sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Para que da Memória se faça História

Episódios do “Verão quente de 75” - III (*)
3. Segunda experiência na Serra do Pilar
Entretanto, a 12 de Setembro, há mudanças no Quartel-General. O Comando da Região é assumido pelo então Brigadeiro Pires Veloso. Também, na sequência, o oficial que comandava o RASP é chamado para assumir funções no QG. Na Serra do Pilar fica no comando outro oficial superior (major), com uma desgastante e dolorosa perspectiva no seu horizonte profissional e pessoal. Há situações, na vida de quem comanda, que exigem o máximo de doação, de acrisolado bom senso, e sentimentos de humanidade bem afinados. O novo comandante pertencia a uma geração desse tipo.
O CICAP (Centro de Instrução de Condução Auto do Porto), onde pontificavam alguns milicianos esquerdistas, encerra a 3 de Outubro, por ordem de Pires Veloso, que destina o complexo edificado à Saúde e ao Ensino.
Na noite de 6 para 7 de Outubro, o quartel da Serra é invadido por manifestantes, militares e civis, que se haviam dirigido ao CICAP com o fim de protestar contra o seu encerramento e, possivelmente, invadir e ocupar o quartel (é conhecido o “slogan” vociferado na altura: “O CICAP é do Povo, não é do Veloso!”).
Não conseguindo os seus intentos, face a uma guarnição já precavida, a turbamulta dirigiu-se, então, para a Serra do Pilar. Aqui, com a conivência de graduados de serviço afectos ao movimento contestatário, os manifestantes lograram transpor os portões do quartel, e aí “armaram tenda”. Qualquer reacção violenta que tivesse sido ordenada, após o facto consumado, para contrariar a “invasão”, teria provocado consequências dramáticas imprevisíveis – alguém haveria de desabafar mais tarde que o motivo que evitou o confronto foi, ponderadamente, evitar-se o derramamento de sangue; um simples fósforo aceso poderia, na conjuntura, desencadear uma guerra civil.
Seguiu-se uma situação de quase anarquia, a todos os títulos insustentável.
No dia 8 de Outubro, à noite, e após um comício no Porto, manifestantes do PPD decidem, por isso, dirigir-se, em peso, ao quartel da Serra do Pilar para aí se manifestarem contra a ocupação e, quem sabe, libertar a Unidade. Os ocupantes, porém, avisados deste intento, conseguem mobilizar toda a guarnição de praças e de civis, ocupantes e sitiantes, contra o que anunciam ser um ataque ao Quartel pelas forças de direita. Descem, então, até junto da ponte de Luís I, onde tentam barrar o caminho aos manifestantes, com o apoio de duas pesadas viaturas militares de combate que, para o efeito, a esse local fazem conduzir.
No mesmo cenário de intensa agitação, ao fundo da Av. da República, comparecem também forças militares a mando do Quartel-General, para manutenção da ordem e evitar a violência. Uma rádio transmite em directo o evento, e ouvem-se, na reportagem, os avisos feitos à multidão pelo comandante da força, tentando apaziguar os ânimos. Logo a seguir, são sonoros e nítidos alguns disparos de armas automáticas. No dia seguinte, a situação apresentava-se confusa.
No QG, pouco ou nada se sabia sobre o que, em pormenor, se passava intra-muros na Serra do Pilar. Os telefones estavam controlados. No interior do RASP, a vida normal da Unidade parecia ter parado. Os portões estavam fechados, e, fora, permaneciam montes de gente com ar ensonado, mas agressivo e vigilante. O rescaldo de uma madrugada de luta. Lá dentro, os ocupantes (militares revolucionários oriundos de outras unidades e civis) organizavam-se, e recebiam apoio logístico, vário, do exterior. Na parada, oficiais e sargentos da Unidade tentavam fazer o ponto da situação, e interrogavam-se sobre perspectivas de solução a tão nefasta como perigosa situação em que se viam envolvidos.
Esta situação rocambolesca durou alguns dias, até que, em 14 de Outubro, o então Chefe do Estado-Maior do Exército, General-graduado Carlos Fabião, visitou o RASP e dialogou com os cabecilhas. Propôs-lhes o abandono das instalações do Quartel, com o anúncio de que iria transformar o CICAP numa unidade militar de elite, a que daria o nome de “Batalhão 25 de Abril” .
Os invasores concordaram, e dispuseram-se a retirar… Com uma condição: voltariam passados 10 dias, a ver se as promessas eram cumpridas.
E voltaram!
Mas, como o povo diz: “Depois de casa roubada, trancas às portas”, este aforismo foi devidamente aplicado.
É que em 10 dias muita coisa tinha mudado.
A normalidade havia regressado ao quartel da Serra.
Um novo comandante assumira funções.
As tropas regressavam à disciplina e ao cumprimento dos seus deveres e tarefas.
4. Epílogo
As instalações do CICAP acabaram por ser de facto destinadas ao Ensino (Universidade) e à Saúde (Hospital).
E a “Revolução” foi, a seguir, mitigada com o “25 de Novembro”.
Pires Veloso, que viria a sofrer um “misterioso” acidente de helicóptero em Lavadores, adquirira merecido prestígio militar e político, a ponto de ser cognominado pelos formadores de opinião “o Vice-Rei do Norte”.
Jaime Neves, à frente dos seus “Comandos”, em digressão de treino e dissuasão, viria desfilar, em parada de continência, na Av. da Boavista, frente à janela do Hospital Militar de D. Pedro V, onde o sobrevivente e politraumatizado Brigadeiro sem medo acenava, comovido.
Tinha-se virado mais uma página da História de Portugal, e nela o Norte escrevera o significado da palavra liberdade – da autêntica Liberdade!
(*) – São omitidas nestes relatos referências nominais aos protagonistas dos acontecimentos evocados, quando não sejam do conhecimento universal.

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