quinta-feira, 30 de abril de 2009

Para que da Memória se faça História

Apontamentos de um soldado em África - 9
Para Além das Armas
Contemplo aquele pequenito ali a brincar... Traquina, de sorriso franco, aberto... Parece que vai a cair em desequilíbrio na magreza das suas pernitas negras, mas, saltitando, consegue suster-se...
Quando veio, gritava aterrado de medo, ao ser observado pelo médico. Parecia um bicho-do-mato... O mesmo acontecia às outras duas criancitas, mais ou menos da mesma idade, que esta família trouxe. Mas, agora, a sua memória esqueceu os conflitos emocionais que abalaram a sua alma pura e inocente. Já não foge, aterrorizado... Antes, corre atrás de nós às gargalhadas e, por vezes, até, desata em choro por largar os soldados, quando a irmã o vem buscar para junto dos seus.
Ao demorar o meu olhar sobre esta criança, desenha-se-me no espírito uma interrogação inquietante... Interrogação que transponho para além do tempo, como que auscultando na penumbra do futuro terríveis dramas pessoais, silenciosos, mas cruéis.
O mundo soube das tragédias que o terrorismo espalhou pelo norte de Angola... Soube e sentiu o abalo forte causado por tão macabros acontecimentos. A rápida decisão do Governo em utilizar prontamente as Forças Armadas obstou a que as consequências fossem ainda mais desastrosas.
O cair da noite trazia para Luanda horas de amargura e desassossego. Nos musseques, a população pervertida batia com paus e soltava clamores ameaçadores, prenunciando uma arremetida ao centro da cidade. Alguns civis saíram para a rua, de armas na mão, mas insuficientes para barrar uma avalanche da multidão endemoninhada.
As forças da ordem chegaram ainda a tempo, e pouco a pouco se foram recuperando as terras calcinadas pelo calor do ódio. Quase três anos passaram... Muitos esqueceram já o barulho feito pela revolta... Esqueceram aqueles que felizmente não sofreram de perto as feridas abertas pelos golpes traiçoeiros, mas não o podem esquecer nunca aqueles que viram seus lares em derrocada e mortos os seus mais queridos parentes. Não o podem esquecer aquelas famílias que vivem ainda sob a pata do inimigo... e, por conseguinte, nunca poderão esquecer essas horas cruéis aqueles que receberam sobre os ombros a espinhosa mas nobilíssima tarefa de combater esse terrorismo que tudo destrói e torna a vida fardo impossível de suportar.
Olho esta criança... e outra... e outras... e penso naquelas que não posso ver mas que notícias trazem ao meu conhecimento... e também nas outras tantas que não escapam à observação das estatísticas. Olho, e vejo o seu sorriso inocente a perder a graça, a sua face a entristecer, o seu olhar, mais penetrante, a situar-se para além do horizonte... para quando a sua inteligência, mais desenvolvida, começar a compreender a dura realidade que envolve a sua existência! “Havia algumas noites – contava-nos, outro dia, um pacato nativo - que homens vinham às casas e induziam em segredo as famílias a fugiram para a mata. Comigo, nunca falaram, porque tinham medo que eu dissesse na Administração, onde exercia a profissão de cozinheiro. Então, um dia, deu-se a «confusão»”.
Os povos fugiram para as matas, a habitarem locais antigos, instigados e coagidos por elementos subversivos que obedeciam a planos cuidadosamente preparados. Aqueles que quiseram ser fiéis à sua vida ordeira sofreram as terríveis consequências da onda de crimes e destruições movimentada pelos terroristas. Na ocasião da fuga, os que não estavam em casa ficaram para trás... Muitas pessoas se desgarraram de suas famílias... Muitas crianças ficaram abandonadas! Tenho na minha frente uma edição da “Cáritas” que refere um apelo levantado pelo governador do distrito do Uíge a chamar a atenção para milhares de crianças pretas abandonadas e em perigo de perecerem.
Aqui na escola há uma dezena de rapazes e duas rapariguinhas ternas e despreocupadas. Alguns destes pequenos vivem em casa de comerciantes brancos, porque não têm família. Se lhes perguntamos pelos pais... a resposta é triste, e, de olhos no chão, apenas dizem: “- Foi no capim...”. A menina mais velha, com doze anos, foi recuperada há alguns meses na mata pelas nossas tropas. Lá perdeu, ao que parece, a mãe e um irmãozinho... num drama pungente.
Alguns povos se têm apresentado, noutras regiões, conseguindo quebrar os grilhões que os prendem aos malfeitores. Nesta zona em que estamos, a pressão do inimigo é forte... Os guerrilheiros, aquartelados mais no interior das matas, em pontos de difícil penetração ou nas cavernas dos penhascos mais agressivos, servem-se da gente indefesa como fonte de manutenção vital. Em sítios próprios, obrigam-nos a cultivar hortas e a proceder ao abastecimento dos bandos escondidos. Para mais facilmente os reterem, geram sobre eles um clima de duplo terror: eliminam, por um lado, aqueles que tentam regressar às suas antigas sanzalas, e, por outro, induzem-lhes a convicção de que a tropa matará todo o preto que encontrar na mata, e nesse objectivo exploram todos os motivos aproveitáveis. Deste modo, é fácil compreender porque mesmo mulheres e crianças fogem como gazelas perante a aproximação da tropa, quando esta, em qualquer batida, atinge zonas habitadas.
Quando uma patrulha nossa conseguiu, há cerca de um mês, recuperar a família que agora aqui vive sem temores, com assistência, e ganhando já dinheiro por serviços prestados, uma mulher indicou a outra, do mesmo grupo, que lhes iriam cortar o pescoço... Um homem já de certa idade, o chefe da família, perguntava a medo quando lhe iam dar o tiro... Tal era, pois, o terror que amedrontava o seu espírito.
Com esta gente, veio esse rapazito engraçado, que nos cativa e comove com um simples sorriso... Seu pai morreu no mato, em consequência de doenças ocasionadas pela alimentação deficiente, que mais difícil torna a vida desses povos refugiados. A mãe fugiu com outros nativos mata adentro, na altura em que as nossas forças chegavam. A memória dos seus três anitos é leve demais para reter factos tão tristes... Mas um dia, voltará ainda a sentir o drama da sua vida... como tantos outros... no silêncio da sua consciência já mais aberta à compreensão do que o rodeia!
Numa noite trágica de ódios recalcados e de ambições desmedidas, desabou sobre as terras de Angola uma tempestade sangrenta de rancor e de crueldade...
Mas também numa noite fria, há muitos anos, uma nova Luz rasgou a noite dos tempos, o negrume dos céus da humanidade perdida, e um clamor magnífico, suave, ecoou sobre o mundo... Era uma mensagem de Paz! Uma mensagem de Amor para todos homens!...
Neste NATAL, de 1963... lembrai junto a Jesus, no Presépio, estas almas despedaçadas que sofreram, sofrem... e ainda hão-de sofrer por muitos dias e anos as consequências desse cataclismo cruento que dilacerou a nossa Pátria!... Lembrai também os soldados, que lutam nesta guerra por uma esperança de paz!... E por que havemos de esquecer, também, os próprios que nos combatem... aqueles que foram pervertidos?!...
Possa a LUZ dessa noite santa inundar todos os povos, para que todas as almas encontrem esse caminho de AMOR e de VERDADE que há dois mil anos se abriu sobre Belém!
Angola - Dezembro 1963

Sem comentários: