quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

Para que da Memória se faça História

Apontamentos de um soldado em África - 1

Soldados de Portugal, missionários de Cristo

Ainda ecoavam no ar os últimos acordes do Hino Nacional, e já o barco abandonava a cais. Chegara, enfim, a hora da partida! Em terra, debaixo de um ambiente ao rubro, comovedor, sob gritos quase histéricos e lágrimas de profunda saudade, os lenços brancos agitavam-se numa cadência crescente e nervosa. Num último esforço, atirávamos as derradeiras palavras para os entes que ficavam. Mão fria e cruel apertava o nosso coração, enquanto que, de modo irritante, teimosamente, o cais nos ia ficando cada vez mais distante.

As pessoas foram pouco a pouco tornando-se imagens confusas. Barra fora, o navio ia demandar o mar. Para a frente, água... água e céu - o horizonte fugitivo, a missão, o desconhecido. Para trás, as recordações, os carinhos, a saudade; as esperanças, as promessas e os anseios... As orações confiantes das mães e das esposas, das noivas, dos irmãos e dos amigos. Para muitos, talvez, ficavam também os sorrisos cândidos dos filhos pequenos...

Tudo ficava, ao chamamento da Pátria aflita e ferida; à exigência da História e dos bravos de antanho; ao clamor da honra posta em perigo e das vozes dos inocentes martirizados. Além, lá muito longe, Portugal chorava... gemia com dores provocadas por chagas traiçoeiramente abertas pelas mãos sujas do crime e do ódio.

Num último adeus – de alguns, para sempre!... -, partia mais um punhado de portugueses, a mocidade impulsiva e sonhadora, em busca do campo da honra e do dever, como, em outros momentos já, tantos mais o haviam feito - repetido quadro que irradia gesta e glória.

África! Angola! Os meus pés iam finalmente pisar esse solo bendito, essa terra que é ao mesmo tempo uma súplica e uma promessa - súplica de Luz e de Verdade; promessa de fidelidade e de grandeza! Ia tornar-se realidade um sonho de tantos dias. Ia ver, com a minha própria experiência, toda a plenitude de sentido que para si reclamam aquelas recentes palavras do Sumo Pontífice: «Portugal, conheci-o como um país glorioso de navegadores, de conquistadores, de missionários e de grandes santos (...). Revela-se-me agora como terra misteriosa aberta a um apostolado novo, um renovado chamamento aos princípios eternos da Evangelho!»

Eis as palavras de acção... a voz de comando que ora impera sobre a consciência da Nação; a única estrela capaz de levar a bom porto o barco da Pátria, tão agitado nestas ondas revoltosas da história que passa!

Os dias sucedem-se, calmos e inalteráveis. O mar, sereno, afável, delicia-nos na contemplação de algumas das suas belezas: o pôr-do-Sol é um espectáculo sempre presenciado com enlevo; e os peixes voadores, os golfinhos, e, até, os próprios tubarões sentem prazer em vir cumprimentar os viajantes. Cor, Natureza, Vida!

Chega, por fim, a última madrugada. Noite adentro, todos correm à amurada para ver Luanda, luminosa, no horizonte nocturno. É, de facto, impressionante, e sente-se palpitar mais fortemente o coração. Ao cabo de tantos dias de viagem, eis a África ali, além... ansiosa por nos receber num abraço de fraternal amizade.

Mais algumas horas passam. Ao romper da aurora, o paquete entra na baía. Meia adormecida, ainda, a capital, a capital angolana, acolhe-nos em sossego, com um bocejo quente e húmido do seu clima peculiar.

Três dias ali permanecemos. A missão que nos era destinada levar-nos-ia mais longe... até às terras do Norte. Este curto tempo é, no entanto, suficiente para admirarmos a beleza da cidade, para sentirmos vigoroso e entusiasta o seu progresso, para nos consolarmos com a sua paz, com a serenidade da sua vida - tão portuguesa como a de Lisboa ou do Porto.

Brancos e negros se cruzam nas ruas e nas esplanadas. Ambos enfileiram a mesma «bicha» nas repartições públicas. Vemo-los lado a lado nos cafés e nos autocarros. Nos recreios das escolas, são brancas e pretas as crianças que, em brincadeira risonha e despreocupada, acenam a mãozita num adeus amigo à nossa passagem. Além, uma senhora branca pode transportar o seu bebé num carrinho ou numa alcofa de mão com o marido; aqui, vai uma mulher negra com a seu filhito amarrado às costas numa faixa de pano florido. Costumes diferentes... Mas tudo a formar uma única alma, uma única realidade - profunda realidade! - que o mundo cego e surdo não consegue nem quer compreender: PORTUGAL!

O meu pensamento mergulha numa meditação quase espontânea. Sem procurar resposta, pergunto simplesmente a mim mesmo como foi possível que toda esta terra tivesse sido queimada pelos ventos desgraçados do terror, e da resposta que não buscava, algumas expressões me surgem como tópicos, como indicativos a encerrar um conteúdo sombrio e infeliz: Indochinal... Argélia!... Cubal... O materialismo ateu... o anti-Cristo... o pecado dos homens!... E, logo a seguir, a fustigar a minha própria consciência: «A mensagem de Fátima! As advertências da Senhora da Iria! ...».

A minha alma sente, então, um peso medonho sobre si. Sente também a responsabilidade desta luta – guerra total, guerra de espíritos, guerra de toda a gente. Todos nela podemos ser ao mesmo tempo combatentes e instigadores. Realidade tremenda – terrível... – que se não pode esquecer com um jogo de futebol, ou apagar com uma cerveja gelada na esplanada de qualquer pastelaria.

Luanda fica para trás. Aparece-nos, a seguir, o Norte, com a sua vegetação exuberante, resultado de um solo extraordinariamente feraz. As suas paisagens extasiam o nosso olhar. O avião que nos transporta chega por sobre o local onde hei-de passar alguns meses. Em baixo, um grande número de habitações – a maior parte delas feitas de capim seco, mas de construção esmerada – dão à região um aspecto pitoresco. O edifício da Missão Católica destaca-se no conjunto. Dentro de minutos, já em terra firme, vemo-nos rodeados de dezenas de nativos que foram ver pousar o avião. Olho em volta, e ao deparar com aquelas faces que me inspiram simpatia, caridade...; ao ver aquelas crianças de olhitos brilhantes ao colo (perdão!) às costas de suas mães, sinto-me envolvido por um ambiente de ternura, e recordo as palavras do nosso Papa: «Apostolado novo ... Princípios eternos do Evangelho! ...».

A viatura que me leva dali põe-se em movimento. Mas aquelas faces... que costumam aparecer nas revistas missionárias... ficaram-me na alma. Ouvia baixinho a perguntar, no meu interior. «Que nos trazeis?»; «Que nos vindes dar?...». E no silêncio do espírito, ouvi, como um ribombar no espaço infinito: «Se vós, soldados da Pátria, fosseis também missionários de Cristo!...». E numa última imagem, vejo passar rapidamente na memória o Portugal de ontem... ouço penetrante a voz do Portugal de hoje... e sinto firme e confiante, de bandeira desfraldada ao vento e rosto levantado, a enfrentar a perfídia do mundo, o Portugal do futuro - o Portugal eterno e missionário!

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