terça-feira, 3 de novembro de 2009

Para que da Memória se faça História

Apontamentos de um soldado em África - 13
Da guerra ao lar amado
Entrei naquele enorme charuto alado... Quase abafava sob o calor do seu ambiente fechado.
Lá fora, uma multidão se acotovelava ainda, em disputa de prioridade na estreita passagem da escada que dava acesso ao boeing. Quase parecia impossível como dentro de escassos minutos aquela mole imensa se tinha acomodado toda nas cadeiras suaves do avião. Mais uns segundos, e Luanda ficava de baixo dos meus pés... para, em breve, ir passando para trás mais e mais, até se perder no fundo do horizonte.
O ar tornava-se agora mais fresco e, mais tarde, ficou, mesmo, frio, a ponto de me fazer doer os pés. Inclinei as costas da cadeira para trás. Levantei os olhos e, pela escotilha, reparei que lá no fundo... muito fundo já, a terra fugira até quase se dissipar. Passáramos já Ambriz, Ambrizete, St. António do Zaire... - pequenos desenhos na face distante do Globo. Angola ficava...
Recostei-me e respirei fundo. Parecia um sonho, mas era realidade: depois de quinze meses, ia, enfim, voltar a ver aqueles rostos queridos que deixara com os olhos marejados, naquela doca de Lisboa. Dentro de horas, ao noitecer, apenas, poria pé firme em Lisboa, e, depois, rumaria ao Norte, em busca do lar amado. Oh!, Deus! Obrigado! Que mais pode um soldado desejar, fora do cumprimento do sagrado dever, do que voltar à terra em que nasceu, e beijar aqueles que o trouxeram ao mundo?!...
Ainda havia poucos dias desde que a morte rondara de novo pelos nossos. Num ataque inimigo, mais um jovem português dera a vida pela Pátria. Horas um pouco amargas se passaram nesses momentos. E como que num abrir e fechar de olhos, a guerra se tornava, agora, para mim, distante... Para trás, para trás... mas só por um mês. Tempo, contudo, suficiente para respirar lufadas de ar retemperador metropolitano; para receber os afagos cheios de lenitivo vital do ambiente familiar. Em poucas horas, Lisboa voltava a acolher-nos no seu seio. Mas... - que ingrata! - a quem vinha do sol quente do céu africano, oferece um frio incomodativo, uma temperatura de onze graus centígrados. Ingrata?!... Incomodativo ?!... Oh! Na verdade, não podia ser de outra forma. Lisboa dava o que tinha, do que era mesmo de seu. Era o seu beijo de boas vindas. E como, ao sentir esse frio, a princípio importuno, senti consolada a profunda nostalgia que há mais de um ano me dilacerava a alma! Sempre tivera saudade do frio da saudosa Metrópole...
No mesmo dia da chegada, um comboio me traz veloz aos braços dos que deixara. Mas se uma alegria exuberante me invadia o coração..., a minha alma conservava uma lacuna, onde habitava uma preocupação também nostálgica e dilacerante. Neste céu de felicidade que agora me começava a cobrir, não podia expulsar do pensamento os camaradas de armas que continuavam no campo da luta. Impossível olvidar aqueles bravos e simples rapazes que sempre tive sob as minhas ordens e que comigo passaram momentos de angústia e tensão. Jamais, pois, poderia considerar-me afastado dessa guerra que, ao levantar de Luanda, me parecia ficar pelas costas. Longe, sim, e sob os carinhos dos que me são amados, sinto-me, também, no meio dos que continuam sofrendo nas matas e savanas, nos montes e vales, nas traiçoeiras estradas do norte angolano, ou no isolamento dos acampamentos, onde o conforto falta. Ficaram... e eu vim. Ficaram... para que eu pudesse vir.
Só agora compreendo o que muitos não querem ver. Só agora sinto a tua abnegação, ó soldado humilde português que no Ultramar labutas para que outros, longe do troar das armas, vivam a paz doce de seus lares. E tu, heróico, esforçado, insensível à dor e à tristeza, não pedes sequer um agradecimento... uma única palavra... nada! Lutas sob a força do teu ideal – a Pátria, onde todos - em teu coração - têm laços de família. Lutas e morres também, ainda que o não penses, pelo teu Deus, que te criou. Longe... mas presente! Alegre... mas sofrendo! Afinal, rapazes que me acompanhastes, continuo a vosso lado.
Ouço também aquelas palavras dos pobres nativos de quem me fui despedir na hora da partida, e que circunstâncias determinadas pela rotação do dispositivo de forças não permitirão, talvez, voltar a vê-los. Ficaram tristes. Era para eles – disseram – “o nosso pai e o nosso mãe”... E eu ia deixá-los! Lembro a todos com saudade, e jamais deixarei de ouvir essa exclamação, autêntico grito de chamada missionária. Recordo, ainda, aquela última frase de uma simples mulher do povo, mãe de duas ternas crianças, e amparando mais uma de tenra idade, cujos pais na mata ficaram: -“ Goze muito boa viagem, nosso! ...”
Angola já tinha ficado lá muito para atrás... O avião rasgava as alturas do céu... à procura do seu destino. Mas, Angola continuava a acompanhar-me nas entranhas da alma... Continuava! Vinha comigo! Talvez por isso achasse fria de mais a temperatura dos ares de Lisboa.
Obrigado, ó Deus, por me trazeres de volta ao lar... Mas a missão não está totalmente cumprida. Tenho de voltar. Ajuda-me a beber o licor tonificante destas férias, e leva-me depois, de retorno, ao meu lugar, nesse solo martirizado de Angola, com maior força e coragem para vencer.
Angola - Abril de 1964

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