Feitos e Factos
da “descolonização” da
Guiné – 15
.
Pirada, norte da Guiné ainda
portuguesa (Portugal só reconheceu a
independência desta província ultramarina em 10 de Setembro de 1974), dia 7
de Julho de 1974. Domingo. Antes de almoço, pelas 12h20 (14h20, na Metrópole), registava eu num aerograma destinado à
família:
“O dia de hoje tem sido calmo. Tenho passado a manhã no meu gabinete a
tratar de um ou outro assunto, só, e também com o comandante e outros oficiais.
Domingo! Dia do Senhor! Não temos missa. Não há nada que nos dê o sabor cristão
do dia, o sabor metropolitano...
“Estamos à espera dos camaradas lá de baixo, os de mais a sul, para
virem almoçar connosco e conversar. Os daqui mais de perto já me mandaram chamar
hoje, para os ir buscar, a fim de falarem com o comandante. Consegui
esquivar-me, “por motivos de serviço”, e, de acordo com o comandante, mandamos
dizer que viessem na coluna que foi buscar os outros. Os daqui de perto têm
mais confiança em mim no que noutra pessoa do batalhão, O que é, são uns
pedinchões. Whisky e cigarros, estão sempre a pedir. Qualquer dia vamos à
falência!... Já me ofereceram uma lata ... parece daquelas latas de goiabada,
mas é com bife..., uma lata de sardinha de conserva e uma lata de leite. Mas
levaram-me a minha caneta.”
Pelas 23h40, continuava eu o meu
registo:
“Hoje foi um dia em cheio, para o desanuviamento do ambiente da paz de
vidro de Pirada. Não posso aqui relatar tudo. Só vale a pena, por principal,
(referir) que tivemos na fronteira um encontro com Q. M., o chefe de toda esta
zona, e que, num dia intenso de encontros, palestras, etc., tivemos a almoçar
connosco 4 chefes do PAIGC: dois aqui de perto e dois mais do sul. Ambiente de
franca cordialidade. Os dois do sul também jantaram e estivemos todos à mesa a
falar de guerra, conversa que já pertence ao passado. Dormem cá também. Foi
este o meu Domingo. Agora vou deitar-me, porque já estou cheio de sono.”
No dia 8, pelas 12h10, continuei
a registar no papel:
“Tudo continua correndo bem, graças a Deus. Os homens do PAIGC foram com
o comandante falar a milícias na área de outra companhia, para receberem as
armas... Já que a guerra acabou, a arma não presta para mais nada, nos pelotões
de milícias. Interessa que estes (os milicianos) se dediquem agora ao trabalho, a preparar o futuro. Continuam a
receber (a ter vencimento) enquanto
nós cá estivermos.” E acrescentava: “Vejo
isto a andar um pouco depressa, e sendo assim não demora muito que o batalhão
retire. Dentro de oito dias, deve vir para cá a companhia de Bajocunda. E fica
uma grande parte do Leste entregue ao PAIGC, como já aconteceu a uma grande
parte do Sul. Agora ao meio dia devem almoçar cá outra vez os quatro homens que
ontem cá passaram o dia. São dois comandantes (chefes) e dois comissários políticos. Ambiente muito cordial e mesmo muito
fraternal. Parece impossível como é tão fácil extirpar o ódio do coração dos
homens.”
Porém, dois dias depois, a 10 de
Julho, voltava a escrever:
“O ambiente por aqui tem continuado amistoso. Claro, refiro-me a
ambiente com o PAIGC. Mas desde ontem à tarde, altura em que chegou o tal M. S.
(o comerciante do sítio), as coisas modificaram-se já. Não sei que influência tem o “tipo” em
tudo isto, mas o certo é que, estando ele uns dias para Bissau, as coisas
corriam melhor. O “gajo” chegou e os ânimos esfriaram um pouco mais. É esta
intriga que nos dá cabo dos nervos. Ora bem. Até onde chegaram as coisas? Hoje,
o elemento mais preponderante do PAIGC, do grupo que está aqui na área, chegou cá
de tarde a informar que tinha recebido ordens do Partido para sairmos daqui no
prazo de cinco dias. Outro dia, quando cá esteve o Comandante-chefe (brig
Fabião), disse-lhes que não precisavam de fazer ultimato, bastava pedir, que a
gente saía do sítio que eles quisessem ocupar. Pois bem, eles agora pedem
Pirada. O comandante disse que não chegavam cinco dias para mudar daqui o
batalhão; explicamos-lhes as coisas como são, e então ele propôs dar mais cinco
dias. Quer dizer: querem que saiamos daqui de Pirada até ao dia 20. Para onde
vamos? Não sei. Só espero é que tudo decorra sem problemas de maior. Amanhã,
vem cá um delegado do Q.G. para tratar do assunto. Aguardamos.”
Era este o clima de inconstância
desgastante do presente e de incerteza do futuro, mesmo do dia seguinte, que
viviam os militares na Guiné, ainda portuguesa, mas em via acelerada de
descolonização. Tudo, em consequência do golpe militar que, na retaguarda, em
Lisboa, tinha derrubado o Governo da Nação. Mas deixem-me terminar esta crónica
com as palavras com que terminei a correspondência a que me venho reportando:
“Ontem à noite, apanhámos cá um choque. Ouvimos na BBC a demissão de
Palma Carlos e mais 4 ministros. Está mesmo bonito! Não sei que implicações
isso possa ter com o Ultramar, mas podem ter a certeza de que as armas do
Exército Português, na Guiné não voltarão a fazer fogo. A não ser para salvar a
pele, se for irremediavelmente necessário, e Deus faça que assim não aconteça.
Ninguém quer a guerra. Nem os próprios elementos do PAIGC. A entrega da Guiné
aos filhos da Guiné é irreversível! Comunistas, o PAIGC? Certamente! Mas não há
outra solução para o problema, na hora presente! O que vai ser o futuro da
Guiné? Não sei.”
Fiquemos, hoje, por aqui. Quase
quarenta anos passados... Infelizmente, todos sabemos o que foi o futuro: o
desse bom povo da Guiné, e o deste torrão que ainda se vai chamando Portugal.
... ... ...
Para eles e para todos nós, UM
SANTO NATAL!
Sem comentários:
Enviar um comentário