Feitos e Factos da “descolonização” da Guiné – 7
Os acontecimentos, em Pirada,
desenvolviam-se a ritmo alucinante e imprevisível. O futuro era uma incógnita,
desgastante. A actividade operacional tinha sido suspensa. Apenas se cumpriam
as necessidades imediatas de vigilância próxima. Vivia-se na incerteza, no que
poderia acontecer no amanhã... Cada minuto, cada hora por sua vez. A situação
não era, porém, favorável a uma boa saúde mental das tropas, tanto entre os europeus
como quanto aos naturais (militares e milícias).
A tropa metropolitana ansiava o
seu regresso imediato ao torrão europeu. A disciplina caíra a padrões
inadmissíveis, e esse estado de espírito tendia a agravar-se, em descontrolo
psíquico. Certo dia, à tarde, talvez em dia de domingo, estando eu a trabalhar
no meu gabinete, dei conta de que, fora, algo de anormal se passava entre dois
militares: um de cor, o outro, europeu. O primeiro ia lesto, perseguido pelo
segundo, de G3 (espingarda) na mão e de ânimo exaltado. Corri para o jeep, fui rápido ao campo de voleibol, ali próximo, e disse ao major
M.B., que ali jogava numa equipa, se metesse na viatura e me acompanhasse, numa
emergência... Disparado na direcção da ocorrência, conseguimos chegar junto dos
contendores, a tempo de evitar o pior, de acalmar os ânimos e desarmar os
intentos do potencial agressor.
Vivíamos, pois, num ambiente
delicado, quase explosivo, quanto ao comportamento dos militares, de modo
particular dos europeus. De resto, isso era flagrante no atavio: tronco nu, calçando “chanatas”,
cabelo e barba sem esmero, modos bruscos e alarves – a decadência do brio e
decoro militares. Para os soldados de cor, para a população civil, e não só,
isto era uma imagem desprestigiante do Exército que até aí tanto sofrera e dera
a vida pela defesa do seu chão, do território guineense.
Dizia atrás: “e não só”, pois, em
certa ocasião, o povo e, mesmo, soldados e milícias nativos foram convidados,
nos primeiros dias de Junho (1974) a sessões de esclarecimento ministradas por
elementos do PAIGC, na fronteira e do lado do Senegal. As coisas iam já
acontecendo à margem do nosso controlo. Muitos foram para lá, e até os nossos
soldados brancos se aprestaram a ver in loco, por curiosidade, o que se
passava. Não puderam, contudo, passar além do limite do território (português),
pois, junto da barra da fronteira, estavam militares senegaleses, vigilantes, a
impedir a passagem dos europeus. Verifiquei, presencialmente, o facto, e
senti-me envergonhado perante o contraste, ali, entre os nossos militares e os
do Senegal: estes, educados, gentis, bem uniformizados; os nossos, mais
parecendo elementos de um bando de rufias. Que mau cartão de identidade!...
Outras “sessões de
esclarecimento” se foram seguindo, primeiro junto à fronteira, depois já dentro
do nosso território, em Pirada. O elemento feminino era a pedra de toque destas
reuniões, com as suas vestes tradicionais, as suas danças rítmicas e os seus
cantares tão genuinamente nativos. Constituíam, as mulheres, uma espécie de
claque de apoio, motivadora, entusiasta. Tudo fazia parte de uma bem
orquestrada acção psicológica a fim de preparar e convencer as populações para
a mudança de domínio politico. O povo mostrava-se apreensivo, os militares
naturais e os elementos das milícias começavam a dar mostras de pouca esperança
no futuro dos seus dias, e de algum temor quanto a possíveis retaliações
vingativas. Pouco a pouco, ia eu meditando no meu íntimo: “esta gente não vai
conquistar a liberdade; vamos entregá-la de mão beijada, agora sim, a uma feroz
ditadura”.
Entretanto, continuávamos a dar
apoio à população, em estreito contacto com o adjunto da administração civil
local, um natural, e com boas relações estabelecidas com alguns comerciantes da
localidade. Um deles, o mais influente, que aqui apenas designarei, por razões
óbvias, de “M. S”., costumava reunir, à noite, no seu estabelecimento, alguns
oficiais do Batalhão, em ameno convívio, a que não faltavam as bebidas que o
ambiente proporcionava. Todos se admiravam e entusiasmavam com tanta
“generosidade”... Só que, mais tarde, nas vésperas da partida da Unidade para
Bissau, abandonando o aquartelamento (que foi entregue ao PAIGC), as contas,
individuais, apareceram, com a perplexidade de cada um dos seus destinatários...
Bem avisado andou o autor destas linhas, que, logo de princípio, não se mostrou
disposto a integrar esse “clube”
de amigos.
Certo dia, estando o comandante
de batalhão ausente, de licença, e tendo o 2º. Comandante também partido a
visitar uma outra unidade vizinha, “M. S”., entrou no quartel e quis
fornecer-me uma informação importante. Recebi-o no gabinete do comando e
aprestei-me a ouvi-lo. Disse que tinha recebido notícias recentes, por um
emissário, de que em Zinguinchor, porto de mar do Senegal, perto da fronteira
com a Guiné, a norte, havia chegado um navio que descarregara grande quantidade
de material de guerra, prevendo-se por isso um ataque em força, do PAIGC, às
posições portuguesas. Era preciso tomar medidas imediatas, acrescentou o
“informador”.
Ouvi-o com atenção, e
respondi-lhe que agradecia o comunicado, mas que lamentava não tivesse vindo
uns minutos antes, para dar a notícia, directamente, ao major “M. B”., 2º.
Comandante, que tinha partido, havia pouco, para Nova Lamego. Mais lhe disse que,
no regresso do meu superior, logo o colocaria a par da informação. Fiquei com a
noção de que a intenção de M.S. era experimentar-me, para avaliar a minha
reacção, dado que era eu, ali, ainda novo nas funções. No regresso de “M. B”.,
dei-lhe conta do sucedido, e o caso ficou por aí... Nada de gravoso surgiu
posteriormente, que viesse confirmar a notícia e a alterar a situação vivida.
De resto, esta figura típica do
conhecido e influente “comerciante”, cujo protagonismo espontâneo era
considerado pouco fiável, por se admitir que “jogasse” com um “pau de dois
bicos”, apoiando as nossas forças, sem deixar de favorecer também o lado
contrário, viria a ser vítima da sua suposta duplicidade de actuação: não
logrou garantir as boas graças dos “Libertadores” da Guiné. Quando abandonámos
a posição, “M. S.” manteve-se, como antes, em Pirada. Soube-se mais tarde que
tivera de enfrentar, logo a seguir, uma situação muito atribulada, difícil, até
conseguir sair para Portugal. (Disso, deu conta, vinte anos depois, a “Revista “ do semanário
“Expresso”, de 22 de aneiro de 1994).