terça-feira, 3 de novembro de 2009

Para que da Memória se faça História

Apontamentos de um soldado em África - 15
Novas terras, novas gentes
O soldado em Angola quase se assemelha ao cigano, que, nunca estando bem numa terra só, procura continuamente novas paragens, em cumprimento do nomadismo que lhe está no sangue. Obedecendo a ordens superiores, eis que, também, não podemos nós ganhar raízes num único torrão, pois é mister que novos horizontes busquemos, a fim de que nos seja dado um relativo e legítimo bem-estar, após tempos passados em sacrifício, ou, saindo de uma zona mais ou menos calma, atendamos ao chamamento de outras onde se reclamem novas forças e frescos ânimos. Isto permite ao soldado melhor conhecer esta Angola que o chamou e mais aprenda da maneira de ser da sua gente, que, de região para região, tão manifestas diferenças apresenta.
Ficaram para trás essas matas tão frondosas como cheias de perigo, onde sangue dos nossos foi vertido, a selar para sempre a portugalidade destas terras; ficaram os penhascos agressivos e as picadas poeirentas e traiçoeiras; ficaram as emboscadas assassinas de uma guerrilha alimentada pelo ódio e pela subversão internacional comunista. Nova terra, agora, nos acolhe, mais atraente e mais calma, bafejando-nos com a brisa do oceano, no cair das tardes quentes e multicoloridas deste céu africano.
Novas terras... novas gentes! Novas gentes… novos problemas!
Enquanto que, antes, ocupávamos uma região praticamente abandonada, esta apresenta uma população mais ou menos numerosa, com brancos, mestiços e pretos. O habitat do aborígene, aqui, não se diferencia muito do tradicional. A sanzala situa-se na periferia da vila, ou junto ao mar. Não tendo a mata para se dedicar ao café e à caça, os homens ocupam-se da pesca e no trabalho das salinas. As mulheres, contudo, continuam a tratar das lavras (hortas), onde homem não mete mão; elas encarregam-se da agricultura, para cujo trabalho não causa impedimento o filho que trazem às costas ou que, enchendo-se de terra, brinca a seu lado. E é de certo modo consolador ver esses bocados de solo arenoso começarem a verdejar poucos dias após a sementeira, como retalhos pluriformes na extensa zona plana junto à praia. Deitaram à terra milho e jinguba (amendoim), utilizando ainda processos rudimentares, primitivos, mas as sementes hão-de germinar e contribuir grandemente para as suas subsistências.
O problema pastoral é de acuidade extrema. Grande parte da população nativa não é baptizada, embora se verifique, neste campo, uma tendência bastante acentuada e positiva por parte dos naturais. Mas não é fácil, como à primeira vista pode parecer, aproveitar esse movimento em procura da pia baptismal. Impunha-se organizar o catecumenato, cuidar mais da seara; contudo, o trabalho é sobremaneira pesado para o pároco local, cuja função é desempenhada em acumulação pelo capelão militar, que além das suas ovelhas paroquiais tem a tropa, espalhada por várias locais distantes, e que de modo algum poderá abandonar.
Alguns problemas de ordem moral, e de certo modo graves, se levantam também entre a juventude indígena, particularmente nas raparigas. A não ser a catequese, e, a este tempo, em precárias circunstâncias, nenhum movimento de apostolado existe na comunidade. E à juventude, a não ser a Igreja, mais ninguém pode aqui ensinar um caminho de plena realização de vida. A gente africana - já o disse nestas crónicas - tem pouca experiência dos padrões da nossa civilização, e, por outro lado, possui sentimentos delicadíssimos. O contacto com o europeu, quando este tem mais defeitos do que qualidades a pesar no prato da balança, pode ser-lhe, e é geralmente, prejudicial. Pode destruir-se o seu sistema tradicional de vida, sem integração natural num outro que supere o antigo. A facilidade com que, por isso, o indígena é influenciável pode permitir o caos moral... e é muito triste quando isso acontece!
O terrorismo, com o abandono de algumas fazendas e a consequente delimitação das áreas de livre circulação, trouxe algumas dificuldades em matéria de alimentação. Tal ferrete deixou também as suas marcas no quadro humano desta região, facto de que as crianças são a sua mais viva e negativa expressão. Não fique o leitor desta crónica, e por ela, com ideias aterradoras sobre o que nos cerca. Não! Situações destas encontram-se em todo a mundo, e seria criminoso escondê-las. Importa encará-las de frente e combater os males pondo os problemas em equação... Mas estas equações sociais não se podem submeter unicamente aos números da Estatística; a incógnita continuará persistente, se a caridade de cada um nós, em todos os prismas porque pode ser vista, não for uma realidade activa. Tal como noutros sítios já, vi o preto pedir trabalho e executá-lo como o branco, ou melhor. Daqui se prova, ao contrário do que muitos pretendem fazer crer, que o africano não é um preguiçoso por natureza. Ele trabalha, se as suas necessidades lho determinarem, e com ele podemos contar para a restauração da terra que ele e nós amamos, irmanados num mesmo ideal cristão o patriótico.
Eis que encontramos, por conseguinte, um novo campo de luta. Luta que já não é propriamente de armas, mas de corações e de almas. Que Deus nos ajude a cumprir a nossa missão durante estes meses que aqui estivermos: a trabalhar, se necessário mesmo para além das nossas forças.
Ambriz - Angola Junho de 1964

1 comentário:

Anónimo disse...

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