quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Para que da Memória se faça História

Apontamentos de um soldado em África - 7
A lição dos Nossos Mortos
Ao tempo em que escrevo estas palavras, discute-se na ONU o problema (problema!...) de Portugal em África. Grita-se, nesse Areópago internacional onde se respira confusão, ignorância e ódio, a palavra «Independência», pedra dura que muitos nos atiram, para que abandonemos os nossos territórios sagrados.
O soldado é apolítico, mas nunca será um insensível perante os berros da Política - no caso presente, da Política Internacional -, se eles ferem o que de mais profundo consolida o seu coração de militar - a Pátria. É para ela que ele existe, para o seu povo, para as suas tradições, para a sua história; é por ela que sofre os ardores da luta e enfrenta as garras do perigo; é por ela que morre, num holocausto generoso e heróico. E, muitas vezes, como na conjuntura que nos trouxe à terra africana, ele encontra, a complementarem-se no seu ideal, a Pátria e a Fé, o seu Povo e o seu Deus.
Independência!...
Este grito tendencioso não pode deixar de me trazer à mente a recordação de alguns camaradas caídos, há bem pouco tempo, no campo da honra, no cumprimento da sagrada missão. Ainda não vão longe os dias em que trabalhávamos lado a lado... Num momento, a guerra ceifou-os para sempre! A Pátria pediu-lhes o sacrifício supremo... E o seu exemplo pede-nos que sejamos fiéis, como eles o foram; que continuemos fazendo aquilo que eles já não podem lavar a cabo; que honremos a sua memória, o seu nome; que protejamos os seus lares, como eles quiseram guardar os nossos até à última gota do seu sangue!
Não! Os nossos mortos não nos deixam capitular perante as arremetidas estóicas e ambiciosas do inimigo. As vidas que partem clamam um Portugal uno e eterno, e seria traição horrenda não abrir a nossa alma ao seu brado, não prosseguir com redobrado vigor a defesa deste solo regado pela sangue de várias gerações.
Independência!... Para quem?!... De quê?!...
Portugal deu ao mundo novos mundos, ao mesmo tempo que arruinava na base o poderio dos que ameaçavam a Europa. Encontrou gente em estado selvagem, e à barbárie contrapôs a luz de uma civilização. Os ventos da História ... esses mesmos ventos que muitos pretendem agora fazer soprar de novo, levaram uma determinada delimitação geográfica aos territórios que possuímos. E à mistura de gentes, de raças, de culturas, de dialectos, de costumes e tradições, oferecemos uma unidade de civilização, sem destruirmos o que de seu era lícito manter. Demos uma Língua. para se comunicarem mais livremente, demos a nossa maneira de ser; demos a nossa Fé e a nossa história. Ensinámos o seu coração a sentir como o nosso; a amar no mesmo Amor, a querer na mesma vontade, a ansiar na mesma esperança. Fundiram-se as raças e as almas, em África, na Ásia e na Oceânia, e nestes continentes surgiram novos valores, rasgaram-se mais largos horizontes. Não usurpámos direitos, não acorrentámos nações. Libertámos gente do primitivismo, estendendo até ela o calor do nosso lar. Completámos uma Nação, demos uma Pátria ...; arranjámos mais irmãos. Aqueles que nos combatem não compreendem (não querem compreender...) que um metropolitano se sinta irmão do angolano, que o homem de Cabo Verde não seja um estranho diante do goês; que o moçambicano se ache no seu país, quando visita a Madeira, Açores, Guiné ou Timor. É, de facto, grandioso de mais para quem se habituou a largar ao sabor das conveniências; para quem se habituou a ser padrasto, em vez de pai; para quem se habituou a receber, em vez de dar!... É de facto grandioso de mais, para alguns, ver nas escolas, nas universidades, nos seminários, nas oficinas, nas fileiras do Exército... lado a lado labutando num ideal comum, os portugueses dos territórios geograficamente mais afastados; lado a lado, brancos, pretos, amarelos e mestiços. E como é belo ouvi-los falar a mesma língua, apreciá-los sentir do mesmo modo! Um português só se apercebe verdadeiramente da dimensão da sua nacionalidade, quando se vê em presença de um seu irmão de outro continente.
Não há, pois, um povo a pedir «Independência»! Há, sim, insurreição organizada de alguns, instigada por mentores ambiciosos, que pretendem avassalar o mundo através de uma nova ideologia; insurreição instigada por quem tenta a todo o custo destruir este nobre conceito de Pátria no coração dos homens; insurreição que estaria já extinta de todo, se não fossem as infiltrações de mercenários que não sentem pejo em ligar o crime ao seu modo de viver.
Defeitos?... Males?... Quem os não teve, e não continua a ter? Mas é isso um problema internacional? Quem se arroga a direito de entrar na casa do vizinho, sob pretexto de querer resolver os seus problemas familiares? As dificuldades do Ultramar Português apenas a nós dizem respeito, assim como as das outras nações somente a elas pertencem... E não são estas menores do que as nossas! Não há comunidade nenhuma que se possa vangloriar de não ter questões de que haja de se preocupar. Para enfrentar os problemas que nos aparecem, é a nós, portugueses, e a todos, que incumbe fazer esforços. Já há muito que são réprobos da Sociedade aqueles que colocam os seus interesses pessoais acima do bem comum.
Em vez de sairmos de África, agora, mais do que nunca, a ela nos temos de votar. Militares e civis, leigos e clérigos, técnicos e intelectuais, num viçoso florescimento de juventude espiritual, num enriquecimento cada vez mais largo e mais profundo da Raça Lusitana. O metropolitano não passará de um ente mesquinho e fechado, se não abarcar no seu ideal os valores que nascem nas terras de Além-mar, e o ultramarino não pode, sem se atraiçoar, desprezar o berço da sua nacionalidade. A vocação africana..., a vocação ultramarina, deve encontrar cada vez mais acolhedora morada no coração de todos os portugueses, especialmente agora, que o mundo se levanta contra nós.
Foi, por alguém, não há muito, levantada uma justificada pergunta: «Como serão os nossos jovens quando regressarem do Ultramar?». A resposta é de aguda delicadeza. Mas, se todos nos compenetrarmos das pesadas responsabilidades que nos incumbe suportar; se, nos diferentes campos da vida, soubermos conduzir os nossos actos no cumprimento fiel da missão que nos é confiada pelo momento histórico e pelas circunstâncias; se soubermos afirmar ao mundo que ainda somos portugueses e cristãos, não teremos que recear as consequências desta campanha que chamou a juventude fora do seu lar.
Incomparável mercê que a História te concede, ó Portugal, baluarte no Ocidente da civilização que a Europa parece deixar vacilar! Que o teu Povo se mostre ao nível dos teus desígnios sagrados, e ouça o clamor dos teus mortos a pedirem fidelidade ao seu exemplo!
Angola - Outubro de 1963

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