segunda-feira, 19 de março de 2012

Para que da Memória se faça História



Feitos e Factos
da “descolonização” da Guiné - 6


Aquela “Festa da F.A.P.”, fora um “ronco” (feito vistoso, êxito retumbante, que dá nas vistas), em Pirada. A população local entusiasmou-se com o acontecimento, e participou efusivamente. De resto vivíamos, ali, em franca amizade e colaboração. A tropa fornecia ao povo, gratuitamente, sacos de arroz, como ajuda de subsistência, e eram frequentes os pedidos nesse sentido, naqueles tempos difíceis de guerra.

Havia, em Pirada, um Posto Administrativo, e cheguei a conhecer o respectivo administrador (branco), mas dentro de pouco tempo este funcionário do Estado português ausentou-se definitivamente. Ficara com as suas funções o seu adjunto, um natural do território, homem jovem, culto, activo, que dentro de pouco tempo se integrou nas actividades propagandísticas do PAIGC. Tinham cessado as hostilidades, e o “Partido” iniciara já a sua acção psicológica através de “testas de ponte”, organizando comícios (banjas), onde as mulheres, trajando vestes exuberantes, manifestavam ruidosamente o seu apoio folclórico.

Notava-se na povoação um certo desenvolvimento comercial, e a ela afluíam gentes vindas a pé do Senegal, fronteiriço a norte, a cerca de um quilómetro. O povo vivia dos seus próprios recursos hortícolas e da criação de gado. A antiga capela, abandonada, servia de armazém... Antes do golpe de Estado, em Lisboa, existira em Pirada uma delegação da DGS (Direcção Geral de Segurança, antiga PIDE – Policia Internacional e de Defesa do Estado), que, em consequência, havia sido extinta. A situação geral era precária, e, dia a dia, apresentava novas facetas, às vezes desconcertantes. Não se podia prever com razoável certeza a evolução dos acontecimentos, tanto no aspecto político-militar, como no âmbito social.

Estava na memória de todos, ainda, o violento ataque sofrido em Pirada no próprio dia 25 de Abril, com mísseis e morteiros, de que resultaram vários mortos e feridos, e, por isso, tinha sido com enorme regozijo que, nesse próprio dia, à noite, a tropa ouvira as notícias da BBC sobre o golpe de Estado em Lisboa. Tal significava o fim da guerra, tão violenta e traiçoeira.


Daí em diante, apenas latejava no espírito dos militares europeus a vontade de regressar ao torrão metropolitano o mais depressa possível... Contudo, entre os naturais, as preocupações eram de outra índole: o que lhes iria acontecer, quando o PAIGC tomasse conta dos seus destinos; a eles, especialmente militares e milícias, que tinham integrado as forças portuguesas na defesa das suas vidas e tabancas contra o inimigo comum? Temiam esperadas retaliações, ajustes de contas... E não eram infundados os seus receios, pois é do domínio público o facto de terem sido executados, após a retirada dos portugueses, centenas de guineenses que tinham lutado sob a Bandeira de Portugal (foi dito por Otelo Saraiva de Carvalho, e admitido, mais tarde, como verdadeiro, por Luís Cabral, já falecido, num programa da RTP).

A conjuntura tornava-se, assim, dia a dia mais imprecisa e ameaçadora, pois o que mais desgastava o moral das tropas era o desconhecimento do futuro próximo. Acreditava-se que a guerra tinha terminado... Mas, e agora?!... Poderiam deflagrar a qualquer momento retaliações!... Os cenários eram nebulosos, e sentíamos que o “timão do navio” tinha fugido das nossas mãos. Mais do que condutores dos acontecimentos, estávamos à mercê deles, à deriva num mar de incertezas...

Era flagrante a satisfação da paz, ainda que precária, mas sob o síndrome de “vencidos”. Tínhamos perdido toda a capacidade de escolher o caminho... Consequentemente, a disciplina fraquejava. Comandar, começava a ser uma tarefa de bom senso, mais do que um exercício de autoridade. Recordo que em certo dia, quando o pessoal do rancho geral – um cozinheiro e o cabo responsável – levava, à hora da refeição da tarde, a “amostra” ao Comando, um corpulento soldado oriundo de um dos bairros mais castiços de Lisboa abordou, na parada, o duo do respectivo serviço, e exigiu provar ele próprio a comida, apesar da reacção negativa do cabo responsável. Depois de levar à boca uma colher do cozinhado, exclamou: “isto está uma merda!...”, e desferiu, acto contínuo, um pontapé no tabuleiro da “amostra”, mandando tudo pelos ares. Claro que, comunicado o facto superiormente ao oficial de dia, houve participação do acontecido, auto de averiguação consequente, por um oficial de justiça, e decisão do Comando punindo o infractor com... uma “repreensão agravada”... Em situação normal, este acto grave de indisciplina teria merecido uma pena mais severa, mas havia que não mexer muito as águas, para não provocar nos ânimos da soldadesca, já “em fio de navalha”, um vórtice que tudo engolisse. Mas o epílogo foi bem pior, para caracterizar o clima de quase anarquia em que tínhamos caído...

Elaborado, no auto de averiguações, o despacho do comandante em exercício (major M. B.), foi chamado o infractor ao seu gabinete, para ouvir a leitura da “repreensão”. Presentes no acto, o autor destas linhas (nas funções interinas de 2º. Comandante) e o comandante da Companhia (CCS) do militar a punir. Era já noite. Havia certa apreensão pelas consequências, pois, entretanto, nas imediações, ia-se formando uma “claque de apoio” ao indisciplinado autor do pontapé no tabuleiro da amostra. Tudo a postos, e antes da leitura do despacho, começara o comandante a caracterizar a falta cometida, dirigindo ao soldado uma “palestra” moralizadora, justificando a benevolência da punição perante a gravidade do acto cometido. Fora, a “claque” observava a evolução do acontecimento... A certo ponto, o comandante da CCS segreda-me ao ouvido para aconselhar, veladamente, o comandante a “indultar” a punição, clemência justificada face à situação de circunstância geral vivida... Temia que, ali, o poder (do comando) caísse... na parada. Comungando da mesma ideia, cochichei ao ouvido do meu superior imediato que o melhor era perdoar ao infractor... Foi o que ele fez, ajuizando pela melhor solução, face à instabilidade que, de contrário, era previsível.

Na verdade, e na prática, com um golpe de Estado na retaguarda, o comando das tropas combatentes nas primeira linhas, a milhares de quilómetros de distância, já tinha caído na rua... A missão, agora, era evitar o descalabro, prevenindo a anarquia... Jogar com um pau de dois bicos, como diz o povo. E a sabedoria popular, geralmente, é sensata, para que se evite o pior. Do mal, o menos.

O indisciplinado soldado foi perdoado, para que se prevenisse a “paz social” entre as hostes... sob estes custos conjunturais, que não foram únicos...

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