quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Para que da Memória se faça História

Apontamentos de um soldado em África 3
A Escola
Se gloriosa, pela afirmação que faz ao mundo dos princípios fundamentais da nossa Civilização; se nobre, pelo seu carácter de abnegação caridosa a elevar as almas na Luz e na Verdade; se fecunda, pelo resultado profícuo da semente que se lança em terreno tão feraz, a missão daqueles que foram chamados ao Ultramar, nesta hora decisiva e pesada da vida nacional, é também extraordinariamente sedutora, inebriante.
O artífice sente-se transportado em personalidade para a obra que realiza; o lavrador bebe o licor da satisfação espiritual quando, sorridente, vê, passados tempos, a cultura brotar dos campos, numa produção de cem por cada grão deitado à terra. Aí está, bafejada pelo poder do Criador, a coroação do seu esforço, do suor do seu sacrifício.
Do mesmo modo, e mais profundo ainda, é o consolo que todos sentem na tarefa da educação, visto que então – aí, sim! – vemos, numa outra alma, transplantada a nossa própria espiritualidade.
Chamados, de repente, às misteriosas paragens africanas, a confusão e o êxtase são talvez as primeiras impressões que nos dominam. Confusos, porque se nos depara um vasto campo de trabalho, com problemas complexos e segredos múltiplos, carregado de características particularíssimas, que, em parte, ouvimos referir alguma vez, mas que, na verdade, desconhecíamos completamente. A África não se conta… apreende-se! É preciso vir cá para que se possa construir acerca dela uma ideia mais ou menos fiel. Podemos prepararmo-nos para isto, mas senti-lo… só aqui! E surpreende-nos também o êxtase, porque a beleza desse campo de trabalho é fantástica. Mãos à obra (se queremos atender à súplica que à nossa volta continuamente se levanta), logo sentimos que é reconfortante e atraente debruçarmo-nos sobre os problemas desta gente irmã, e dar-lhes tudo aquilo que o nosso coração não nega em capacidade.
Nesta luta que somos obrigados a travar, para que sejam preservados os valores cristãos e nacionais, contra as arremetidas do mundo tresloucado, não cumpre a missão aquele que apenas confia à espada a solução dos problemas. Mesmo que poucos, os conhecimentos possuídos sobre a natureza desta guerra (que é mundial!...), aquele que pisa solo ultramarino logo vê que muito mais lhe é pedido. E ai dele… e, por ele, ai de todos nós, se a sua formação espiritual não está à altura de responder à exigências que lhe são dirigidas; se a sua alma traz o vício em vez da virtude; se o seu coração já começou a ser corrupto! Fora melhor, então, que não viesse, porque levar-nos-á ao tribunal da História… E bem terríveis são os seus julgamentos!
Uma das tarefas que neste tão penoso, como glorioso, trabalho nos ocupam, é a instrução primária das crianças – crianças, nem todos, porque muitos dos nossos escolares são já adolescentes. É extraordinária a vontade de saber que manifestam, e bem aguda, a sua inteligência. Parece ainda que um perfume de poesia, de ternura, de suavidade lhes enche a alma. Gradualmente, com cuidado, vamos-lhes ministrando os ensinamentos, e as horas passadas são de perfeito enlevo. Pena é que o tempo de que dispomos e as condições que nos assistem não permitam uma maior dedicação a este objectivo, pois nestas almas e naquilo que lhes damos joga-se o futuro da Pátria.
Para frequentarem duas escolas que funcionam nesta zona, alguns alunos têm de andar seis a sete quilómetros desde a sua aldeia. Mas vêm, providos ou não de alguns alimentos de reserva – meia dúzia de amendoins, duas ou três bananas, água, e, outros, um pouco de cana de açúcar ou uma raiz de mandioca. E lá estão, todos os dias, de olhos brilhantes e arregalados, face risonha e inocente, dispostos a receber a nossa mensagem de… civilização.
De manhã, quando vamos a chegar, os pequenos que vivem nas sanzalas mais próximas da escola largam em frenética corrida, ao verem o jeep aparecer na curva da estrada. Um «bom dia», meio «abrasileirado», sai em coro daquelas boquitas a sorrir, e alguns vêm até nós apertar e beijar a mão respeitosamente.
Todas as manhãs, o catequista nativo, sob orientação da missão católica, vai ensinar à escola a doutrina cristã. Muitos são os que se preparam para se aproximarem pela primeira vez da sagrada Mesa eucarística. O Espírito de Deus e da Pátria habita ali entre aquelas paredes de adobes, sob um tecto de capim seco – construção singela que caracteriza sobremaneira as terras de missão. Na hora de recreio, os jogos da pequenada trazem até nós a lembrança da longínqua Metrópole. É que também aqui as crianças vibram com a «cabra-cega», o «ratinho», o «João barqueiro»… com toda essa trama de brincadeiras a que não podia deixar de pertencer – já se vê – o velho «futebol», onde os rapazes são verdadeiros artistas. Há, porém, na nossa acção (na zona em que me baseio para estas considerações) uma falta, uma lacuna difícil de preencher. É a ausência de uma mão feminina que toma a seu cuidado as meninas, dando-lhes aquilo que a sua personalidade particular e a vocação que lhes é própria tão prementemente imploram. Esperemos os dias que hão-de vir e o florescimento das generosidades que já não são estranhas aos corações das jovens metropolitanas.
Se, na escola, tentamos introduzir um cântico da terra mãe, é com sofreguidão que o recebem. Podem não perceber o sentido das palavras, e muitas das crianças não percebem mesmo (é nossa missão ensinar-lhes a Língua pátria), mas a cantiga não demora muito a sair, sonora e entusiástica, de sotaque tipicamente africano… mas português. E dá gosto vê-las, no fim da aula, cantar a plenos pulmões a Portuguesa, depois de uma Ave-Maria devotamente oferecida à Mãe do Céu!
Ensinei, outro dia, uma pequenina canção, que aprenderam sem dificuldade… E sinto a minha alma embalada, ao deixar a escola, quando uns para cada lado recolhem a seus «povos» a cantarolar, em reminiscência dos ensaios:
«Quando o sol nasce, lá na serra,
Toda a gente diz - «Bom dia!...»
Sim, Ele – o Sol da fraternidade cristã – há-de sempre brilhar lá no céu, subir bem alto e aquecer num só facho de luz esses pedaços de terra espalhados pelo mundo onde pulsa um só coração e vive uma mesma alma – o coração puro lusitano; a alma portuguesa devotada a Cristo Redentor!

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