sexta-feira, 18 de março de 2011

Para que da memória se faça História

“Os bombeiros do Capoche”

Dia quente era aquele, de Fevereiro de 1970, na ZOT – Zona Operacional de Tete, Moçambique. Duas horas da tarde. Depois da segunda refeição, andava eu com outro oficial a mostrar ao Fumo (chefe) da aldeia que se estava a formar junto ao aquartelamento o local onde iríamos, em princípio, erguer mais cubatas para as populações recuperadas que chegavam do mato...

Admirávamos, de cima da ponte, o curso do rio Capoche, acariciados por uma deliciosa aragem fresca que corria suave sobre as águas. Dava vontade de navegar, de canoa ou jangada, por ali abaixo, ao longo dos cinquenta quilómetros que nos separavam da barragem de Cabora Bassa, no Zambeze, já em construção.

A perturbar este remanso da Natureza, correu até nós, descendo a picada desde o aquartelamento - que ocupava um morro na margem esquerda deste rio - o cabo de serviço à estação de rádio, e gritou:

- Do Batalhão, mandam sair imediatamente uma patrulha até ao rio Luia era a mensagem que trazia o militar.

- Responde que não é preciso – repliquei - porque saiu há pouco tempo uma coluna nossa com esse destino.

E o cabo lá subiu ligeiro a encosta, de regresso ao rádio para transmitir a mensagem resposta.

Continuámos a deliciar o nosso olhar pela maravilhosa paisagem selvática africana, de uma beleza rude mas atraente, a pulsar de sonho e de mistério. Ao redor, um ou outro pássaro exótico competia, em sonoros acordes, com o marulhar das águas do rio na correnteza.

Mas eis que o cabo telefonista volta a descer em corrida e proclama ofegante:

- Dizem que é por isso mesmo... Ouviram um rebentamento, e pareceu-lhes ser para os lados da auto-estrada.

Chamávamos “auto-estrada” ao percurso de terra batida que ligava Cangombe, onde estávamos, até Moatize (Tete), passando pelos vários aquartelamentos das nossa tropas. O mais perto, a cerca de duas dezenas de quilómetros, era o do Luia, na margem esquerda do rio com esse nome, a confluir, mais a sul, com o nosso rio Capoche, rumo ao Zambeze. Cerca de uma légua mais á frente, encontrava-se o quartel do Comando do Batalhão, no Bene.

Ouvida a mensagem, não foi preciso mais nada. Rapidamente vencemos o caminho ascendente até ao aquartelamento. Aqui, já tudo andava em rebuliço. Havia só um “pincha” (unimog 411) e o carro da água (outro unimog 411 equipado com o tanque da água, para reabastecimento diário do quartel). Uma força de voluntários se constituiu, “enquanto o diabo esfregava um olho”. Passados instantes, já marchávamos estrada fora, com as únicas viaturas que estavam à nossa disposição: o “pincha”, à frente; o carro da água, atrás, com o pessoal encavalitado como podia naquele barrigudo com tentáculos de mangueira, a segurar estas com uma mão e a espingarda (G3) na outra.

Pontos perigosos do itinerário: saltar, correr em marcha apeada; subir de novo...

- Cuidado!!! O In pode associar qualquer emboscada ao que possa ter acontecido (todos supunham ter havido um rebentamento de mina...).

Divisa-se, mais além, uma coluna de fumo. Imagina-se logo um cenário de tragédia: viatura destruída, corpos despedaçados... - A coluna deve ter “apanhado” com uma mina – ouvia-se... Em nossa mente, pressentimentos cruéis: feridos, mutilados, dor, gemidos...

A estrada vai-se galgando, e o carro da água lá vai saltitando, atrás do pincha, todo vaidoso por também ser “operacional”. Na dianteira, os bravos soldados aperram as armas, prontos a ripostar a qualquer ataque inimigo.

- Talvez depois daquela curva... Ou daquela lomba...

Mas nada! O coração aperta-se... Surge a ponte sobre o rio Luia.

- Graças a Deus! Já estamos no Luia. Mas... e as viaturas?... A coluna?... A mina?... Os feridos?...

Percorremos toda a ponte, e logo mais adiante, à esquerda, o quartel da companhia do Luia.

Entrámos na área do aquartelamento. Ainda não eram três da tarde. As viaturas, apesar de apenas duas, fizeram um certo ruído. Logo apareceram, sonolentos, pela sesta interrompida, alguns militares... Oficiais, sargentos e praças, que olham para nós com ar estupefacto e interrogativo:

- Que se passa?!...

E vendo o “carro da água”:

- Onde é o incêndio?... Não chamámos os bombeiros!...

Viaturas paradas... Interrogação e surpresa em todos os rostos. Esperávamos uma notícia desagradável, e apenas isto nos surge!... Respirámos de alívio. Mas ali estava o carro da água com os soldados nele empoleirados, segurando as mangueiras e de olhos esbugalhados pelo insólito. Pareciam mesmo bombeiros à cata de um incêndio!...

Não tinha havido mina, felizmente. O nosso pessoal – a coluna – havia passado ali em boas condições, são e salvo, a caminho do Bene, e, pela rádio, soubemos que já se encontrava lá. Mais tarde, esclareceu-se que tudo surgiu porque, na área do Comando do Batalhão, algum espertinho tinha lançado uma granada de mão ofensiva na margem do ribeiro que perto corria, na mira de apanhar alguns peixes, e a explosão confundiu os “entendidos” daquela nossa tropa, associando o som do rebentamento a uma possível mina accionada na “auto-estrada”, por onde sabiam estar em marcha a nossa coluna de viaturas.

Para susto, tinha chegado. Lucrou-se o exercício de prontidão operacional, a qualquer custo, e com quaisquer meios... Mas não nos livrámos da chacota que os militares do Luia nos endereçavam a partir daí, e por esse feito ficámos a ser conhecidos como “Os Bombeiros do Capoche”.

(CArt 2628/BArt 2897)

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