Para que da memória se faça História
Feitos e Factos
da “descolonização” da Guiné - 22
Para Bissau, até ao fim do mês...
Na
carta (aerograma) que escrevi em 5 de Agosto, ainda alimentava a
esperança de me deslocar à Metrópole, para umas desejadas férias
a desanuviar o “toutiço”, e reencontrar os familiares. As
saudades eram cada vez mais acutilantes, mercê da pressão dos
acontecimentos diários, imprevistos e desconcertantes.
Dizia
nessa carta ter entretanto recebido uma correspondência do Né, meu
filho mais velho, e outro do Zé, irmão de minha mulher, e, na
circunstância, em comissão militar em Vila Pery, Moçambique, como
alferes. Este dava conta do que se passava por lá, com a Frelimo, e
do ambiente de confraternização com os seus elementos, um pouco à
semelhança do que se passava na minha área com o pessoal do PAIGC.
Referia
ainda o jantar, nas nossas instalações com quatro elementos e uma
“elementa” do PAIGC, dos quais Bobo Keita, comandante da frente
leste, e recentemente participante nas conversações com o Governo
Português, em Londres e Argel, para negociar a paz. Este
interlocutor (já referido no tema 18) deixou em todos a
melhor impressão, dada a sua personalidade desinibida, alegre,
facilmente loquaz, mas de competência manifesta. Ambiente de franca
cordialidade.
Entretanto,
a situação ia evoluindo, com rapidez. Fomos sabendo que tínhamos
de desactivar Pirada e estar em Bissau até ao fim do mês em curso,
para novo estacionamento do Batalhão, junto do Aeroporto, no quartel
antes ocupado pelos Paraquedistas, já regressados à Metrópole.
Esperava-se
também que a “nova” república da Guiné Bissau fosse
reconhecida por Portugal até dia 15 do mês em curso. O dispositivo
continuava a retrair-se e o regresso das tropas a Portugal ia-se
processando em ritmo acelerado.
A
disciplina militar continuava a ressentir-se, face à situação de
relaxamento da actividade castrense, à ansiedade perante o futuro
ainda pouco definido, e, mesmo, em resultado do relacionamento dos
nossos militares com os elementos do PAIGC, sempre em perigo de
conflitos pontuais.
No
dia 7 de Agosto escrevi num aerograma: “Eu continuo bem, embora
um pouco estafado pelo trabalho cansativo dos últimos dias. Trabalho
um pouco desorganizado, virtude das circunstâncias e do método
muito descontrolado do major, que chegou de licença e agora está a
comandar. O maj. M.B. … trouxe a notícia de que temos de estar em
Bissau até ao fim do mês... Pirada é entregue ao PAIGC. Fica muito
material, mas também vai muito para baixo (Bissau).
Levantam-se problemas de toda a espécie. O tempo que eu tenho livre
é pouquíssimo, e a intervalos curtos. É a tropa que sai. São as
populações com novos problemas. Os soldados africanos, que
desconfiam do futuro... Enfim! Ainda esta noite, os soldados
africanos em Paúnca assaltaram a arrecadação e foram-se armar de
novo. Teve de intervir o PAIGC, mas não houve mortos nem feridos. O
assunto já normalizou”.
Imagine-se!...
Para resolver um conflito interno, teve-se de pedir a intervenção
do... PAIGC!... Era esta a situação degradada em que tínhamos já
mergulhado!...
E
continuava:
Desta
forma, os próximos dias vão ser de lufa, lufa. Já começam,
inclusivamente, a andar por aqui os jornalistas e reporters das
emissoras de rádio. Já tínhamos quem nos chateasse... Não
precisávamos de mais ninguém...
No
dia 8, prosseguia os meus apontamentos epistolares, cerca da meia
noite:
“Estou
a escrever da cama. Graças a Deus, que agora tenho um pouco de
sossego. Foi um dia inteiro de trabalho e de problemas a resolver.
Quando fomos jantar, eram 9 e tal da noite. Os problemas são sempre
os mesmos. Hoje, porém, tivemos de resolver um novo. Com a tropa
branca. Dois soldados, de baixo quilate, que deviam ser punidos e
corridos... Mas, no estado actual da disciplina, isso é um perigo,
um problema. Ainda ontem à tardinha tivemos de resolver outro. Houve
uma pega entre um soldado preto e um soldado branco. Às tantas,
andava o soldado branco com uma espingarda (G3) para matar o preto;
este, tinha ido à tabanca buscar uma granada de mão. Oh! Meu Deus!
Quando acaba isto, e como?!...”.
Ao
deparar com este conflito, perigosíssimo, com esta penosa situação,
rapidamente me meti no jeep e fui buscar o major M.B., (o cmdt foi,
agora, de férias) que estava e jogar vólei... e levei-o a toda a
velocidade ao encontro do soldado perseguidor, que estava
desvairado... A situação resolveu-se, pela persuasiva...
Escrevia
depois:
“Agora,
que estamos perto da saída, os problemas avolumam-se: são os pretos
que não querem sair da tropa..., são os brancos que se abandalham;
é o PAIGC a “chatear”, a pedir arroz, gasolina, açúcar, pão,
etc., etc.; é a população que não tem que comer... Enfim!...
Pois, foi um dia intenso. Aqui estou agora, num pouco de sossego.
Cerca das nove da noite veio um temporal tremendo e chuva. Isso
também acalma os ânimos... “