quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

Para que da Memória se faça História

Apontamentos de um soldado em África 2
Almas viçosas
As rabanadas à moda do Norte não tinham aparecido naquela mesa. Nem o creme, torrado o saboroso, que minha mãe costumava preparar. Nem as castanhas quentinhas, a indicar o tempo de Inverno. Lá fora, em vez de frio, sentia-se uma aragem quente, e, no ar, andava bailando uma melodia suave e comovente, a cortar o negro daquela noite serena e nostálgica. Era Natal... Natal, apesar de tudo!

Àquela hora - pensava eu - lá longe, muito longe, a mesa de minha casa estava posta; bonita, como sempre o fora, insinuando no ambiente acolhedor do lar um aroma de fraternidade, de verdadeira consagração familiar. Havia lá uma cadeira vazia, como lugares vagos, tantos, estavam também em muitos outros centros de família. A saudade tornou-me os olhos marejados. Sentado na borda do meu leito, eu meditava na tristeza daquele meu Natal, enquanto que, uma a uma, iam passando em minha mente as faces que me eram queridas.

Havia ainda uma esperança de sentir, ao menos um pouco, o bafejo daquela noite santa. Era a missa do galo. E, dentro em pouco, o sino da capela da Missão convidava os fiéis para a Ceia Eucarística. As badaladas, de toque fraco, mas firme e compassado, conseguiram abrir o meu peito, e ou senti, então, que ainda tinha alento na alma. Era meia-noite. Há muitos anos... nascera Jesus!

A festa dos soldados, dirigida pelo padre capelão, havia chegado ao seu termo. Era de Iá que irradiava aquela música maravilhosa da noite natalícia. A capela encheu-se rapidamente de militares e de gente nativa. Esta, havia, também, assistido ao acto recreativo da tropa. No altar, singelo, mas cheio de pureza e a florescer em espiritualidade, o missionário preparava-se para dar início ao Santo Sacrifício. Era um alsaciano, de barba já quase embranquecida, apesar de não muita a sua idade. Seus olhos, penetrantes de vivacidade, transmitiam uma mensagem de abnegação, de caridade.

A assembleia rompe, sob a orientação do capelão militar, em comoventes cantares a Jesus pequenino. Todos cantam: em Português, em Latim, e na Língua nativa. Todos, movidos por um único sentimento de louvor ao Rei da Glória, conscientes da mesma realidade intangível de irmãos em Cristo - aquela Criança que buscou para nascer a humilde manjedoura de uma gruta de Belém.

«Gloria in excélsis Deo!...» - proclama o sacerdote, com voz sonora e em tom solene..

«Et in terra pax hominibus!...» -.prossegue o coro, em singulares acordes. E, enquanto dura aquela cerimónia sagrada, os cânticos enchem o ambiente da capela, pobre, mas acolhedora, como o lugar onde nascera Jesus. A gente negra excede-se em entusiasmo nos seus louvores. «N'Kembo mu zulu kua N’zambi... » - é o seu «Glória», em voz maviosa, plena de poesia e de ternura. Nascera Jesus! Chegara o Salvador! E as almas rejubilam... Ohl Menino pobre das palhinhas, que vieste resgatar a fraca Humanidade!

A missa chega ao fim. O celebrante pega no Menino para o dar a beijar. E, diante dele, de rosto radiante de alegria, as pessoas passam uma a uma, dobrando o joelho e osculando com amor e submissão o pezinho do Menino Deus. Novo cântico é lançado aos ares, e aquela gente vibra num clamor quase fantástico. Parei de rezar. Já não podia mais forçar a m i n h a atenção... Deixei-me arrastar por aquele piedoso espectáculo, a que jamais pensara assistir na minha vida. Ao som do «Yangalala beni, beni», aquelas almas quase se precipitavam para beijar a imagem do Jesus. As crianças, essas guerreavam. E sob este cântico arrebatador – “alegria, muita muita”...- o templo foi sendo aos poucos abandonado. No silêncio, então, voltei a Deus o meu pensamento, para continuar as minhas preces e proceder à minha Acção de Graças. Mas, agora, já não sentia aquela tristeza que há pouco me desgostava. A saudade ainda me roía; ainda…; passei na memória as pessoas distantes..., mas a minha alma sentia uma paz nunca tida. Aqueles momentos tinham sido para mim de pleno enlevo. Devia estar grato a Deus por tudo.

Entretanto, e a convite do capelão, acompanhei com ele, a pé, até à sanzala mais próxima um grupo de nativos, grandes e pequenos, que não haviam encontrado lugar no transporte feito por algumas camionetas militares. O relógio já buscava as duas da manhã. A noite continuava amena. Em determinada altura, o senhor padre Iniciou o «Yangala ... », e todos responderam em coro «beni, beni»..., continuando o cântico com redobrado entusiasmo. Era a mensagem daquela noite de paz, desafiando o ódio e o crime. Lembrei-me do terrorismo (e nós estávamos no norte ... ), mas vi-o ali prostrado, vencido aos pés da Cruz. Aquele punhado de almas viçosas que nos seguia era bem a prova do que o amor pode fazer na luta contra o mal que nos quer avassalar. Almas viçosas, prontas a receber a boa semente da virtude, mas sujeitas também às influências perniciosas, porque são almas simples, dóceis, ainda não curadas pelas experiências da civilização que lhes vamos mostrando. Tudo depende da qualidade da semente que se lhes lança, e das intenções do semeador.

Junto do leito, já, pronto a dar-me ao descanso que tardava, penso de novo naquela noite estrelada e maravilhosa, naquele Natal missionário, e ouço ainda na memória o clamor impressionante do «Yangala, beni, beni ... ». Torno a volver a Deus a minha gratidão, e, no silêncio do meu interior, vou meditando: se fossem muitos os que viessem, e viessem por bem.... oh!, Portugal, que estas almas viçosas de teus filhos de África jamais se deixariam envolver pelos ventos calcinantes do Oriente!

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