sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Para que da Memória se faça História

Episódios do “Verão quente de 75” - II (*)
2. Primeira experiência na Serra do Pilar
No quartel do RASP (Regimento de Artilharia da Serra do Pilar), encontrei um ambiente ainda mais «revolucionário» do que no anterior GACA 3, de Espinho. Tudo já era diferente.
Comandava a Unidade um Major de Artilharia, homem experimentado, sensato, e de grande “tarimba” militar (hoje coronel, na sit. de reforma). Segundo soube, o seu antecessor (já falecido, no posto de coronel), não teria suportado a situação a que se tinha chegado, com a indisciplina grassante após o “25 de Abril”, havendo renunciado ao cargo. Estavam muito activas as ADU (Assembleias de Unidade), uma emanação da organização suvista (SUV - Soldados Unidos Vencerão) promovida em Agosto pela LCI – Liga Comunista Internacionalista. Faziam-se «plenários» amiúde. Era “dirigente” influente nesse «esquema» um oficial miliciano (Alferes), que tinha os seus assessores entre as praças. Uma espécie de «comissariado político».
O diálogo com os elementos revolucionariamente mais activos do Quartel tinha de ser permanente, pois, por dá cá aquela palha, sempre apresentavam questões a resolver, reivindicações de toda a ordem e feitio.
Nos frequentes “plenários”, eram factor de «desmobilização» intelectual as intervenções de um conhecido capitão da Unidade (hoje coronel na situação de reforma), homem com uma intrepidez imaginativa fora do vulgar, de espírito flamejante, e dotado de uma rica capacidade dialéctica. Também o próprio capelão militar, homem do Norte e de uma cultura filosófica afinada, ripostava à «maralha» marxista-leninista com argumentos adequados e imbatíveis. Lembro que, nas suas prelecções, chegou a versar temas sobre educação sexual, munindo-se do «Fritz Khan», talvez para, no âmbito da sua missão formativa, ocupar, de modo mais aliciante, o tempo gasto nas arengas de mentalização política, e desviar a mente da soldadesca para outras ideias menos agressivas. Importa referir que nem todo o pessoal das «assembleias» tocava música pela mesma partitura, mas, nessa conjuntura, a diferença exigia heroicidade, resultando daí uma espécie de sintonia geral forçada. Contudo, muitos tinham ideias próprias e não bebiam água pelas bicas de Moscovo ou de Pequim.
Recordo que, naquela altura, ao ouvir os «slogans» e as reivindicações dos revolucionários, eu dizia: «Fecho os olhos, e só vejo as “banjas” e as manifestações do PAIGCV», tais eram as cicatrizes que ainda marcavam o meu subconsciente, pela situação vivida, um ano atrás, em território da Guiné. Os problemas no exterior também davam que fazer ao Quartel, e, frequentemente, um oficial (o já referido capitão, acima citado), como delegado da Unidade, tinha reuniões na Câmara de Gaia, com o elenco dirigente do Município.
Era um tempo de agitação, em que as forças políticas locais lutavam pelo domínio e liderança das massas populares. Certa vez, em dia de domingo, à tarde, o próprio elemento camarário que exercia as funções de presidente apareceu na Serra do Pilar. Esteve no bar de oficiais e mostrava receio do que lhe pudesse acontecer, dizendo que andava sempre armado de pistola, para sua defesa. Surgiam, em Gaia, manifestações anti-comunistas, e ele queixava-se de que, nesse dia, nos Carvalhos, no decorrer de uma sessão de esclarecimento, junto ao pavilhão do clube de hóquei, tinha mesmo sofrido ameaças à sua integridade física.
Na Serra do Pilar, também a situação reivindicativa das praças não parava, a ponto de, como solução de recurso, o comandante ter decidido, em determinado dia, que “a partir de amanhã”, todos passariam a ter as refeições em comum no refeitório das praças. Foi, porém, o epílogo da indignidade, talvez inevitável, mas caiu-se a um nível de degradação impressionante, só lentamente corrigido com o passar do tempo: à hora da segunda refeição, oficiais, sargentos e praças, todos a monte, acotovelavam-se à entrada para o refeitório geral, e ocupavam as mesas, indiscriminadamente, à medida que junto delas chegavam. Não havia qualquer precedência de posto ou graduação (mesmo inversa). Todos iguais: na colocação das terrinas, na distribuição da comida, no levar para a copa os pratos e talheres, e rapar as sobras para os caldeiros respectivos...
E como podia haver conversa e partilha, à mesa, com pessoas culturalmente tão diferenciadas, com interesses específicos, e, se calhar, a desconfiarem umas das outras? Similar panorama se passava nas salas-bar de oficiais e sargentos... Eram frequentadas por todos. Um rompimento total na disciplina e tradições anteriores, a proporcionar um ambiente pesado e carregado de suspeições. Todos eram «iguais»... O respeito e a hierarquia, pilares estruturantes das relações entre militares, diluíam-se... Qualquer atitude tendente a corrigir alguma entendida anomalia podia ser considerada «fascista», a originar notícia nos boletins ou panfletos revolucionários, clandestinamente difundidos. Sentiam, os graduados, que eram permanentemente «vigiados» pelos subordinados, mesmo disfarçadamente, que logo comunicavam ao «sistema» revolucionário os seus deslizes relativamente aos seus padrões.
(Continua)
(*) – São omitidas nestes relatos referências nominais aos protagonistas dos acontecimentos evocados, quando não sejam do conhecimento universal.

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