segunda-feira, 19 de março de 2012

Para que da Memória se faça História


Feitos e Factos
da “descolonização” da Guiné - 5


Finalmente, chegou o dia de marchar para o destino que me haviam superiormente reservado. Rumo a Pirada, no norte da província, fronteira com o Senegal. Ia preencher, em rendição
individual, o lugar do oficial de operações que havia sido evacuado para a Metrópole, por doença. A função não me estava, em princípio, destinada, porque outro havia sido nomeado antes, um capitão de infantaria que, por ironia do destino, seguiu a meu lado no avião, na viagem de Lisboa para Bissau. Simplesmente, chegados à Guiné, este oficial ficou, pelo que ouvi dizer depois, na Comissão de Economia, organismo recentemente criado após o “25 de Abril”. Deste modo, a “sorte” do mato resvalou para o autor destas linhas. Mas não fiquei prejudicado, pelo valor da experiência vivida.


Manhã cedo, dirigi-me para o porto de Bissau, frente à fortaleza da Amura, a fim de embarcar numa LDP (lancha de desembarque pequena) que me levava a Bambadinca, a montante do estuário do Geba. Daqui, em coluna motorizada, atingimos Nova Lamego (Gabú), passando por Bafatá, e, mais tarde, continuámos até Pirada. Um dos meus acompanhantes era o capitão Mário Ribeiro, chefe da secretaria do BCav onde eu ia ser colocado, e que regressava à Unidade, vindo de licença, julgo. Tive oportunidade de melhor conhecer, depois, este militar, muito calmo, sensato, e bom conselheiro do Comando.

Atingimos Pirada, por longas picadas atravessando extensas áreas de baixa arborização e de relevo suave. Algumas bolanhas, também, no percurso, ressequidas, pois estávamos na época seca. Dava a impressão de que percorríamos o Alto Alentejo. Que diferente era esta paisagem da África que eu anteriormente conhecera!

Já na sede do Batalhão e imbuído nas minhas funções, fui pouco a pouco tomando contacto com a realidade que me envolvia. Tive a sorte de encontrar no Comando dois oficiais de profunda formação humana e militar. Cavaleiros, bem prestigiando o espírito da sua Arma e a memória de Mouzinho.

À noite, reuníamo-nos fora da “messe”, sentados ao redor de uma mesa, debaixo da cobertura de capim, num cenário tipicamente africano, a ouvir as emissões da BBC, em Português, que relatavam as conversações que decorriam em Londres entre o PAIGC e a delegação Portuguesa. Tudo era ainda indefinido, e os militares daquela Unidade sentiam o coração apertado... É que, depois do golpe de Estado do “25 de Abril”, em Lisboa, as operações militares, ali na Guiné, tinham sido interrompidas, tanto por parte das nossas tropas como por parte do “In” (inimigo, segundo o léxico militar). Era impossível continuarmos em guerra. O moral dos nossos militares era caracterizado por uma forte ânsia de tudo largar e de voltar ao torrão metropolitano, ao seio dos seus familiares. E ninguém sabia como o futuro se ia desenhar... Ainda estava na memória de todos, segundo ouvia contar, o ataque do PAIGC a Copá (uma posição do Batalhão), em Janeiro desse ano, onde o In tinha utilizado uma ou duas viaturas blindadas, e um poder de fogo fora do habitual.

Tudo se desenrolava a favor do PAIGC, e se este decidisse continuar a luta, era claro que as nossas tropas seriam massacradas, pois, na situação politica portuguesa do momento, a “vontade de combater” tinha-se diluído na quase anarquia que as nossas forças começavam a experimentar. E que fazer daqueles militares naturais que haviam lutado ao lado dos europeus, na defesa do seu “chão”, das suas tabancas e das suas famílias?!... Tudo era incógnita! Mas uma coisa ensinava a História: quando a retaguarda se rende, as tropas combatentes das primeiras linhas ficam em risco de serem martirizadas. Era esse o espectro negro e sombrio que tinha ido encontrar na alma daqueles combatentes, brancos e pretos, da longínqua terra ainda portuguesa da Guiné, junto da fronteira com o Senegal.



Mas o Ten-coronel Matias - homem e militar extraordinário, especialmente nesta situação delicadíssima – estava à altura de enfrentar todos os desafios, por mais intrincados que fossem. Fazia tudo para levantar o espírito das suas tropas e, mesmo, da população daquela terra. Então, organizou, em certo domingo, 23 de Junho, uma “festa” – a Festa da F.A.P. (Força Aérea Portuguesa) –, de que faziam parte uma corrida de cavalos e uma “tourada” ...






Chegaram de Bissau, em meios aéreos, os convidados... Disposto o cenário, com viaturas à volta, bidões e outros apetrechos, seguiu-se o programa. Foi um festival, que aquela gente adorou. Era tudo “prata da casa”: os “touros”, da “ganadaria” da população local... Os cavalos, do régulo e outros... Pobres “bichos”, que nunca
pensaram fazer parte de um espectáculo daqueles!

Houve corajosos que saltaram para a “arena” a realizar “pegas” afoitas... Mas, sobretudo, viu-se alegria, entusiasmo, entre militares e civis, brancos, pretos e mestiços...

Por umas horas, naquele meu domingo em Pirada, esqueceram-se as preocupações... da guerra, para festejar... a paz possível.

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