quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Para que da Memória se faça História

Apontamentos de um soldado em África - 7
A lição dos Nossos Mortos
Ao tempo em que escrevo estas palavras, discute-se na ONU o problema (problema!...) de Portugal em África. Grita-se, nesse Areópago internacional onde se respira confusão, ignorância e ódio, a palavra «Independência», pedra dura que muitos nos atiram, para que abandonemos os nossos territórios sagrados.
O soldado é apolítico, mas nunca será um insensível perante os berros da Política - no caso presente, da Política Internacional -, se eles ferem o que de mais profundo consolida o seu coração de militar - a Pátria. É para ela que ele existe, para o seu povo, para as suas tradições, para a sua história; é por ela que sofre os ardores da luta e enfrenta as garras do perigo; é por ela que morre, num holocausto generoso e heróico. E, muitas vezes, como na conjuntura que nos trouxe à terra africana, ele encontra, a complementarem-se no seu ideal, a Pátria e a Fé, o seu Povo e o seu Deus.
Independência!...
Este grito tendencioso não pode deixar de me trazer à mente a recordação de alguns camaradas caídos, há bem pouco tempo, no campo da honra, no cumprimento da sagrada missão. Ainda não vão longe os dias em que trabalhávamos lado a lado... Num momento, a guerra ceifou-os para sempre! A Pátria pediu-lhes o sacrifício supremo... E o seu exemplo pede-nos que sejamos fiéis, como eles o foram; que continuemos fazendo aquilo que eles já não podem lavar a cabo; que honremos a sua memória, o seu nome; que protejamos os seus lares, como eles quiseram guardar os nossos até à última gota do seu sangue!
Não! Os nossos mortos não nos deixam capitular perante as arremetidas estóicas e ambiciosas do inimigo. As vidas que partem clamam um Portugal uno e eterno, e seria traição horrenda não abrir a nossa alma ao seu brado, não prosseguir com redobrado vigor a defesa deste solo regado pela sangue de várias gerações.
Independência!... Para quem?!... De quê?!...
Portugal deu ao mundo novos mundos, ao mesmo tempo que arruinava na base o poderio dos que ameaçavam a Europa. Encontrou gente em estado selvagem, e à barbárie contrapôs a luz de uma civilização. Os ventos da História ... esses mesmos ventos que muitos pretendem agora fazer soprar de novo, levaram uma determinada delimitação geográfica aos territórios que possuímos. E à mistura de gentes, de raças, de culturas, de dialectos, de costumes e tradições, oferecemos uma unidade de civilização, sem destruirmos o que de seu era lícito manter. Demos uma Língua. para se comunicarem mais livremente, demos a nossa maneira de ser; demos a nossa Fé e a nossa história. Ensinámos o seu coração a sentir como o nosso; a amar no mesmo Amor, a querer na mesma vontade, a ansiar na mesma esperança. Fundiram-se as raças e as almas, em África, na Ásia e na Oceânia, e nestes continentes surgiram novos valores, rasgaram-se mais largos horizontes. Não usurpámos direitos, não acorrentámos nações. Libertámos gente do primitivismo, estendendo até ela o calor do nosso lar. Completámos uma Nação, demos uma Pátria ...; arranjámos mais irmãos. Aqueles que nos combatem não compreendem (não querem compreender...) que um metropolitano se sinta irmão do angolano, que o homem de Cabo Verde não seja um estranho diante do goês; que o moçambicano se ache no seu país, quando visita a Madeira, Açores, Guiné ou Timor. É, de facto, grandioso de mais para quem se habituou a largar ao sabor das conveniências; para quem se habituou a ser padrasto, em vez de pai; para quem se habituou a receber, em vez de dar!... É de facto grandioso de mais, para alguns, ver nas escolas, nas universidades, nos seminários, nas oficinas, nas fileiras do Exército... lado a lado labutando num ideal comum, os portugueses dos territórios geograficamente mais afastados; lado a lado, brancos, pretos, amarelos e mestiços. E como é belo ouvi-los falar a mesma língua, apreciá-los sentir do mesmo modo! Um português só se apercebe verdadeiramente da dimensão da sua nacionalidade, quando se vê em presença de um seu irmão de outro continente.
Não há, pois, um povo a pedir «Independência»! Há, sim, insurreição organizada de alguns, instigada por mentores ambiciosos, que pretendem avassalar o mundo através de uma nova ideologia; insurreição instigada por quem tenta a todo o custo destruir este nobre conceito de Pátria no coração dos homens; insurreição que estaria já extinta de todo, se não fossem as infiltrações de mercenários que não sentem pejo em ligar o crime ao seu modo de viver.
Defeitos?... Males?... Quem os não teve, e não continua a ter? Mas é isso um problema internacional? Quem se arroga a direito de entrar na casa do vizinho, sob pretexto de querer resolver os seus problemas familiares? As dificuldades do Ultramar Português apenas a nós dizem respeito, assim como as das outras nações somente a elas pertencem... E não são estas menores do que as nossas! Não há comunidade nenhuma que se possa vangloriar de não ter questões de que haja de se preocupar. Para enfrentar os problemas que nos aparecem, é a nós, portugueses, e a todos, que incumbe fazer esforços. Já há muito que são réprobos da Sociedade aqueles que colocam os seus interesses pessoais acima do bem comum.
Em vez de sairmos de África, agora, mais do que nunca, a ela nos temos de votar. Militares e civis, leigos e clérigos, técnicos e intelectuais, num viçoso florescimento de juventude espiritual, num enriquecimento cada vez mais largo e mais profundo da Raça Lusitana. O metropolitano não passará de um ente mesquinho e fechado, se não abarcar no seu ideal os valores que nascem nas terras de Além-mar, e o ultramarino não pode, sem se atraiçoar, desprezar o berço da sua nacionalidade. A vocação africana..., a vocação ultramarina, deve encontrar cada vez mais acolhedora morada no coração de todos os portugueses, especialmente agora, que o mundo se levanta contra nós.
Foi, por alguém, não há muito, levantada uma justificada pergunta: «Como serão os nossos jovens quando regressarem do Ultramar?». A resposta é de aguda delicadeza. Mas, se todos nos compenetrarmos das pesadas responsabilidades que nos incumbe suportar; se, nos diferentes campos da vida, soubermos conduzir os nossos actos no cumprimento fiel da missão que nos é confiada pelo momento histórico e pelas circunstâncias; se soubermos afirmar ao mundo que ainda somos portugueses e cristãos, não teremos que recear as consequências desta campanha que chamou a juventude fora do seu lar.
Incomparável mercê que a História te concede, ó Portugal, baluarte no Ocidente da civilização que a Europa parece deixar vacilar! Que o teu Povo se mostre ao nível dos teus desígnios sagrados, e ouça o clamor dos teus mortos a pedirem fidelidade ao seu exemplo!
Angola - Outubro de 1963

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

A Coragem de Viver

Já lá vão cerca de dois anos, vi, numa papelaria desta minha terra, exposto um livro que, pelo seu título, me chamou a atenção. Peguei nele, folheei-o, li algumas pequenas passagens, e fiquei logo impressionado pelo seu conteúdo. Adquiri-o, e li-o todo com ávido interesse.
Simplesmente impressionante! Coragem de viver!... Sem dúvida, mas também testemunho de muito amor e dedicação dos protagonistas... Familiar e profissional.
Uma menina que nasceu num parto difícil, e, por isso, ficou marcada com deficiências físicas, motoras, para toda a vida.
Uma família exemplar, com os progenitores a dedicarem-se, devotamente, a sua filha, para que ela conseguisse usufruir a melhor qualidade de vida, tanto no campo da saúde como no âmbito da sua educação e formação integral (felizmente, a criança não tinha ficado com sequelas nos seus dotes de inteligência). Um médico, que a cerca de duas centenas de quilómetros de distância, se empenhou totalmente a multiplicar os cuidados e a dilatar a esperança de um futuro promissor para a sua paciente. Exemplo de abnegação pessoal e de muita competência profissional e humana.
Depois... O dedo do Altíssimo a desenhar o percurso de tudo isto na vida atribulada da menina! Os acontecimentos «misteriosos» de que se serviu o Espírito, para guiar por mão sobrenatural os passos desta família! O lugar privilegiado onde se acendeu um farol de esperança, que veio iluminar o caminho a percorrer (capela da Senhora da Saúde, nos Carvalhos). Nada acontece por acaso, neste mundo. O que é preciso é estarmos atentos e disponíveis, para, no momento certo, reconhecer os sinais de Deus.
Não temos qualquer intuito publicitário na divulgação desta obra. Contudo, achamos que «A Coragem de Viver» é um autêntico Evangelho de vida, uma Boa Nova de salvação para todos os que desesperam dos seus dias mais ou menos dolorosos, mas sobretudo uma voz gritante contra aqueles que propagandeiam o aborto e a eutanásia como solução para a falta de coragem para viver e abraçar o sofrimento, que polarizado na Cruz de Jesus Cristo, é caminho de redenção e de felicidade eterna. Não se pode ler este livro, esta autobiografia, sem verter, de quando em vez, algumas lágrimas... É este, outro condão que o escrito possui – penetrar até ao íntimo mais profundo de nós mesmos e amolecer o nosso coração petrificado pelas nossas auto-suficiências, pelo nosso edonismo ávido de prazeres, pela nossa insensibilidade diante do sofrimento alheio.
Susana Santos... não é uma «deficiente»! Susana Santos é uma heróína, como heróis são os seus pais e o médico que a tem acompanhado no seu longo calvário de dor.
A Susana, uma jovem de 31 anos de idade, foi aluna da Escola Preparatória P. António Luís Moreira, e cursou a faculdade de economia da Universidade do Porto. Há dias, encontrei-a com seu pai, num supermercado desta nossa terra. Não pude resistir a manifestar-lhes a minha gratidão pelo seu testemunho de vida. E o facto de trazer hoje, a estas páginas, este apontamento, apenas se deve à vontade de lhe prestar pública homenagem, e de bradar bem alto a todos os que isto possam ler, nestes momentos de crise colectiva que atravessamos, que, apesar de tudo, a Vida tem um valor infinito que é preciso defender e preservar, e que, contra todos os seus detractores e contra os profetas da desesperança, importa nunca perder, como todas as Susanas deste Mundo, a «Coragem de Viver».

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

Para que da Memória se faça História

Apontamentos de um soldado em África 6
Forja de Portugueses
Trairia a minha própria consciência se, nestes apontamentos simples e despretensiosos, permitisse a lacuna formada pelo esquecimento do esforço heróico que, nos momentos que ora passam, a Juventude Portuguesa generosamente oferece à sua amada Pátria. E, para que isso não aconteça, a todos os jovens de Portugal dedico hoje as minhas palavras humildes, mesmo porque a tal intento me obriga a homenagem sincera que como português e como soldado devo prestar a todos, e principalmente àqueles que já caíram para que a Pátria mais se levante. Homenagem saudosa... para os que topei no mesmo caminho, e que agora só posso encontrar nas imagens... indeléveis... da memória. Que esta pequena meditação possa levar a todos, e àqueles que, não obstante o pesar dos anos, comportam alma de moços, um pouco dessa satisfação espiritual que brota do sentir vibrante e viçosa a alma de Portugal eterna no coração de seus filhos.
Ninguém desconhece, hoje, que estamos em guerra. Guerra de armas e de espíritos, guerra no espaço limitado do nosso território e no âmbito mundial das Assembleias de alto nível, guerra de sobrevivência de uma civilização. Ninguém desconhece, também, embora a mesma realidade seja recebida sob diversos ângulos, que capitular nesta batalha significaria encolher-se perante a afoiteza malévola do inimigo, e deixar-se envolver por um turbilhão de interesses contrapostos e devassos. E ninguém pode desconhecer ainda que esta é uma guerra de todos e terrível, onde o mais pacífico e afastado pode ser o mais acérrimo e próximo instigador; onde os inocentes têm, mais do que em outro qualquer conflito, insegura a sua própria integridade social e humana.
Guerra demoníaca, onde o ódio surge na sua mais acentuada manifestação, e onde, por isso mesmo, o AMOR é a mais eficiente e delicada arma de combate. Guerra fria e quente, que leva os homens a uma permanente desconfiança naquilo que os rodeia, e que obriga muitos, porque a desconhecem em profundidade, a combaterem-se a si próprios, iludidos pelas formas superficiais, e não vendo os resultados mais distantes consequentes dos seus actos. Guerra, enfim, que uns ganham e que outros, com idênticas intenções, podem conduzir a infelicidade da derrota. Foi esta a guerra que nos bateu à porta, como já outras nações visitara, e continua a ameaçar a mundo. Foi para esta guerra que os valores vitais da Nação se viram de um momento para o outro chamados a intervir.
Sob muitos aspectos podem ser consideradas as implicações de uma guerra nos diferentes campos da vida social e particular. E não é, pois, com desacerto que se fala das diferenças encontradas nos períodos de após guerra. Também nós poderíamos desenvolver um estudo neste campo, e inferir de um variado número de dados e pressupostos as consequências prováveis e reais da guerra em que lutamos. Umas seriam mais próximas, outras mais distantes; umas boas, outras más. Mas não foi com este fim que me propus escrever.
Interessa-me, antes, aqui, agarrar uma característica imediata, uma realidade palpável, que a situação presente veio, não descobrir, mas levantar perante nós próprios, afirmar ao própria mundo... que talvez desconfiasse das páginas históricas cantadas por Camões. A batalha que se abriu perante o povo português foi uma demanda ao valor da nossa Raça. E, sem demoras, mas com intrepidez, a resposta foi, desde o começo, decisiva, retumbante! O braço lusitano mostrou possuir ainda a mesma força antiga... e a alma, os mesmos sentimentos e a mesma fé. É por isso que eu chamo a esta guerra em que na África nos batemos (e em todo o mundo ... )
«Forja de Portugueses»!...
Desde a casa fina da cidade, à cabana sóbria do pastor serrano, nas províncias metropolitanas e nas terras ultramarinas, tal como no antanho, diante dos arrojados empreendimentos das descobertas, mães portuguesas deixaram cair pela face lágrimas de saudade. Ontem, as caravelas partiam com seus filhos buscando o resto de Portugal... Hoje, os navios continuam a sair barra fora, cortando as mesmas águas, traçando as mesmas derrotas, afirmando uno e forte, fiel e cristão, esse Portugal que os outros nos fizeram. O esforço empreendido nas horas do presente deixa escapar o mesmo perfume que emanava dos trabalhos do passado. É isso o que afirmamos ao mundo inteiro, e que vemos mais saliente na tarefa em que estamos empenhados. E, como naquele tempo.... havemos de vencer!
Forja de Portugueses!
Estes bravos rapazes adaptam-se a todas as circunstâncias, sofrem os sacrifícios e todas as dores, sentem agudos os espinhos da nostalgia, mas conservam o mesmo espírito heróico, a mesma vontade indestrutível, a mesma fé inabalável, o mesmo sorriso nos lábios, o mesmo coração generoso, a mesma alma de gigantes! Transmontanos, Beirões, Minhotos, Algarvios, Alentejanos, Madeirenses, Açoreanos, Caboverdeanos... da Guiné, de Angola.... enfim, de todo o canto de Portugal, aqui, todos sentem que são irmãos, filhos da mesma Pátria, lado a lado rindo e sofrendo... unidos lutando pelo mesmo ideal.
E não só estes! As cartas que recebemos dos rapazes que ainda estão na Metrópole, mas prestes a entrarem nas fileiras, confessam o seu entusiasmo, a sua doação, exprimem esse mesmo sentir dos que aqui já empunham armas para a defesa do solo sagrado. Na verdade, acendeu-se em África... uma forja de portugueses!
A juventude que aqui vem é temperada no fogo espiritual de uma Pátria que luta para continuar a senda histórica iniciada há séculos. É certo que o demónio e a fraqueza humana, aliados à agressividade e rusticidade das condições, a que se não pode fugir, tentam por todos os meios pervertê-la. E muitos serão os que sucumbem, e se afastam daquela linha de integridade que o bom cristão ambicionaria possuir. Mas, a esses, dai-lhes chefes dignos e mostrai-lhes bem clara a luz da verdade, e vereis que se levantam sem demora, para darem tudo o que de si a Pátria pedir. Forja de Portugueses!... Os que dela saírem hão-de envergonhar essa minoria que, buscando a ignomínia da vida fácil, apenas mais nela fazem do que construir castelos no ar, que se derrubam com o mais leve sopro de indiferença e desprezo. Valorosa Juventude! Em ti se realiza em glória PORTUGAL; em ti... que escolhes Deus para finalidade suprema dos teus sacrifícios! E vós.... os que partistes desta vida no decorrer da luta, segurai bem fundo, lá junto do Senhor do Universo, os alicerces da nossa Pátria amada!

Para que da Memória se faça História

Apontamentos de um soldado em África 5
Soldados de batina branca
Eram seis e meia da tarde, a passar, já. A noite, vencendo o receio do crepúsculo, começava a cobrir tudo em volta. A sineta daquela cruz tosca, feita de dois troncos de árvore, acabara de tocar as últimas badaladas. Ia começar a devoção do terço à Mãe Imaculada... o acto pleno de beleza e de singular conforto espiritual do Mês de Maria. No altar daquela capelinha tão simples e humilde, construída com ramos de palmeira, presidia a Rainha Santa Isabel, numa homenagem dos soldados de Coimbra. Duas Rainhas a velarem pela mesma Pátria amada!...
A oração começara, cheia de entusiasmo. Aos mistérios, elevam-se maviosos cânticos, que nos fazem sentir saudade e comoção. Saudade das mesmas cerimónias da terra natal – tão distante; comoção por aquele brotar de paz e louvor em terras que o ódio dilacerou e que olhos traiçoeiros vigiam.
O clamor daqueles soldados corria os ares. Talvez penetrasse por entre essas matas onde o perigo se esconde na frondosa vegetação... Talvez tocasse aqueles montes tão imponentes como inóspitos que avultam no horizonte! E se essa mensagem de amor conseguisse mover, no caminho, os corações dos que foram pervertidos... Se a solicitude da Mãe do Céu vencesse a dureza daquelas almas... Um dia, que Deus fará, elas ouvirão a Sua voz maternal... porque o Seu Coração há-de triunfar, finalmente!
- Eles já estão arrependidos - dizem os nativos que aqui vivem sossegadamente.- Eles passam mal, por lá. O preto não presta... O preto, na mata, apanha doença e morre – acrescentam. E tantos foram, na ilusão maligna!
De rica e densamente povoada, esta terra maravilhosa - este nosso novo poiso... - é hoje encontrada num abandono infecundo. E a devoção continuava, fremente, sincera, filial...
... Pelos soldados, que à guerra vão,
Senhora, escuta nossa oração!
Aproveitando o ensejo deste piedoso acto, queria hoje dedicar as minhas palavras a uma certa classe de soldados, às vezes esquecida entre os feitos barulhentos das armas bélicas. Esquecida, talvez porque as suas armas por de mais silenciosas para uma guerra de tiros, mas sumamente eficazes e oportunas para os que, mesmo nas lutas sangrentas, não deixam de sentir a necessidade de combater nas guerras da alma... De organizar a defesa contra a concupiscência feroz, contra o desespero aviltante, que nas horas de insegurança e desconforto armam perigosas ciladas ao espírito do homem.
Abnegados, voluntários no sacrifício, eles, esses soldados de batina branca - os bravos capelães militares -, deixaram tudo, ao chamamento da consciência, entregando-se com toda a sua alma ao serviço da Pátria, e por ela servem às almas e a Deus. Incompreendidos, por vezes, mal queridos, em tantas outras, eles sujeitaram-se a uma vida cheia de contrariedades e privações, tocando, em algumas ocasiões, o limiar da amargura… Apenas porque ouviram o brado aflitivo de tantas almas que foram tiradas ao afago terno do lar, que deixaram de ter presente a força espiritual da sua igreja, que viram ficar para trás o seu ambiente normal entre os amigos e as coisas queridas. Deixaram tudo, porque a Nação lhes pediu: - Vinde, que de vós preciso! -; porque o Senhor lhes disse, no seu foro íntimo: - A missão é nobre... Caminhai!
E ei-los por essa África escaldante a defender as almas dos heróicos militares, para que estes possam vencer as condições hostis a que o dever os trouxe, e empenhem todo o seu valor na luta contra o mal que o príncipe das trevas espalhou nesta terra de promissão... Para que eles encontrem, na hora derradeira - aqueles a quem Deus chamar no campo da honra - uma palavra de confiança, que lhes fortifique a fé, uma chama de amor que lhes traga o arrependimento submisso, e lhes abra, no perdão, as portas da Eternidade. Momentos inesquecíveis e gloriosos, esses que o padre vive - apesar de humanamente tristes - quando em seus braços entrega a alma a Deus, o soldado que perece no cumprimento do sagrado dever! Soldados de batina branca!...
Podeis vê-los no altar, celebrando o Santo Sacrifício antes das lutas; ouvindo as confidências dos rapazes; perdoando as suas misérias; de fato de combate, indistinguíveis entre os mais sujos e esforçados atiradores, penetrando nas matas e no capim, abraçados pelo perigo, mas confiando na Providência, para que os últimos sacramentos não faltem ao ferido de golpe mortal, ou mesmo ao inimigo, moribundo, arrependido.
Podeis vê-los, ainda, entre as populações pacíficas e laboriosas, acalentando, ensinando... missionando! Não são desconhecidas as obras de engrandecimento social que os capelães militares têm desenvolvido entre as populações nativas. Os jornais proclamam-nas sem rebuços.
Há tempos, numa patrulha de reconhecimento feita a um monte próximo, o capelão acompanhou-nos. De espingarda em punho - que pedira a um soldado para esse mesmo fim - ele tomou também a dianteira, a abrir caminho por entre o capim espesso que nos passava muito acima. Subiu, e cansou-se, como nós; comeu da mesma conserva; e foi até cuspido da viatura em que seguia, quando esta, num desnível de terreno, se voltou. No fim de tudo, apenas se preocupava com a hora de regresso, porque tinha ainda o breviário para rezar!... Inúmeros são os exemplos que eles dão nesta Angola, para uma verdadeira gesta; sem conta as vezes que, plena refrega, ouviram assobiar por sobre a cabeça as balas assassinas.
Bravos soldados da Paz, nesta guerra insidiosa que o mundo nos levanta traiçoeiramente! Gloriosa, a página que na História inseris! A Pátria vos agradecerá por todo o sempre, e serão fecundos os frutos que espalhais! Sempre vos ficará bem a farda do nosso valoroso Exército, e nas suas fileiras jamais destoará a alvura da vossa batina, onde se pode reflectir, sempre com fulgor, o verde rubro da nossa Bandeira!
O acto piedoso ia terminar. De frente para os seus rapazes, o padre capelão incutia-lhes no espírito um novo alento, através das suas palavras cheias de caridade. Mais um dia de trabalho chegara ao fim, e eles iam recolher à caserna, em busca do merecido descanso, com a alma mais tranquila, de coração entregue a Maria, Mãe de Deus.
A capelinha ficou vazia, mas naqueles montes distantes... ainda ecoavam os doces cantares do mês de Maio...
... Enquanto houver portugueses,
Tu serás o seu amor...
O seu amor!...

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Para que da Memória se faça História

Apontamentos de um soldado em África - 4
Maneiras de ser
A coluna havia partido, de Ambrizete, já tarde, rumo a Tomboco. A noite não se fez, por isso, rogada, e em pouco tempo tomou conta de todo o céu. Numa viatura à frente da minha, ia o homenzito que o Chefe de Posto pedira para transportar. Tratava-se de um doente que há tempos viera à vila, a tentar curar-se de uma tuberculose. Agora, alimentava o desejo de visitar a família... As instâncias do Chefe de Posto levaram-me a conceder a «boleia» àquele pobre homem. Do seu corpo quase só restavam os ossos e a pele, e era a custo que conseguia mover-se. Impressionou-me, quando o vi, mas conseguiu subir para o carro, e lá se acomodou entre os soldados.
A estrada, de terra batida e deficiente, fazia com que as viaturas sofressem uma contínua trepidação. Lembrei-me daquele doente; ainda pensei mudá-lo para o meu lugar, mas não levei em frente esse reflexo de consciência...
Andámos mais alguns quilómetros, e as viaturas pararam. Procurei o motivo: era o homenzito que entrava em agonia. Pobre preto! Senti uma pancada dura e contundente no meu coração; uma espécie de remorso quase a dilacerar-me a alma. Depois, vi que, afinal, o homem não vinha muito mal instalado. Os soldados haviam-lhe emprestado uns cobertores que lhe vinham a servir de assento. Mas não possuíra forças para muito viver. Ele próprio tivera dito momentos antes que iria morrer naquele dia... Interpretara perfeitamente a sua fraqueza física.
Estendido no chão, em plena noite e em sítio ermo da «picada», a sua alma tomava o caminho da Eternidade. Diante daquele corpo a dar as últimas da vida, senti-me embaraçado. Ele ia morrer sem uma palavra de conforto, sem um alento espiritual?... Debruçados sobre o homem, como que a tentar encontrar, para segurar, algum sopro vivificador, começávamos a sentir pesado o ambiente que nos cercava. Sentia uma tirana tensão na consciência... Era o primeiro caso que naquele género me aparecia pela frente!
De repente, o Chefe de Posto (antigo seminarista), que nos acompanhava na viagem, quebrou aquele estado de tensão psicológica. Levantou a dúvida sobre se o homem seria baptizado. Como ninguém tinha a certeza (mais tarde vim a saber que era pagão, embora trouxesse ao peito uma medalha de Nossa Senhora) resolveu administrar-lhe o baptismo, sob condição, na esperança de o homem se encontrar ainda com algum sopro de vida. Tomando um cantil, despejou um pouco de água sobre aquela negra cabeça, e proferiu as palavras da fórmula baptismal. Enviei a Deus uma curta oração por aquela alma que partia...
Importava prosseguir, e a coluna continuou a marcha, transportando, à mesma, aquele homem que, agora, não passava de cadáver. Não ia sentado como antes, mas estendido, hirto, com as mãos sobre o peito.
Cerca das vinte e três horas, chegámos à aldeia onde o defunto tinha gente de família. O Chefe de Posto, que viera mais adiantado à coluna, avisara o «povo» do acontecido. Quando lá chegámos, já todos esperavam aquele que não tinha conseguido aguentar o tempo suficiente para os visitar com vida. Parecia uma procissão de velas, tal o elevado número de pessoas que ali fora, com lanternas a iluminar o caminho.
Parámos. E quando se acercaram do defunto, algumas mulheres começaram a lançar ao ar gritos estranhos, e - os braços levantados - davam pequenos passos para a frente e para trás, numa espécie de dança que me deixava cheio de confusão e de espanto. Parecia-me que tudo aquilo era uma festa... Fiquei com a impressão de que causara alegria, a presença de tão tétrico facto. Vi, depois, que uma das mulheres, ao chegar-se junto de nós para ouvir contar como se tinham passado as coisas, trazia o rosto lavado em lágrimas. E, observando melhor, notei que em todas as faces se estampava, afinal, uma profunda tristeza. Estranha maneira de exprimir a dor! Ao fim e ao cabo, os seus sentimentos são bem arreigados e sólidos!
Se penetrarmos um pouco na vida desta gente, encontraremos muitos outros motivos que, a princípio, nos deixarão de certo modo perplexos, mas que logo compreenderemos, se tivermos um pouco de boa vontade e a sinceridade não for estranha ao nosso espírito.
Diante deste povo, deparamos com um modo de vida sui generis, que se impõe respeitar... Não podemos alimentar a utopia de substituir uma civilização por outra, mas antes proceder a uma natural e mútua assimilação das culturas, aceitando o que os africanos têm de si próprios, desde que essas realidades não colidam com os nossos princípios cristãos e patrióticos. Lentamente, eles deixarão então os hábitos que, em face da nossa maneira de ser, começam a encontrar obsoletos. Às vezes fazem-no até depressa de mais... E também nos choca ver que eles adoptam os nossos processos e as nossas coisas sem estarem devidamente preparados para elas. Mas isso demonstra o natural desejo que têm de se aproximarem dos nossos costumes, e, se aproveitarmos este fluxo da sua personalidade e lhe dermos uma orientação cuidadosa e inteligente, poderemos então ter a certeza de que fazemos civilização, trazendo até nós aqueles que através de muitos anos procurámos arrancar ao primitivismo.
Quer nos admiremos ante a esquisita dança fúnebre, ou achemos graça à criancita que a mãe transporta amarrada às costas, com a qual trabalha nas lavras que diariamente trata com esmero; quer encontremos primitivismo no facto de ver as mulheres fumarem o seu tabaco, e com a lume para dentro da boca... (à excepção deste particular, parece que na sociedade civilizada se pretende voltar a esse estádio da vida…), ou achemos atrasado, mas típico, o moer da mandioca num grande almofariz feito de tronco de árvore, não nos podemos esquecer que estes são os nossas irmãos portugueses do Ultramar. Mas há muitos que o esquecem... Talvez porque julgavam que no mundo não se vivia de outra maneira além daquela que estavam habituados a ver em redor da sua casa de pedra o cal, ou porque, então, receberam, com a luz da civilização que os envolve, a escuridão do mal o do pecado, que infelizmente grassa por toda a parte onde houver vida de gente.
Mas nós acreditamos na vocação lusitana, iniciada há muitos séculos, abençoada pelo Senhor a quem têm de obedecer os universos, confirmada pela Senhora branca de Fátima, e que, finalmente, a história há-de provar, contra as insídias do príncipe das trevas, que encontram bom acolhimento nos corações pouco avisados. Acreditamos!

Para que da Memória se faça História

Apontamentos de um soldado em África 3
A Escola
Se gloriosa, pela afirmação que faz ao mundo dos princípios fundamentais da nossa Civilização; se nobre, pelo seu carácter de abnegação caridosa a elevar as almas na Luz e na Verdade; se fecunda, pelo resultado profícuo da semente que se lança em terreno tão feraz, a missão daqueles que foram chamados ao Ultramar, nesta hora decisiva e pesada da vida nacional, é também extraordinariamente sedutora, inebriante.
O artífice sente-se transportado em personalidade para a obra que realiza; o lavrador bebe o licor da satisfação espiritual quando, sorridente, vê, passados tempos, a cultura brotar dos campos, numa produção de cem por cada grão deitado à terra. Aí está, bafejada pelo poder do Criador, a coroação do seu esforço, do suor do seu sacrifício.
Do mesmo modo, e mais profundo ainda, é o consolo que todos sentem na tarefa da educação, visto que então – aí, sim! – vemos, numa outra alma, transplantada a nossa própria espiritualidade.
Chamados, de repente, às misteriosas paragens africanas, a confusão e o êxtase são talvez as primeiras impressões que nos dominam. Confusos, porque se nos depara um vasto campo de trabalho, com problemas complexos e segredos múltiplos, carregado de características particularíssimas, que, em parte, ouvimos referir alguma vez, mas que, na verdade, desconhecíamos completamente. A África não se conta… apreende-se! É preciso vir cá para que se possa construir acerca dela uma ideia mais ou menos fiel. Podemos prepararmo-nos para isto, mas senti-lo… só aqui! E surpreende-nos também o êxtase, porque a beleza desse campo de trabalho é fantástica. Mãos à obra (se queremos atender à súplica que à nossa volta continuamente se levanta), logo sentimos que é reconfortante e atraente debruçarmo-nos sobre os problemas desta gente irmã, e dar-lhes tudo aquilo que o nosso coração não nega em capacidade.
Nesta luta que somos obrigados a travar, para que sejam preservados os valores cristãos e nacionais, contra as arremetidas do mundo tresloucado, não cumpre a missão aquele que apenas confia à espada a solução dos problemas. Mesmo que poucos, os conhecimentos possuídos sobre a natureza desta guerra (que é mundial!...), aquele que pisa solo ultramarino logo vê que muito mais lhe é pedido. E ai dele… e, por ele, ai de todos nós, se a sua formação espiritual não está à altura de responder à exigências que lhe são dirigidas; se a sua alma traz o vício em vez da virtude; se o seu coração já começou a ser corrupto! Fora melhor, então, que não viesse, porque levar-nos-á ao tribunal da História… E bem terríveis são os seus julgamentos!
Uma das tarefas que neste tão penoso, como glorioso, trabalho nos ocupam, é a instrução primária das crianças – crianças, nem todos, porque muitos dos nossos escolares são já adolescentes. É extraordinária a vontade de saber que manifestam, e bem aguda, a sua inteligência. Parece ainda que um perfume de poesia, de ternura, de suavidade lhes enche a alma. Gradualmente, com cuidado, vamos-lhes ministrando os ensinamentos, e as horas passadas são de perfeito enlevo. Pena é que o tempo de que dispomos e as condições que nos assistem não permitam uma maior dedicação a este objectivo, pois nestas almas e naquilo que lhes damos joga-se o futuro da Pátria.
Para frequentarem duas escolas que funcionam nesta zona, alguns alunos têm de andar seis a sete quilómetros desde a sua aldeia. Mas vêm, providos ou não de alguns alimentos de reserva – meia dúzia de amendoins, duas ou três bananas, água, e, outros, um pouco de cana de açúcar ou uma raiz de mandioca. E lá estão, todos os dias, de olhos brilhantes e arregalados, face risonha e inocente, dispostos a receber a nossa mensagem de… civilização.
De manhã, quando vamos a chegar, os pequenos que vivem nas sanzalas mais próximas da escola largam em frenética corrida, ao verem o jeep aparecer na curva da estrada. Um «bom dia», meio «abrasileirado», sai em coro daquelas boquitas a sorrir, e alguns vêm até nós apertar e beijar a mão respeitosamente.
Todas as manhãs, o catequista nativo, sob orientação da missão católica, vai ensinar à escola a doutrina cristã. Muitos são os que se preparam para se aproximarem pela primeira vez da sagrada Mesa eucarística. O Espírito de Deus e da Pátria habita ali entre aquelas paredes de adobes, sob um tecto de capim seco – construção singela que caracteriza sobremaneira as terras de missão. Na hora de recreio, os jogos da pequenada trazem até nós a lembrança da longínqua Metrópole. É que também aqui as crianças vibram com a «cabra-cega», o «ratinho», o «João barqueiro»… com toda essa trama de brincadeiras a que não podia deixar de pertencer – já se vê – o velho «futebol», onde os rapazes são verdadeiros artistas. Há, porém, na nossa acção (na zona em que me baseio para estas considerações) uma falta, uma lacuna difícil de preencher. É a ausência de uma mão feminina que toma a seu cuidado as meninas, dando-lhes aquilo que a sua personalidade particular e a vocação que lhes é própria tão prementemente imploram. Esperemos os dias que hão-de vir e o florescimento das generosidades que já não são estranhas aos corações das jovens metropolitanas.
Se, na escola, tentamos introduzir um cântico da terra mãe, é com sofreguidão que o recebem. Podem não perceber o sentido das palavras, e muitas das crianças não percebem mesmo (é nossa missão ensinar-lhes a Língua pátria), mas a cantiga não demora muito a sair, sonora e entusiástica, de sotaque tipicamente africano… mas português. E dá gosto vê-las, no fim da aula, cantar a plenos pulmões a Portuguesa, depois de uma Ave-Maria devotamente oferecida à Mãe do Céu!
Ensinei, outro dia, uma pequenina canção, que aprenderam sem dificuldade… E sinto a minha alma embalada, ao deixar a escola, quando uns para cada lado recolhem a seus «povos» a cantarolar, em reminiscência dos ensaios:
«Quando o sol nasce, lá na serra,
Toda a gente diz - «Bom dia!...»
Sim, Ele – o Sol da fraternidade cristã – há-de sempre brilhar lá no céu, subir bem alto e aquecer num só facho de luz esses pedaços de terra espalhados pelo mundo onde pulsa um só coração e vive uma mesma alma – o coração puro lusitano; a alma portuguesa devotada a Cristo Redentor!