Feitos e Factos
da “descolonização” da Guiné – 17
Como já temos vindo a dizer, os
acontecimentos relativos à descolonização da Guiné iam tomando, dia a dia,
matizes diferentes, imprevisíveis, o que contribuía para arrasar os nervos das
nossas tropas. A disciplina degradava-se, mercê da situação psicológica criada
nos militares, que, agora, sem actividade operacional e com futuro incerto,
ocupavam o seu tempo nas tarefas de serviço diário de escala, em actividades
desportivas, ou, livremente, visitando, nas imediações do aquartelamento, o
comércio de Pirada
Importa referir que a situação de
guerra “quente” anteriormente
vivida, com frequentes ataques aos aquartelamentos, obrigava a que estes se
configurassem a um dispositivo disperso de segurança, ou seja: os pelotões
estavam disseminados ao redor de toda a povoação, em abrigos cavados no terreno
(bunkers), com os efectivos a guarnecer armas pesadas de infantaria e de
artilharia, para defesa contra as flagelações do inimigo. Este, possuindo já
artilharia de foquetões (mísseis) dirigidos, terra a terra ou terra - ar,
desenvolvia os seus ataques desde alongadas distâncias, que as nossas armas de
defesa tinham dificuldade em vencer (morteiros, artilharia de 8,8 cm, 14cm,
11,4 cm, e peças de 9,4 cm).
A este propósito, é oportuno
lembrar que no próprio dia 25 de Abril de 1974, enquanto em Lisboa decorriam as
operações do golpe de Estado, Pirada sofria um violento ataque, de cuja
“memória”, e com a devida vénia ao autor do blog “blogueforanadaevaotres.blogspot.pt”, aqui se transcreve um excerto do registo nele deixado pelo então 1º
cabo atirador, Joaquim Vicente da Silva:
....
“Eram mais ou menos dez e meia, eu já tinha tomado banho e estava no meu
quarto, abrigo nº. 1, deitado em cima da minha cama e ouvi um pequeno estalido.
Um colega que estava cá fora sentado num banco, gritou logo:
-Saiam para a vala que isto
é o início de um ataque!...
Naquele dia o PAIGG bombardeou Pirada com muitos mísseis e morteiros,
alguns caíram bem perto do local onde eu me encontrava, eu não morri por sorte.
A meu lado, morreram três africanos nossos colegas, um míssil caiu-lhes aos pés
e cortou-os em pedaços. Nunca tinha visto nada daquilo. Fiquei horrorizado,
ainda hoje mexe comigo.
Nós, soldados brancos, não morremos nenhum, porque estávamos bem
agachados nas valas ou trincheiras. Vieram juntar-se a nós vários oficiais,
incluindo o alferes médico que nos disse para nos espalharmos mais pelas valas
porque aquilo estava a ficar feio.
Este bombardeamento durou cerca de duas horas. Nós respondemos com os
morteiros 81, os nossos obuses 10.5 e o nosso obus 14 que estava junto ao
aeroporto de Pirada. Bajocunda também nos deu apoio de fogo com o obus 14
deles. Foi um inferno. Só se ouviam bombas a voar, outras a assobiar e a
rebentar por cima ou perto de nós.”
....
Mas a guerra tinha efectivamente
terminado... A luta armada, que não os problemas sobrevindos!
A paz efectiva, tem de ser
construída, porque não pode fundamentar-se na simples determinação e vontade do
mais forte. E não estávamos nós já, nas circunstâncias presentes, em situação
de pensar que detínhamos a
supremacia da força – nem a força moral, e nem, muito menos, a das armas. Por
isso, os problemas continuavam a surgir a cada momento.
O nosso relacionamento com os
elementos do PAIGC desenvolvia-se em termos amistosos. Falávamos a mesma língua
– o Português – embora alguns, a princípio, preferissem o crioulo, que logo era
abandonado, ultrapassadas as primeiras barreiras da desconfiança. Mesmo assim,
o imprevisto estava sempre a dar cabo dos nossos nervos. Não era fácil
convencer aquela gente, e principalmente aqueles que pegaram em armas para, a
nosso lado, defenderem o seu chão. De um dia para o outro, tudo tinha mudado.
Íamos entregar o património sócio-histórico e cultural nas mãos daqueles que
até aí nos tinham combatido... Inacreditável! A retaguarda, a milhares de
quilómetros de distância, tinha abalado os alicerces de um povo, que se via
agora diante de uma perspectiva de futuro desconhecido. Era preciso, pois,
convencer o povo – esse povo que tanto tinha apostado na politica de Spínola,
com rumo a um futuro risonho e livre – de que, afinal, o “Inimigo” é que tinha
“razão”!... Uma reviravolta! Para alguns, ou mesmo para muitos, uma “traição”!
Entretanto, o PAIGC continuava a
desenvolver a sua “Psico”, através de reuniões, comícios, manifestações
públicas, cortejos de propaganda... O Administrador – um branco – temendo pela
fragilidade da sua segurança (não estava nas boas simpatias do já referido e
influente M. S.), afastou-se definitivamente do seu posto e função. Deixou de ser
visto em Pirada, presumindo-se que tenha “regressado” a Lisboa... A
substituí-lo, ficou o seu adjunto, um natural, que rapidamente se integrou nas
actividades do “Partido”.
Tudo se sucedia a uma velocidade
impressionante... As ocorrências do dia a dia ultrapassavam todos os nossos
planos e previsões. A disciplina dos nossos militares degradava-se, e alguns
episódios graves iam surgindo a escaparem à nossa capacidade de controlo.
Entretanto, apareceu em Pirada um soldado comando (preto), vindo de Bissau, a
pedir satisfações ao Comando do batalhão pelo que tinha acontecido ao seu irmão
– o milícia que tinha sido retido pelo PAIGC com o negociante de carne, já aqui
referidos em crónicas anteriores.
Mas deixemos este e mais outros
factos para a próxima conversa...