quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Para que da Memória se faça História

Apontamentos de um soldado em África - 16
O Óbito
Tinha acendido as velas do altar-mor, quando à porta da pequena e pobre igreja ouvi um reboliço acompanhado do correr de fechos. Preparava-me para receber a sagrada comunhão, e o sacerdote já se encaminhava da sacristia para o altar, a fim de satisfazer o meu pedido. A missa era de réquiem, e apenas seria rezada dali a meia hora. Havia falecido no hospital da vila uma pobre mulher nativa, a quem o enfermeiro, cristão, baptizara poucas horas antes da morte a que a tinha levado uma doença não cuidada a tempo. Por isso, eu pedira ao padre que me ministrasse, antes, a comunhão, pois me causava atraso esperar pela missa de corpo presente dessa pobre mulher, a quem Deus se tinha aberto nos derradeiros momentos da vida.
Mas, ao olhar para trás, a saber, num gesto espontâneo e mecânico, o motivo do barulho, vi com espanto que um grupo de pretos, homens e mulheres, carregavam uma urna para dentro da igreja. Traziam consigo duas cadeiras, para nelas apoiarem o caixão, ao mudarem de mãos, pelo caminho. Dirigi-me ao pároco e contei-lhe rapidamente o acontecido; e, um e outro, não pudemos conter o riso, tão inesperado era o que se estava a passar. Eram oito horas e meia da manhã. O funeral estava marcado para as nove. Mas, talvez pensando poupar trabalho ao ministro de Deus, talvez impacientes com a lenta aproximação da hora, ou talvez ainda para adiantar tempo, não esperaram que o sacerdote fosse levantar o corpo, e vá de levá-lo quanto antes para a igreja. No fundo, essa pobre gente procedera tal quanto a sua ignorância religiosa o permitira, tanto mais que alguns dos elementos do grupo deviam ser pagãos, como pagã fora quase até ao fim da vida a defunta ali presente. Refeito do incidente, o sacerdote (capelão militar acumulando as funções de pároco) resolveu então, para minimizar os males, celebrar a missa e, terminada esta, acompanhar o préstito ao cemitério. Mas não findara por aí o dia...
À tarde, nova turma de gente se apresentou à porta da igreja. Era outro funeral. Mas, desta vez, tratava-se de uma criança que não era baptizada, e, portanto, não podia ter cerimónias religiosas. E o grupo dirigiu-se, então, para o cemitério municipal, do mesmo modo como até ali viera. Já na minha crónica anterior fiz referência ao problema pastoral, missionário, desta terra. Os casos atrás narrados elucidam em certa medida a sua gravidade. Os nativos estão habituados a enterrarem os seus mortos à sua maneira. Quando há óbito, há comida e bebida, e isto torna-se frequentemente uma ocasião de diversão para aqueles a quem a dor menos aflige. As famílias visitam os enlutados e levam panos ou mantas que servirão para cobrir o morto, que neles será embrulhado e metido no esquife. As mantas que sobram são distribuídas, depois, pelos doridos. .Não admira, assim, que, habituados aos seus costumes pagãos, os nativos tenham procedido de maneira tão simplista. De manhã, o funeral era talvez um dos muito poucos que levavam padre, e os indígenas acharam que estavam fazendo uma grande coisa, ao transportarem, sem mais nem menos, o corpo para a igreja, ao encontro do sacerdote; de tarde, pretenderam, sem qualquer fundamento, seguir o exemplo do primeiro funeral, não sabendo, sequer, a diferença que aquele punha em plano superior (em termos religiosos). À tarde, era o enterro de um não baptizado. Teria sido diferente, se, seguindo os conselhos já dados pelo pároco, este tivesse sido solicitado na hora derradeira. Quanto estas almas pedem missão!...
Já expus, também, no mês passado, as dificuldades que atormentam o pároco, impotente para tão grande e tão diferenciado rebanho. Capelão militar, ele irá embora daqui a alguns meses. Outro virá, na melhor das hipóteses, mas outro, diferente. Depois, ainda outro… Oh! Como é grande a seara, e os operários tão poucos e sem meios!...
A hora que passa é a “Hora dos Leigos”. Não de alguns... de todos! De todos os cristãos, para que, unidos à Hierarquia, façam renascer a Igreja. Na África, o tempo urge. O terrorismo não é mais que um indício de que vamos atrasados! Estamos numa época de velocidades. Tudo corre, e também correm os conquistadores da pessoa humana. Nós, portugueses - todos -, temos de olhar de frente o problema. A gente do Ultramar pede, mais do que nunca, muitos e santos missionários. Mas, enquanto eles não chegam, que todo o branco traga uma cruz na mão, no peito uma chama ardente de caridade, na alma uma formação sã e arrebatadora. Este ideal está, porém, longe de ser atingido...
Graças a Deus, que já há missões de Leigos, em Angola. Amplos são os resultados. Mas, é preciso mais!...
Com os capelães militares, o problema missionário, agravado ao máximo com o terrorismo, foi em parte atenuado. Mas a solução é precária, e a isto conduz o carácter nómada destes sacerdotes. E, ainda, os capelães militares veriam o seu trabalho mais frutífero, se a seu lado trabalhassem os leigos com igual ânsia de apostolado.
De todos os cantos do torrão metropolitano saem jovens para as fileiras do Exército, para que no Ultramar mantenham íntegra a nossa Pátria. Importa prepará-los, para que sejam ao mesmo tempo soldados do Exército de Cristo. A Acção Católica tem aqui um grande campo de trabalho... E todos nós, todos vós, os que ficais. Orai!
Ambriz - Angola, Julho de 1964

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