quinta-feira, 3 de maio de 2012

Para que da memória se faça História



Feitos e Factos da “descolonização” da Guiné – 7




Os acontecimentos, em Pirada, desenvolviam-se a ritmo alucinante e imprevisível. O futuro era uma incógnita, desgastante. A actividade operacional tinha sido suspensa. Apenas se cumpriam as necessidades imediatas de vigilância próxima. Vivia-se na incerteza, no que poderia acontecer no amanhã... Cada minuto, cada hora por sua vez. A situação não era, porém, favorável a uma boa saúde mental das tropas, tanto entre os europeus como quanto aos naturais (militares e milícias).
A tropa metropolitana ansiava o seu regresso imediato ao torrão europeu. A disciplina caíra a padrões inadmissíveis, e esse estado de espírito tendia a agravar-se, em descontrolo psíquico. Certo dia, à tarde, talvez em dia de domingo, estando eu a trabalhar no meu gabinete, dei conta de que, fora, algo de anormal se passava entre dois militares: um de cor, o outro, europeu. O primeiro ia lesto, perseguido pelo segundo, de G3 (espingarda) na mão e de ânimo exaltado. Corri para o jeep, fui rápido ao campo de voleibol, ali próximo, e disse ao major M.B., que ali jogava numa equipa, se metesse na viatura e me acompanhasse, numa emergência... Disparado na direcção da ocorrência, conseguimos chegar junto dos contendores, a tempo de evitar o pior, de acalmar os ânimos e desarmar os intentos do potencial agressor.
Vivíamos, pois, num ambiente delicado, quase explosivo, quanto ao comportamento dos militares, de modo particular dos europeus. De resto, isso era flagrante no atavio: tronco nu, calçando “chanatas”, cabelo e barba sem esmero, modos bruscos e alarves – a decadência do brio e decoro militares. Para os soldados de cor, para a população civil, e não só, isto era uma imagem desprestigiante do Exército que até aí tanto sofrera e dera a vida pela defesa do seu chão, do território guineense.
Dizia atrás: “e não só”, pois, em certa ocasião, o povo e, mesmo, soldados e milícias nativos foram convidados, nos primeiros dias de Junho (1974) a sessões de esclarecimento ministradas por elementos do PAIGC, na fronteira e do lado do Senegal. As coisas iam já acontecendo à margem do nosso controlo. Muitos foram para lá, e até os nossos soldados brancos se aprestaram a ver in loco, por curiosidade, o que se passava. Não puderam, contudo, passar além do limite do território (português), pois, junto da barra da fronteira, estavam militares senegaleses, vigilantes, a impedir a passagem dos europeus. Verifiquei, presencialmente, o facto, e senti-me envergonhado perante o contraste, ali, entre os nossos militares e os do Senegal: estes, educados, gentis, bem uniformizados; os nossos, mais parecendo elementos de um bando de rufias. Que mau cartão de identidade!...
Outras “sessões de esclarecimento” se foram seguindo, primeiro junto à fronteira, depois já dentro do nosso território, em Pirada. O elemento feminino era a pedra de toque destas reuniões, com as suas vestes tradicionais, as suas danças rítmicas e os seus cantares tão genuinamente nativos. Constituíam, as mulheres, uma espécie de claque de apoio, motivadora, entusiasta. Tudo fazia parte de uma bem orquestrada acção psicológica a fim de preparar e convencer as populações para a mudança de domínio politico. O povo mostrava-se apreensivo, os militares naturais e os elementos das milícias começavam a dar mostras de pouca esperança no futuro dos seus dias, e de algum temor quanto a possíveis retaliações vingativas. Pouco a pouco, ia eu meditando no meu íntimo: “esta gente não vai conquistar a liberdade; vamos entregá-la de mão beijada, agora sim, a uma feroz ditadura”. 
Entretanto, continuávamos a dar apoio à população, em estreito contacto com o adjunto da administração civil local, um natural, e com boas relações estabelecidas com alguns comerciantes da localidade. Um deles, o mais influente, que aqui apenas designarei, por razões óbvias, de “M. S”., costumava reunir, à noite, no seu estabelecimento, alguns oficiais do Batalhão, em ameno convívio, a que não faltavam as bebidas que o ambiente proporcionava. Todos se admiravam e entusiasmavam com tanta “generosidade”... Só que, mais tarde, nas vésperas da partida da Unidade para Bissau, abandonando o aquartelamento (que foi entregue ao PAIGC), as contas, individuais, apareceram, com a perplexidade de cada um dos seus destinatários... Bem avisado andou o autor destas linhas, que, logo de princípio, não se mostrou disposto a  integrar esse “clube” de amigos.
Certo dia, estando o comandante de batalhão ausente, de licença, e tendo o 2º. Comandante também partido a visitar uma outra unidade vizinha, “M. S”., entrou no quartel e quis fornecer-me uma informação importante. Recebi-o no gabinete do comando e aprestei-me a ouvi-lo. Disse que tinha recebido notícias recentes, por um emissário, de que em Zinguinchor, porto de mar do Senegal, perto da fronteira com a Guiné, a norte, havia chegado um navio que descarregara grande quantidade de material de guerra, prevendo-se por isso um ataque em força, do PAIGC, às posições portuguesas. Era preciso tomar medidas imediatas, acrescentou o “informador”.
Ouvi-o com atenção, e respondi-lhe que agradecia o comunicado, mas que lamentava não tivesse vindo uns minutos antes, para dar a notícia, directamente, ao major “M. B”., 2º. Comandante, que tinha partido, havia pouco, para Nova Lamego. Mais lhe disse que, no regresso do meu superior, logo o colocaria a par da informação. Fiquei com a noção de que a intenção de M.S. era experimentar-me, para avaliar a minha reacção, dado que era eu, ali, ainda novo nas funções. No regresso de “M. B”., dei-lhe conta do sucedido, e o caso ficou por aí... Nada de gravoso surgiu posteriormente, que viesse confirmar a notícia e a alterar a situação vivida.
De resto, esta figura típica do conhecido e influente “comerciante”, cujo protagonismo espontâneo era considerado pouco fiável, por se admitir que “jogasse” com um “pau de dois bicos”, apoiando as nossas forças, sem deixar de favorecer também o lado contrário, viria a ser vítima da sua suposta duplicidade de actuação: não logrou garantir as boas graças dos “Libertadores” da Guiné. Quando abandonámos a posição, “M. S.” manteve-se, como antes, em Pirada. Soube-se mais tarde que tivera de enfrentar, logo a seguir, uma situação muito atribulada, difícil, até conseguir sair para Portugal. (Disso, deu conta, vinte anos depois, a “Revista “ do semanário “Expresso”, de 22 de aneiro de 1994). 

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