quinta-feira, 30 de abril de 2009

Para que da Memória se faça História

Apontamentos de um soldado em África - 10
Almas brancas de gente negra
O negro de África constitui, para aqueles que pela primeira vez contactam com a sua vida e a sua maneira de ser, um autêntico mistério, cuja curiosidade em desvendar se torna motivo de grande interesse. Já algumas vezes tive aqui oportunidade de referir alguns aspectos do comportamento dos nossos irmãos negros, mas não será demais voltar ao mesmo assunto e alargar um pouco o panorama em observação.
Há quem olhe para os povos africanos, para aqueles que ainda não assimilaram em profundidade a cultura do nossa civilização, vendo neles o protótipo do homem primitivo... Surgem, por outro lado, opiniões que se afastam um bocadinho desta linha de pensamento, vendo nessa gente, não um tipo primitivo, mas uma cultura diferente, dentro dos limites naturais do seu desenvolvimento, para o que a palavra “primitivo”, adquire um sentido mais remoto e diverso.
Não importa quedarmo-nos nesta discussão, mas talvez não seja descabido apontar o facto seguinte: muitos que vêm para África julgam, infelizmente o temos de confessar, ver no preto o tal primitivo... e, o que é de muito lamentar, estendem o seu conceito para além da capacidade técnica, instrumental do nativo, para situar na sua própria alma uma espécie de insuficiência espiritual, que o impede de se aproximar dos nossos ideais, das nossas maneiras de sentir, justificando, ao mesmo tempo, para com ele, um tratamento diferente, às vezes aviltante.
Assim, tenho assistido já, terrivelmente embaraçado por tal, a ditos tendenciosos, por parte de brancos a negros, que nascem de um falso complexo de superioridade rácica... quando, afinal - e com facilidade isso se deduz de um pouco de experiência no meio - a mentalidade desses brancos é manifestamente inferior à dos negros!... É que a falta de preparação para a missão social tão delicada e espinhosa como a que ora nos chama, pode levar a julgar o negro como um ente que só tem a receber e nada a dar... Erradamente, aceitamos a ideia de que tudo o que o branco fizer, o preto tem de aprovar, porque para ele isso só pode servir de bem... Não penetramos suficientemente no seu íntimo, e, por isso, nem sequer procuramos saber o que ele pode pensar. Deste modo, não o compreendemos, e atingimos insucesso quando lhe pretendemos impor um determinado “status”, sem olhar para aquilo que sempre constituiu para ele a maneira normal e certa de existir.
Na verdade, o nativo olha para nós com os mesmos olhos com que olhamos nós para ele, com o mesmo espírito observador e crítico. Ele julga os nossos actos pelos padrões que possui e, mesmo que o não faça exteriormente, no seu íntimo aprecia-nos com admiração, ou lamenta-nos com indiferença. E, então, se nós mesmos entramos em contradição perante ele... Se lhe dizemos que isto é assim e se faz desta maneira, e procedermos de outro modo... Mais valera não começar! Quando em certa ocasião disseram a uma indígena que tinha de ir à escola para aprender a ler e a escrever, ela respondeu, simplesmente, que também havia muito branco que não sabia ler...
A justiça é para os africanos uma coisa sagrada, que sentem de modo apurado. E nós temos de nos mostrar absolutamente à altura de os servir neste aspecto. Se nos caçam uma falta, nunca a esquecem, e ficam bastante chocados... Tanto mais, quanto, pelos seus próprios meios, menos possibilidades têm de colocar as coisas nos seus devidos lugares.
Outro dia, um rapaz, tocou na buzina de um carro. Chamei-o e admoestei-o. O rapaz ficou atrapalhado... mas mais atrapalhado fiquei eu, quando um outro, do mesmo grupo, se adiantou até mim, dizendo-me abertamente: “- Eu também toquei”!... Fiquei sem saber o que fazer: se ralhar, se calar-me. Em voz mais branda, fiz-lhes, então, compreender o mal praticado, e aconselhei-os a não repetirem a acção.
De outra vez, prometi qualquer coisa - que agora não lembro o quê – aos miúdos da escola. Não cumpri tão depressa como seria para desejar, e então um deles me disse na primeira oportunidade: “ - Tu mentiste”!... Vários casos poderíamos aqui apontar comprovativos de que a alma negra pensa e sente como a nossa, e tem bem arreigados os sentimentos de pudor, de respeito, de gratidão, de amor, enfim, aqueles tesouros que alguns pensam ser apenas apanágio da gente branca.
Fui um dia fazer umas compras a uma aldeia. Anteriormente, já lá tinha ido com um capelão militar, e este mostrou-me um pequerrucho de quem era padrinho de baptismo. Desta última vez, perguntei ao soba pelo rapazito, e dentro em pouco apareceu a mãe trazendo-o ao colo. Ali mantivemos por momentos agradável conversa. Quando me preparava para vir embora, fui informado de que a mulher queria oferecer-me alguma coisa... Esperei, e ela apareceu com... um pequeno molho de tenras couves!... Quis pagar-lhe, mas não aceitou dinheiro. E fiquei a pensar naquele gesto... e rio valor que ele teria no coração daquela pobre mulher, expressando desse modo a sua gratidão!
Vi, noutra ocasião, um cabo Sipaio dizer para uma mulher ainda nova: “ - Até logo, mãe»! Admirado, perguntei ao preto por que chamava mãe àquela mulher, uma vez que ele não podia ser filho dela. Explicou-me que era uma forma de prestar respeito... Ela era uma mulher; por isso podia ser uma mãe!... Semelhantemente, ouvi, em outra ocasião, uma mulher chamar sogro a um homem já de certa idade, e ao qual nenhum laço familiar a unia. Compreendi, então, quanto eles respeitam a pessoa humana! Quando conversam, sempre se tratam por “você”, e gostam imensamente de apertar a mão, em cumprimento, quando se encontram na rua. Atitudes que envergonhariam certa gente chamada civilizada.
Perscrutando o íntimo destes nossos irmãos, nós encontramos na sua alma uma riqueza imensa. Riqueza que muitos desconhecem... Que nós próprios contaminamos, por vezes, com os nossos defeitos e os nosso vícios... Riqueza que falsas ideologias políticas e materialistas pretendem avassalar em nova “escravatura”, sob as ondas da revolta universal.
Saibamos nós, portugueses, cientes da nossa missão humana e cristã, realizar aquilo que Deus nos pede e a Pátria exige, orientando à luz da Verdade a alma destes nossos irmãos de África.
Angola - Janeiro 1964

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