da Memória se faça História


Feitos e Factos
da “descolonização” da Guiné - 5


Finalmente, chegou o dia de marchar para o destino que me haviam superiormente reservado. Rumo a Pirada, no norte da província, fronteira com o Senegal. Ia preencher, em rendição
individual, o lugar do oficial de operações que havia sido evacuado para a Metrópole, por doença. A função não me estava, em princípio, destinada, porque outro havia sido nomeado antes, um capitão de infantaria que, por ironia do destino, seguiu a meu lado no avião, na viagem de Lisboa para Bissau. Simplesmente, chegados à Guiné, este oficial ficou, pelo que ouvi dizer depois, na Comissão de Economia, organismo recentemente criado após o “25 de Abril”. Deste modo, a “sorte” do mato resvalou para o autor destas linhas. Mas não fiquei prejudicado, pelo valor da experiência vivida.


Manhã cedo, dirigi-me para o porto de Bissau, frente à fortaleza da Amura, a fim de embarcar numa LDP (lancha de desembarque pequena) que me levava a Bambadinca, a montante do estuário do Geba. Daqui, em coluna motorizada, atingimos Nova Lamego (Gabú), passando por Bafatá, e, mais tarde, continuámos até Pirada. Um dos meus acompanhantes era o capitão Mário Ribeiro, chefe da secretaria do BCav onde eu ia ser colocado, e que regressava à Unidade, vindo de licença, julgo. Tive oportunidade de melhor conhecer, depois, este militar, muito calmo, sensato, e bom conselheiro do Comando.

Atingimos Pirada, por longas picadas atravessando extensas áreas de baixa arborização e de relevo suave. Algumas bolanhas, também, no percurso, ressequidas, pois estávamos na época seca. Dava a impressão de que percorríamos o Alto Alentejo. Que diferente era esta paisagem da África que eu anteriormente conhecera!

Já na sede do Batalhão e imbuído nas minhas funções, fui pouco a pouco tomando contacto com a realidade que me envolvia. Tive a sorte de encontrar no Comando dois oficiais de profunda formação humana e militar. Cavaleiros, bem prestigiando o espírito da sua Arma e a memória de Mouzinho.

À noite, reuníamo-nos fora da “messe”, sentados ao redor de uma mesa, debaixo da cobertura de capim, num cenário tipicamente africano, a ouvir as emissões da BBC, em Português, que relatavam as conversações que decorriam em Londres entre o PAIGC e a delegação Portuguesa. Tudo era ainda indefinido, e os militares daquela Unidade sentiam o coração apertado... É que, depois do golpe de Estado do “25 de Abril”, em Lisboa, as operações militares, ali na Guiné, tinham sido interrompidas, tanto por parte das nossas tropas como por parte do “In” (inimigo, segundo o léxico militar). Era impossível continuarmos em guerra. O moral dos nossos militares era caracterizado por uma forte ânsia de tudo largar e de voltar ao torrão metropolitano, ao seio dos seus familiares. E ninguém sabia como o futuro se ia desenhar... Ainda estava na memória de todos, segundo ouvia contar, o ataque do PAIGC a Copá (uma posição do Batalhão), em Janeiro desse ano, onde o In tinha utilizado uma ou duas viaturas blindadas, e um poder de fogo fora do habitual.

Tudo se desenrolava a favor do PAIGC, e se este decidisse continuar a luta, era claro que as nossas tropas seriam massacradas, pois, na situação politica portuguesa do momento, a “vontade de combater” tinha-se diluído na quase anarquia que as nossas forças começavam a experimentar. E que fazer daqueles militares naturais que haviam lutado ao lado dos europeus, na defesa do seu “chão”, das suas tabancas e das suas famílias?!... Tudo era incógnita! Mas uma coisa ensinava a História: quando a retaguarda se rende, as tropas combatentes das primeiras linhas ficam em risco de serem martirizadas. Era esse o espectro negro e sombrio que tinha ido encontrar na alma daqueles combatentes, brancos e pretos, da longínqua terra ainda portuguesa da Guiné, junto da fronteira com o Senegal.



Mas o Ten-coronel Matias - homem e militar extraordinário, especialmente nesta situação delicadíssima – estava à altura de enfrentar todos os desafios, por mais intrincados que fossem. Fazia tudo para levantar o espírito das suas tropas e, mesmo, da população daquela terra. Então, organizou, em certo domingo, 23 de Junho, uma “festa” – a Festa da F.A.P. (Força Aérea Portuguesa) –, de que faziam parte uma corrida de cavalos e uma “tourada” ...






Chegaram de Bissau, em meios aéreos, os convidados... Disposto o cenário, com viaturas à volta, bidões e outros apetrechos, seguiu-se o programa. Foi um festival, que aquela gente adorou. Era tudo “prata da casa”: os “touros”, da “ganadaria” da população local... Os cavalos, do régulo e outros... Pobres “bichos”, que nunca
pensaram fazer parte de um espectáculo daqueles!

Houve corajosos que saltaram para a “arena” a realizar “pegas” afoitas... Mas, sobretudo, viu-se alegria, entusiasmo, entre militares e civis, brancos, pretos e mestiços...

Por umas horas, naquele meu domingo em Pirada, esqueceram-se as preocupações... da guerra, para festejar... a paz possível.

Para que da Memória se faça História


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Feitos e Factos da “descolonização” da Guiné - 4

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    Na tarde de 25 de Maio de 1974, e ao fim de três horas de voo desde Lisboa, desembarquei em Bissau, no aeroporto de Bissalanca. Tudo era novo para mim, desconhecido. Ia enfrentar a missão mais desconcertada da minha vida. A incógnita era a marca do futuro.
    Contudo, o militar é treinado para fazer face aos perigos da guerra, mesmo das operações subversivas, onde as leis dos tratados internacionais da guerra clássica (Convenção de Genebra) não são respeitadas pelo inimigo. Por isso, provocam também respostas adequadas de quem o enfrenta, em legítima defesa. Tem de haver uma grande capacidade para reagir ao inesperado, a situações inopinadas. Elaboram-se os planos, mas é necessária uma boa dose de adaptação, na execução, aquilo a que se chama “Conduta”. E, neste caso, a conduta ia revestir-se com roupagens da Politica.
    Daqui para a frente, ia haver lugar para uma simbiose entre acções militares e atitudes
    politicas, a todos os níveis, e, por vezes, ia ser difícil distinguir a fronteira entre os dois campos de actuação. A guerra – segundo Clausewitz – não é mais do que a continuação da politica por outros meios; Lenine, havia acrescentado: “A paz também, a paz não é outra coisa que a continuação da luta por outros meios. A paz e a guerra não são senão dois aspectos da mesma luta, permanente e necessária.” (cfr.: “Guerra Revolucionária”, Hermes de Oliveira).
    Por isso, e dentro destes princípios, as forças do nosso “adversário” estavam estruturadas em hierarquias paralelas: os que executavam as operações militares, cingiam-se às orientações estratégicas dos “comissários políticos” – como viríamos a reconhecer, uma vez em funções. Para os militares, a táctica; para os políticos, a estratégia. Hoje, a quase quarenta anos de distância dos cenários que motivam estas “crónicas”, e vivendo as dificuldades que abalam o Ocidente, soam-me proféticos os vaticínios de Mão Tsé-Tung (1953): “Uma vaga de revolução varrerá todo o continente africano, e os imperialistas e os colonialistas serão rapidamente lançados ao mar... Uma vez a Ásia e a África separadas dos países capitalistas da Europa, o continente europeu desmoronar-se-á por completo do ponto de vista económico... A crise europeia será seguida duma quebra económica total e duma catástrofe industrial.” (Ibidem). (Pense daqui o quiser e quem quiser...)
    Ao fim da tarde, já me encontrava instalado no “Clube”, em condições satisfatórias, aguardando, com expectativa, o meu destino. Contactando com “camaradas” já conhecidos, que ali se encontravam em trânsito, ou em serviço na capital, fui-me inteirando da situação: já não havia guerra activa, no interior. Aguardava-se o resultado das conversações em curso entre delegados do PAIGC e de Portugal, iniciadas nesse mesmo dia em Londres. Por isso, à noite, depois de jantar, colávamos o “transístor” ao ouvido, para ouvir os noticiários em Português, das emissões regulares da BBC. Ninguém podia prever o futuro, que ainda se mostrava aleatório.
    Permaneci em Bissau cerca de duas semanas, antes que me proporcionassem transporte para o destino que, entretanto, me saiu na “rifa”. A minha comissão, em rendição individual, programada antes do “golpe de Estado”, acabou por sofrer um desvio de agulha, dado que só se operou um mês depois: o oficial que estava designado ao lugar que acabei por ocupar, ficou por Bissau, num cargo governamental, e eu fui para o mato, ocupar o lugar vago de um evacuado, que o primeiro devia ter preenchido. Interessante, é que fomos os dois no mesmo avião, lado a lado (ironias do destino, que nem sempre se processam em prejuízo... Deus o sabe).
    Aproveitei, então, as curtas “férias” forçadas para conhecer a cidade e observar os costumes do seu povo. Assisti à missa na catedral, bela, altiva, saliente naquela planura citadina. Uma longa avenida ligava o Palácio do Governo até ao estuário/delta do rio Geba. Vários monumentos povoavam os jardins, lembrando os Descobrimentos e a História. Ligeiramente proeminente, vigilante, frente ao porto, ali estava a fortaleza da Amura, que meses mais tarde haveria também de servir-me de habitação.
    Na “Metrópole”, quando se falava em Guiné, era de um modo aterrador... Era a guerra, cruenta e assassina. Não foram essas as minhas primeiras impressões, e observei correrem perfeitamente amistosas as relações entre europeus e africanos. O comércio, com muitas lojas de europeus, era de franco movimento, e os naturais (alguns do Senegal, fronteiriço) vendiam nas ruas com liberdade e alegria. À tarde, as “tascas” (bares) ribeirinhas enchiam-se de pessoal, a saborear as deliciosas ostras, servidas num grande balde de zinco, sobre mesas de madeira. A cerveja era o néctar dos céus, despejado em profusão naquele ambiente quente e agitado. Havia paz e alegria de viver...
    Quem diria que aquela era a Guiné, de tanta luta e morte?!...
    Ali vivia-se, afinal (por enquanto) Portugal!

domingo, 18 de março de 2012

Para que da Memória se faça História


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Feitos e Factos
da “descolonização” da Guiné - 3
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Havia eu sido mobilizado para uma terceira comissão de serviço, desta feita na Guiné, com data marcada para 27 de Abril de 1974. Corria o boato de que a guerrilha, naquela província, estava a intensificar os seus ataques, e preparava uma ofensiva em grande escala (bluff). Por isso, o “clima” vivido era de apreensão pelo que pudesse vir a acontecer em tempo próximo.
Por esta altura, a situação politica, no torrão metropolitano, apresentava alguma instabilidade. O general Spínola tinha feito publicar, em Fevereiro o seu livro “Portugal e o Futuro”, que se esgotou, nas livrarias, em apenas quatro horas após o lançamento. Tudo isto levou a que oficiais generais dos três ramos das Forças Armadas se reunissem em S. Bento, a 14 de Março, para “desagravar” o chefe do Governo e afirmar-lhe a sua confiança e fidelidade. Este evento ficou, na gíria, conhecido como “a brigada do reumático”, e registou a não comparência dos generais Costa Gomes e António de Spínola, chefe e vice-chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas. A sua demissão dos respectivos cargos foi consequente.
Porém, na madrugada de 15 de Março, um grupo de militares do quartel das Caldas da Rainha sai à rua e avança sobre Lisboa. Às portas da capital, a coluna é interceptada por forças afectas ao Governo, e é feita regressar ao ponto de partida. Este movimento ficou sempre na penumbra de um completo esclarecimento, quanto à origem das suas motivações e dos objectivos pretendidos. Passou a ser conhecido como o “Golpe das Caldas”, abortado.
A situação politico-militar, no país, estava, assim, a agravar-se. Havia já algum tempo que se vinha cozinhando o apelidado “movimento dos capitães”, e na noite de 24 para 25 de Abril as tropas saíram à rua. O que se passou a seguir não é o tema desta crónica, e não falta literatura que caracterize o desenrolar dos acontecimentos subsequentes: golpe de Estado, queda do Governo, Junta de Salvação Nacional, Conselho da Revolução, Documento dos Nove, Verão Quente de 75, 25 de Novembro, etc., etc., até à consolidação da Democracia.
Pois bem. Retomando o fio da meada, importa dizer que devia ter eu chegado à Guiné, em rendição individual, a 27 de Abril, mas só pude concretizar a viagem a 25 de Maio – tal era a “bagunça” desorganizativa da máquina administrativa militar, após o “golpe”.
Uma vez em Bissau, permaneci aqui durante cerca de duas semanas, no chamado, então, clube militar (messe), e nos contactos estabelecidos com quem chegava da, ainda, Metrópole, ia tomando conhecimento do que se ia passando acerca do evoluir da situação politica. Não eram satisfatórias as notícias, pois começava a alastrar-se a convicção de que o assalto ao poder ia de vento em popa, e as lutas partidárias aumentavam, com predomínio da militância de esquerda. Recordo uma frase ouvida de um oficial superior que regressava de férias: “- Estamos perdidos. Os comunistas estão instalados em todos os lugares-chave...”
Os acontecimentos fluíam, em Lisboa, em catadupa, e as tropas, na Guiné, começavam a sentir o seu futuro incerto, porque “o chão” lhes fugia debaixo dos pés. Em Lisboa, os cravos da revolução tinham começado a murchar desde a euforia festiva 1º. de Maio, e ninguém podia prever o dia de amanhã. Esta incerteza grassante entre os militares começava a ter efeitos deletérios na disciplina das tropas, que ansiavam rapidamente o regresso a suas casas.
É das leis da guerra que o melhor modo de vencer o inimigo é atacar a sua retaguarda, isolar a sua frente de combate e diminuir a sua vontade de combater, até à rendição. Foi assim na 1ª. Guerra Mundial, em 1917, quando os alemães permitiram que Lenine, num célebre “comboio blindado”, fosse introduzido na Rússia para aqui despoletar a revolução e retirar as suas forças da frente de batalha. Se não podemos aplicar ipsis verbis este exemplo histórico a Portugal, os contornos práticos não deixam de ser significativamente semelhantes... Com o golpe de estado de Abril 74, em Portugal, na retaguarda das forças combatentes em três teatros de guerra subversiva, separados geograficamente por milhares de quilómetros da mãe Pátria e entre si, não havia mais possibilidade de os militares, em África, prosseguirem a sua patriótica missão. Se o tentassem fazer, seria o descalabro, o desastre total, e muitas vidas seriam ingloriamente sacrificadas. Atente-se no caso de Timor, e no que aconteceu ao malogrado Maggiolo Gouveia – o herói esquecido – por amar tanto a sua Pátria, e o povo timorense.

Para que da Memória se faça História


Feitos e Factos
da “descolonização” da Guiné - 2
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Um dos factos mais surpreendentes ocorridos no sector do BCav 8323, já na descolonização consequente do golpe de Estado do “25 de Abril”, foi, pelo insólito da cena, e pela espontaneidade oportuna do principal actor, o da bandeira de Paúnca, no nordeste da Guiné... Poucos terão, então, percebido o que realmente se passou, mas quem bem atendeu ao cenário da cerimónia, não deixou de se interrogar sobre o significado, completo, profundo, daquele acto protocolar.
Dia 21 de Agosto de 1974. 13 horas e trinta minutos. Era a transferência de responsabilidade do quartel de Paúnca, para o PAIGC (Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde).
Depois de uma alocução de circunstância, proferida pelo então Major de Cavalaria Moniz Barreto, 2º. Comandante do BCav, e com todos os presentes (militares portugueses e do PAIGC) em sentido, desceu com toda a solenidade, ao toque de clarins, a bandeira das quinas – a Bandeira Portuguesa, que foi religiosamente recolhida.
Acto contínuo, o ex-furriel Reis Pires, passado já para os quadros do PAIGC da área, subiu ao paiol, para com a mesma solenidade hastear a Bandeira da Guiné Bissau.
De novo iniciam os clarins o toque de continência. Os militares perfilam-se enquanto ascende no mastro a bandeira tricolor, vermelha, verde e amarela, da Guiné. Quando esta já subia a meia haste, rompe-se a adriça, e a bandeira fica solta, até que cai em terra.
A marcha de continência prossegue...
Perplexidade geral!... Mau agoiro?!...
Não acreditamos em prenúncios agoirentos, mas, como soe dizer-se: “há sinais!...”
Confusão apenas momentânea:
O soldado Balasteiro, do pelotão de reconhecimento da CCS/BCav 8323, ali presente no momento, zarpa leste, e de um salto agarra a bandeira caída. Sobe, então, pelo mastro fora, feito macaco, a segurar a adriça nos dentes. Lá no alto, passa o cordão pela pequena roldana, e começa, imóvel, na ponta superior do mastro, a puxá-lo lentamente, fazendo subir a bandeira da nova “dominação”, com a mesma solenidade que antes, enquanto os clarins continuam a fazer soar os seus acordes em marcha de continência.
Os militares portugueses e os do PAIGC quase não haviam alterado a sua postura inicial, perfilados e em respeito.
Finda a cerimónia, procedeu-se à substituição da corda. A nova Bandeira lá ficou, ondulante e segura.
Este, o facto. Singular, inédito, “enorme”!...
Agora, o significado que logo se procurou tirar dali:
A nova Guiné independente, precisaria de estruturas novas, para “subir”... Mas os Portugueses, como Balasteiro, hão de estar sempre prontos a ajudar os seus irmãos desta nova nação africana, sem colonialismos exploradores, mas com fraternal generosidade.
... ... ...
Trinta e sete anos passados, e tendo em conta todo o percurso temporal e politico desta antiga província africana de Portugal, desgraçada por lutas subsequentes de poder, e por vinganças perpetradas em ajuste de contas partidárias e raciais, continuamos a pensar que... infelizmente, o gesto espontâneo, profético, de Balasteiro, não logrou ainda pedagogia bastante, para que os guineenses possam usufruir da felicidade que merecem.

Para que da Memória se faça História

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Feitos e factos da descolonização da Guiné - 1
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É sempre grande e perpétuo o dia que se assinala solenemente como único, e porque único só na lembrança e no coração se projecta no futuro.
4 de Setembro de 1974 foi um dia grande para o BCav 8323. Na parada do BCP 12, em Bissalanca, Guiné (Bissau), cerca de 500 homens se uniram em formatura geral do Batalhão. Não foi apenas “ronco”.
“Ronco” é aquilo que só fica na superficialidade dos acontecimentos. “Ronco” é aparato, condimento... e - quantas vezes! – vaidade.
O BCav formou. Uniram-se os Cavaleiros de Pirada, na esteira de outros que por lá passaram, amassando e amargurando o “pão do diabo”.
Formatura, com certeza, com muitas falhas, colorida, embora, com os lenços pretos, azuis, vermelhos e amarelos, ao pescoço de cada um. Dentro do peito, palpitava em todos no coração a dignidade do Soldado Português, que enfrentou os perigos de uma guerra dura, dilacerante, subversiva de cariz politico, mas que soube outrossim, na hora própria, abraçar os que havia enfrentado como inimigos, construindo e consolidando a Paz, sem ressentimentos ou rancores, porque o verdadeiro soldado não odeia, ama, mesmo na atrocidade das batalhas.
Aqueles 500 homens ouviram o seu Comandante, num eloquente improviso pleno de gratidão e homenagem àqueles que orgulhosamente chefiou. O coronel Jorge Mathias (hoje, de saudosa memória) lembrou os que sofreram, digna e heroicamente, no “inferno” de Copá, e chamou, numa evocação saudosa, os que caíram para sempre, a cimentarem com a carne e o sangue os alicerces da Pátria.
Não esqueceu, também, os ausentes por motivos de evacuação, com menção especial do capitão Ângelo Cruz, ex-comandante da 1ª. Companhia, mutilado em combate.
Dirigiu-se depois às tropas o comandante-chefe das Forças Armadas da Guiné, Brigadeiro graduado Carlos Fabião, que distinguiu o BCav com a sua presença pessoal e amiga, neste acto solene e final da Unidade. Endereçou aos militares palavras de reconhecimento e louvor, pelo seu esforço e pela disciplina sempre patente. Apontou-lhes os caminhos da Paz e da Liberdade que todos – disse – “vão encontrar num Portugal renovado, para o que devem estar preparados, com o mesmo esforço e denodo com que cumpriram a sua missão nas terras da Guiné”.
Após a distribuição de prémios aos graduados e praças que mais se evidenciaram no cumprimento dos seus deveres, numa apreciação global da respectiva conduta, o BCav 8323 desfilou em continência perante aquela primeira Entidade grada da Guiné... que fora solo de Portugal.
Terminara a missão. Valeu a pena?
À frente estava o futuro. O futuro incerto. O futuro que se veio a concretizar em muitas desilusões e tragédias. O futuro que julga a História! Porém, ao Soldado, apenas se exige que cumpra os objectivos da Politica... E é ao Povo que se reserva o direito de julgar a Politica.