terça-feira, 21 de abril de 2009

Para que da Memória se faça História

Apontamentos de um soldado em África 8
O laicado católico nas missões africanas
Talvez nunca o pensamento da nossa gente fosse tão dirigido para os problemas missionários como nos momentos actuais. As questões que nesta época conturbam o mundo vieram abrir os olhos àqueles que ainda não tinham deixado empedernir de todo o seu coração. As necessidades prementes de muitos homens, mulheres e crianças, necessidades vitais, de sobrevivência, a contrastar com a vida faustosa de muitos, em outros pontos distantes, levantaram um brado suplicante à caridade dos povos. E, perante a desesperada situação dos fracos, os abastados e os remediados, ao fim e ao cabo todos os que podem, têm de compreender que a hora exige que se dêem as mãos para uma ajuda fraternal, para um esforço abnegado que salve a comunidade humana da desintegração no ódio, que a impeça de mergulhar no turbilhão da desordem. Aos cristãos conscientes da suprema importância da sua missão no mundo, que culmina numa elevação última das almas a Deus Eterno, a premência da chamada é ainda maior, visto que, num derradeiro propósito de salvação material, a humanidade pode ser habilmente conduzida a escolher o caminho do caos e da perdição.
O problema presente faz-se sentir agudamente em África, onde, como noutras partes da terra, o vírus da revolta já se alojou nos corpos e nas almas. Em face do progresso vertiginoso, e nem sempre correndo na linha do bem comum, experimentado pelas nações de outros continentes, os povos africanos, a quem a técnica levou de repente o contacto com o resto do mundo, instigados por mentes ardilosas e interesseiras, ou dando expansivo a recalcamentos múltiplos (que, infelizmente, se fundamentam em alguns casos práticos), pretendem tomar a todo o transe uma posição destacada na conjuntura mundial. E os meios e as oportunidades escolhidos para tal fim nem sempre são os mais ortodoxos (criando certos embaraços no contexto social).
A Igreja, interpretando com luz claríssima esta amargura da humanidade, oportuna como sempre e mais incisiva do que ninguém, transmite à cristandade sábios ensinamentos e convites frequentes, a fim de que todas as inteligências e todos os corações possam formar um exército que irradie verdade e amor para a luta que ora se trava no mundo.
Já foi tempo em que a religião era considerada como acessório da vida e função exclusiva dos padres e das freiras. Valores primorosos se levantam hoje no seio da Comunidade Cristã, numa fecunda união de clérigos e leigos, para a santificação cada vez mais frutuosa da vida sobre a terra. Dirigida a um Fim Supremo, ela tem de ser impregnada, no seu processo, do perfume que emana desse Fim. Em todas as actividades humanas existe um cunho de espiritualidade, uma presença efectiva de Deus. Desta forma, o laicado católico não pode subtrair-se ao serviço que lhe exige o Senhor da vida, quer nas operações mais comuns do trabalho diário, quer na participação real na actividade militante da Igreja, como na glorificação a Deus no papel que lhe reserva a Liturgia.
Missionar, então, não pode ser visto hoje como o poderia ter sido outrora por olhos menos abertos. Não se resume apenas na ministração de ensinamentos catequéticos... Não se pode confundir com uma acção de simples proselitismo religioso. Missão, para nós, católicos, comporta um sentido mais largo e mais profundo... É dar civilização - Civilização Cristã! É levar Cristo à vida das almas e as almas a Cristo através da vida. E para esta obra grandiosa, o leigo tem de marchar ao lado do padre; a técnica e a assistência social têm de formar um todo operante, transformador, com a função religiosa. Cristo tem de viver nas almas e nos corpos; na igreja, na escola, no lar, na rua e no trabalho; na saúde e na doença; na alegria e na tristeza.
Ide !...
Este imperativo, ao mesmo tempo tremendo e sublime, dirige-se a todos os corações e obriga todas as consciências. A Voz do Vaticano II é bem a interpretação desta chamada geral a que urge obedecer. Foi-me contado, há algum tempo, que numa igreja de Luanda se apresentaram ao sacerdote dois recém-casados que pediam as bênçãos matrimoniais. Tratava-se, salvo erro, de um casal espanhol que se dirigia para uma cidade do sul de Angola, onde serviriam num hospital civil. Ele era médico; ela, se a memória não me atraiçoa, era enfermeira. Custa-me conceber que os seus propósitos fossem motivados por meras questões de interesse pessoal...
Iluminado por este quadro raiante do generosidade, surge-me no pensamento a terra que me roubou um pouco do coração, e através da qual a África me começou a desvendar alguns dos seus misteriosos e fascinantes segredos: Tomboco. Ali, vivem várias gentes, assistidas por uma missão católica da Congregação do Espírito Santo, a cujo trabalho o terrorismo veio trazer sérias dificuldades. Antes da “confusão” - nome que os nativos dão à revolta... - um grupo de religiosas ali espalhava também a sua benéfica influência. Rapazes e raparigas, homens e mulheres recebiam nas duas casas da Missão a formação cristã, a luz da vida civilizada, que ainda hoje se vê luzir na face daquele povo, mas à qual pretendem alguns negar a fonte, com frieza. E ao trazer novamente à memória essa terra e a sua gente, que, com saudade, por dever do cargo tivemos de deixar para trás, eu penso também nas múltiplas bênçãos que ali cairiam se um grupo de leigos bem formados e instruídos para tal fim ali permanecesse um certo tempo julgado óptimo, para, num trabalho de mãos dadas com a Missão Católica, assistirem e encaminharem na vida aqueles que para nós voltam a face comovente e suplicante! E Tomboco não é caso único... É apenas um exemplo !
Mas, se agora olharmos aqueles que vêm do outro lado... aqueles que deixam a mata, onde a vida constitui terrível pesadelo debaixo da pressão aterradora dos criminosos, então o nosso peito sangra perante a insistência da chamada à caridade das almas generosas.
Na II Semana Missionária, em Coimbra, depositavam-se amplas esperanças naqueles jovens que escolheram Deus... Que o Senhor sopre nas suas almas o alento vivificador capaz de impulsionar as vontades num movimento novo, assistido por quem de direito, que dê às nossas gentes rurais do Ultramar o caminho da prosperidade material e espiritual, contra a miséria fatal e a desordem ideológica a que levam as influências tendenciosas do exterior; que dê ao coração do nosso povo plurirracial a paz necessária à frutificação daquele Amor que Cristo glorificou no monte do Calvário. Todos podemos ser desse movimento; se não trabalhando de modo efectivo e actual, ao menos orando (menos?! ... ) para que tenhamos muitos e santos missionários, e para que os leigos saibam ocupar o seu lugar nas terras de missão.
Angola - Novembro -1963

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