segunda-feira, 19 de março de 2012

Para que da Memória se faça História


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Feitos e Factos da “descolonização” da Guiné - 4

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    Na tarde de 25 de Maio de 1974, e ao fim de três horas de voo desde Lisboa, desembarquei em Bissau, no aeroporto de Bissalanca. Tudo era novo para mim, desconhecido. Ia enfrentar a missão mais desconcertada da minha vida. A incógnita era a marca do futuro.
    Contudo, o militar é treinado para fazer face aos perigos da guerra, mesmo das operações subversivas, onde as leis dos tratados internacionais da guerra clássica (Convenção de Genebra) não são respeitadas pelo inimigo. Por isso, provocam também respostas adequadas de quem o enfrenta, em legítima defesa. Tem de haver uma grande capacidade para reagir ao inesperado, a situações inopinadas. Elaboram-se os planos, mas é necessária uma boa dose de adaptação, na execução, aquilo a que se chama “Conduta”. E, neste caso, a conduta ia revestir-se com roupagens da Politica.
    Daqui para a frente, ia haver lugar para uma simbiose entre acções militares e atitudes
    politicas, a todos os níveis, e, por vezes, ia ser difícil distinguir a fronteira entre os dois campos de actuação. A guerra – segundo Clausewitz – não é mais do que a continuação da politica por outros meios; Lenine, havia acrescentado: “A paz também, a paz não é outra coisa que a continuação da luta por outros meios. A paz e a guerra não são senão dois aspectos da mesma luta, permanente e necessária.” (cfr.: “Guerra Revolucionária”, Hermes de Oliveira).
    Por isso, e dentro destes princípios, as forças do nosso “adversário” estavam estruturadas em hierarquias paralelas: os que executavam as operações militares, cingiam-se às orientações estratégicas dos “comissários políticos” – como viríamos a reconhecer, uma vez em funções. Para os militares, a táctica; para os políticos, a estratégia. Hoje, a quase quarenta anos de distância dos cenários que motivam estas “crónicas”, e vivendo as dificuldades que abalam o Ocidente, soam-me proféticos os vaticínios de Mão Tsé-Tung (1953): “Uma vaga de revolução varrerá todo o continente africano, e os imperialistas e os colonialistas serão rapidamente lançados ao mar... Uma vez a Ásia e a África separadas dos países capitalistas da Europa, o continente europeu desmoronar-se-á por completo do ponto de vista económico... A crise europeia será seguida duma quebra económica total e duma catástrofe industrial.” (Ibidem). (Pense daqui o quiser e quem quiser...)
    Ao fim da tarde, já me encontrava instalado no “Clube”, em condições satisfatórias, aguardando, com expectativa, o meu destino. Contactando com “camaradas” já conhecidos, que ali se encontravam em trânsito, ou em serviço na capital, fui-me inteirando da situação: já não havia guerra activa, no interior. Aguardava-se o resultado das conversações em curso entre delegados do PAIGC e de Portugal, iniciadas nesse mesmo dia em Londres. Por isso, à noite, depois de jantar, colávamos o “transístor” ao ouvido, para ouvir os noticiários em Português, das emissões regulares da BBC. Ninguém podia prever o futuro, que ainda se mostrava aleatório.
    Permaneci em Bissau cerca de duas semanas, antes que me proporcionassem transporte para o destino que, entretanto, me saiu na “rifa”. A minha comissão, em rendição individual, programada antes do “golpe de Estado”, acabou por sofrer um desvio de agulha, dado que só se operou um mês depois: o oficial que estava designado ao lugar que acabei por ocupar, ficou por Bissau, num cargo governamental, e eu fui para o mato, ocupar o lugar vago de um evacuado, que o primeiro devia ter preenchido. Interessante, é que fomos os dois no mesmo avião, lado a lado (ironias do destino, que nem sempre se processam em prejuízo... Deus o sabe).
    Aproveitei, então, as curtas “férias” forçadas para conhecer a cidade e observar os costumes do seu povo. Assisti à missa na catedral, bela, altiva, saliente naquela planura citadina. Uma longa avenida ligava o Palácio do Governo até ao estuário/delta do rio Geba. Vários monumentos povoavam os jardins, lembrando os Descobrimentos e a História. Ligeiramente proeminente, vigilante, frente ao porto, ali estava a fortaleza da Amura, que meses mais tarde haveria também de servir-me de habitação.
    Na “Metrópole”, quando se falava em Guiné, era de um modo aterrador... Era a guerra, cruenta e assassina. Não foram essas as minhas primeiras impressões, e observei correrem perfeitamente amistosas as relações entre europeus e africanos. O comércio, com muitas lojas de europeus, era de franco movimento, e os naturais (alguns do Senegal, fronteiriço) vendiam nas ruas com liberdade e alegria. À tarde, as “tascas” (bares) ribeirinhas enchiam-se de pessoal, a saborear as deliciosas ostras, servidas num grande balde de zinco, sobre mesas de madeira. A cerveja era o néctar dos céus, despejado em profusão naquele ambiente quente e agitado. Havia paz e alegria de viver...
    Quem diria que aquela era a Guiné, de tanta luta e morte?!...
    Ali vivia-se, afinal (por enquanto) Portugal!

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