Feitos e Factos
da “descolonização” da
Guiné – 11
Logo
depois de almoço, naquele Domingo, apareceu na messe o “M. S.” – o já referido
comerciante – eufórico, a convidar-me para irmos ao acampamento do Paigc conversar e confraternizar com eles... Sugeriu que levasse umas
bebidas, para o efeito. Um dos oficiais subalternos, que ouviu a conversa,
ficou entusiasmado, e ofereceu-se logo para me acompanhar. Nós de jeep, o M.S.,
em viatura própria. Não gostei nada da ideia, pois logo desconfiei que algumas
coisa me não “cheirava bem”... Mas lá fomos, pois recusar o evento, seria um
acto de más “relações públicas”, e, naquele caso conjuntural, desaconselhável
como negativo tacto político.
Chegados
ao acampamento dos “nossos amigos”, a cerca de 4 km a sul de
Pirada, receberam-nos com abraços e a pergunta sacramental “corpo, bom?”, maneira peculiar de cumprimentar naquele solo africano. Decorreram
alguns momentos de efusiva conversa, e de boa disposição, sempre na perspectiva
de que a guerra tinha acabado, e que a paz e a concórdia começavam a mostrar-se
uma realidade garantida.
Porém,
pouco tempo depois, aquele clima de boa disposição foi interrompido por um
emissário que chegou ao local, a dar notícia de que, em Pirada, andava um
elemento das milícias a dar vivas à FLING, e meteu também no mesmo saco das
suspeitas um outro conhecido homem da população, que detinha o negócio da carne
de bovino – o talhante. O primeiro, o “milícia”, tinha um irmão militar, em
Bissau, nos “Comandos”, e por isso era tido, pelo Paigc, como “persona non grata”; o segundo, matava gado e vendia carne à tropa, mas havia no vulgo
“queixas” de que ele nada fornecia ao povo. Por isso, tudo indicava que este
episódio rocambolesco não passaria de uma tramóia “diabolicamente” orquestrada
para um ajuste de contas pessoais, vinganças oportunistas, ou manobras tácticas
de uma estratégia encapotada que começava a delinear os seus contornos. E esta
situação exigia muito tacto, pois não estávamos, já, em condições de supremacia.
“Todo o
caldo se entornou”, então!... Desfez-se o clima de bem-aventurança que, por
momentos, tínhamos vivido ali. Os elementos do Paigc,
inquietos, queriam ir a Pirada prender os dois personagens, pois, para eles,
ouvir falar na Fling, era o mesmo que falar ao diabo
na cruz! (A
Fling – Frente de Libertação Nacional da Guiné – era o movimento que tinha
iniciado a luta pela independência do território, e por isso era hostil ao Paigc). Entretanto, na confusão, e talvez para “ver” o que se passava na
povoação, “M.S.” desapareceu da cena. Vi-me e desejei-me para dominar a
contenda, não sem prometer que no dia seguinte, eu e o comandante de batalhão,
levaríamos os dois indivíduos à presença deles (Paigc), pois
os meus interlocutores exigiam falar-lhes e “esclarecê-los”.
Assim
acabou a “festa”, de modo tão insólito. Comecei a compreender que tudo tinha
sido programado com perícia... O “maquiavelismo” em acção. A paz que se
esperava fosse consolidada em harmonia, começava a mostrar os seus espinhos, e
o futuro adivinhava-se de negra imprevisão.
Regressados,
em frustração, ao quartel, dei conta ao comandante da Unidade do modo como tudo
tinha decorrido. A preocupação nossa era notória. Havia a sensação de que a
perfídia começava, como cobra rastejante, a enroscar-se ameaçadoramente à nossa
volta. Ficou, então, combinado que, na manhã seguinte, iríamos fazer uma visita
aos pelotões de milícias, e, com esse pretexto, levaríamos os dois homens
connosco... Passaríamos pelo acampamento do Paigc e eles
ficariam ali para o desejado esclarecimento, enquanto nós continuaríamos o
périplo pelos pelotões de milícias, em visita de rotina. Estes pelotões não
eram nada mais do que as várias povoações organizadas em autodefesa, espalhadas
pela nossa área de responsabilidade.
Depois
de uma noite mal dormida, com o peso do desconhecido sobre os ombros, logo de
manhã cedo nos aprestámos para, num jeep, cumprirmos o nosso plano. Levámos
connosco os dois protagonistas da polémica (o milícia e o magarefe). Chegados
ao acampamento do Paigc, fomos recebidos amistosamente,
e um dos seus elementos de comando pediu até desculpa de não ter “a guarda
formada” para prestar as devidas honras ao comandante. Ironia ou
delicadeza?!... Talvez a segunda.
Ficou
combinado, então, que iríamos prosseguir a nossa missão de rotina, e que ao
meio dia, no regresso, por ali passaríamos de novo para recolher os dois
homens, com quem eles queriam falar, a fim de os esclarecer sobre a nova
situação presente no território.
Cumprida
a nossa tarefa, voltámos ao local, à hora aprazada. Perplexidade! Disseram-nos
que “ainda não tinham falado com eles”...
As coisas começavam a complicar-se. Ficou, assim, assente que, de tarde,
eu próprio os iria lá buscar, e regressámos a Pirada, com alguma negrura na
alma. Ao entrarmos na povoação, sozinhos, atraímos os olhares de angústia
interrogativa daquele gente. Os dois homens... não vinham connosco!... Que se
passava?!...
Para
tranquilizar aqueles que logo nos vieram pedir explicações... tivemos de dizer
que, de tarde, os iríamos buscar, mas a desconfiança começava a instalar-se
entre as hostes... E, ainda a procissão não tinha saído do adro (como soe
dizer-se).
Mas,
deixemos o resto para a próxima crónica...