quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Para que da Memória se faça História

Apontamentos de um soldado em África - 4
Maneiras de ser
A coluna havia partido, de Ambrizete, já tarde, rumo a Tomboco. A noite não se fez, por isso, rogada, e em pouco tempo tomou conta de todo o céu. Numa viatura à frente da minha, ia o homenzito que o Chefe de Posto pedira para transportar. Tratava-se de um doente que há tempos viera à vila, a tentar curar-se de uma tuberculose. Agora, alimentava o desejo de visitar a família... As instâncias do Chefe de Posto levaram-me a conceder a «boleia» àquele pobre homem. Do seu corpo quase só restavam os ossos e a pele, e era a custo que conseguia mover-se. Impressionou-me, quando o vi, mas conseguiu subir para o carro, e lá se acomodou entre os soldados.
A estrada, de terra batida e deficiente, fazia com que as viaturas sofressem uma contínua trepidação. Lembrei-me daquele doente; ainda pensei mudá-lo para o meu lugar, mas não levei em frente esse reflexo de consciência...
Andámos mais alguns quilómetros, e as viaturas pararam. Procurei o motivo: era o homenzito que entrava em agonia. Pobre preto! Senti uma pancada dura e contundente no meu coração; uma espécie de remorso quase a dilacerar-me a alma. Depois, vi que, afinal, o homem não vinha muito mal instalado. Os soldados haviam-lhe emprestado uns cobertores que lhe vinham a servir de assento. Mas não possuíra forças para muito viver. Ele próprio tivera dito momentos antes que iria morrer naquele dia... Interpretara perfeitamente a sua fraqueza física.
Estendido no chão, em plena noite e em sítio ermo da «picada», a sua alma tomava o caminho da Eternidade. Diante daquele corpo a dar as últimas da vida, senti-me embaraçado. Ele ia morrer sem uma palavra de conforto, sem um alento espiritual?... Debruçados sobre o homem, como que a tentar encontrar, para segurar, algum sopro vivificador, começávamos a sentir pesado o ambiente que nos cercava. Sentia uma tirana tensão na consciência... Era o primeiro caso que naquele género me aparecia pela frente!
De repente, o Chefe de Posto (antigo seminarista), que nos acompanhava na viagem, quebrou aquele estado de tensão psicológica. Levantou a dúvida sobre se o homem seria baptizado. Como ninguém tinha a certeza (mais tarde vim a saber que era pagão, embora trouxesse ao peito uma medalha de Nossa Senhora) resolveu administrar-lhe o baptismo, sob condição, na esperança de o homem se encontrar ainda com algum sopro de vida. Tomando um cantil, despejou um pouco de água sobre aquela negra cabeça, e proferiu as palavras da fórmula baptismal. Enviei a Deus uma curta oração por aquela alma que partia...
Importava prosseguir, e a coluna continuou a marcha, transportando, à mesma, aquele homem que, agora, não passava de cadáver. Não ia sentado como antes, mas estendido, hirto, com as mãos sobre o peito.
Cerca das vinte e três horas, chegámos à aldeia onde o defunto tinha gente de família. O Chefe de Posto, que viera mais adiantado à coluna, avisara o «povo» do acontecido. Quando lá chegámos, já todos esperavam aquele que não tinha conseguido aguentar o tempo suficiente para os visitar com vida. Parecia uma procissão de velas, tal o elevado número de pessoas que ali fora, com lanternas a iluminar o caminho.
Parámos. E quando se acercaram do defunto, algumas mulheres começaram a lançar ao ar gritos estranhos, e - os braços levantados - davam pequenos passos para a frente e para trás, numa espécie de dança que me deixava cheio de confusão e de espanto. Parecia-me que tudo aquilo era uma festa... Fiquei com a impressão de que causara alegria, a presença de tão tétrico facto. Vi, depois, que uma das mulheres, ao chegar-se junto de nós para ouvir contar como se tinham passado as coisas, trazia o rosto lavado em lágrimas. E, observando melhor, notei que em todas as faces se estampava, afinal, uma profunda tristeza. Estranha maneira de exprimir a dor! Ao fim e ao cabo, os seus sentimentos são bem arreigados e sólidos!
Se penetrarmos um pouco na vida desta gente, encontraremos muitos outros motivos que, a princípio, nos deixarão de certo modo perplexos, mas que logo compreenderemos, se tivermos um pouco de boa vontade e a sinceridade não for estranha ao nosso espírito.
Diante deste povo, deparamos com um modo de vida sui generis, que se impõe respeitar... Não podemos alimentar a utopia de substituir uma civilização por outra, mas antes proceder a uma natural e mútua assimilação das culturas, aceitando o que os africanos têm de si próprios, desde que essas realidades não colidam com os nossos princípios cristãos e patrióticos. Lentamente, eles deixarão então os hábitos que, em face da nossa maneira de ser, começam a encontrar obsoletos. Às vezes fazem-no até depressa de mais... E também nos choca ver que eles adoptam os nossos processos e as nossas coisas sem estarem devidamente preparados para elas. Mas isso demonstra o natural desejo que têm de se aproximarem dos nossos costumes, e, se aproveitarmos este fluxo da sua personalidade e lhe dermos uma orientação cuidadosa e inteligente, poderemos então ter a certeza de que fazemos civilização, trazendo até nós aqueles que através de muitos anos procurámos arrancar ao primitivismo.
Quer nos admiremos ante a esquisita dança fúnebre, ou achemos graça à criancita que a mãe transporta amarrada às costas, com a qual trabalha nas lavras que diariamente trata com esmero; quer encontremos primitivismo no facto de ver as mulheres fumarem o seu tabaco, e com a lume para dentro da boca... (à excepção deste particular, parece que na sociedade civilizada se pretende voltar a esse estádio da vida…), ou achemos atrasado, mas típico, o moer da mandioca num grande almofariz feito de tronco de árvore, não nos podemos esquecer que estes são os nossas irmãos portugueses do Ultramar. Mas há muitos que o esquecem... Talvez porque julgavam que no mundo não se vivia de outra maneira além daquela que estavam habituados a ver em redor da sua casa de pedra o cal, ou porque, então, receberam, com a luz da civilização que os envolve, a escuridão do mal o do pecado, que infelizmente grassa por toda a parte onde houver vida de gente.
Mas nós acreditamos na vocação lusitana, iniciada há muitos séculos, abençoada pelo Senhor a quem têm de obedecer os universos, confirmada pela Senhora branca de Fátima, e que, finalmente, a história há-de provar, contra as insídias do príncipe das trevas, que encontram bom acolhimento nos corações pouco avisados. Acreditamos!

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