Feitos e Factos
da “descolonização” da
Guiné – 16
.
A situação, na Guiné,
continuava complicada, dado que em Lisboa os acontecimentos de convulsão politica
não favoreciam, e muito menos garantiam, o clima de segurança nas províncias do
Ultramar.
A 11 de Julho, registava eu
na minha correspondência:
“Ainda há pouco, quando estávamos a almoçar, ouvimos pela rádio o
general Spínola a discursar... muito empolgado, mas não percebemos nada do que
ele disse... Falava em pátria, e em sagradas parcelas da Pátria... Não sei em
que sentido nem com que intenção. Não tenho dúvidas nenhumas em que perdemos a
Guiné, e reconheço a esta gente o direito de serem independentes, pois se
perdemos isto, foi por nossa culpa, pelo muito que se poderia ter feito e não
se fez. Agora, que ninguém pense, quanto à Guiné, em patriotismos... São
descabidos e sem sentido. É preciso, antes, ajudar estes povos para que não nos
odeiem, pois se o fizerem talvez tenham razão para isso... Isto é uma história muito comprida, que
não dá para contar, nem numa carta; nem num livro, talvez.”
E continuava:
Oxalá eu tenha oportunidade de contar dentro de dois meses, quando for
de férias. Ainda hoje, ia a atravessar a parada um soldado do PAIGC... Tinha
ido à cantina, nossa, comprar cigarros. Lá demos um abraço à fula... Poderemos
nós algumas vez virar de novo as armas contra estes indivíduos que, apesar de tudo... nos estimam? Não sei o que
sinto quando eles próprios me chamam... “meu capitão”. Para quê, a guerra? Por
que morreram tantos, deles e nossos? Com que resultado? Os deles, talvez tenham
tido sentido... Os nossos, meu Deus, os nossos talvez sejam o preço dos nossos
pecados. Só tenho pena de que tenhamos perdido este povo, que o não tenhamos
sabido conduzir, que o não tenhamos sabido salvar, e que agora, sem conhecerem
outra coisa, fiquem abandonados a sistemas comunistas.
Mas o futuro era ainda
desconhecido, meras hipóteses, ao sabor dos “caprichos” dos “nossos amigos”.
Assim, prosseguia no meu apontamento epistolar:
“Dentro de 20 dias já não estaremos, de certo, aqui. Não sei para onde
vamos. Deus queira que tudo se resolva em bem, pois às vezes nestas saídas há
alguns extremismos. Oxalá que não!...“
Tínhamos, então, recebido
intimação do PAIGC para abandonarmos Pirada até ao dia 20. Entretanto,
exigiram que abandonássemos
Bajocunda (onde estava uma nossa companhia):
“Hoje, a companhia de Bajocunda, a 14 km daqui, recebeu ordem para sair
dali no prazo de 24 horas!... Veio de Bissau (de avião) um delegado do Q. G., e
foram lá falar com “eles” (PAIGC)... Ficou o prazo protelado até ao dia 15 à
tarde”.
Quer dizer: de um momento
para o outro, os prazos encurtavam, e nada podia fazer prever o futuro, já que
o presente era também instável. Em face disso, e comunicado o “ultimato” a
Bissau, no dia 12 de Julho apresentou-se em Pirada o Cmdt-chefe – brigadeiro
Fabião – acompanhado de elementos do quartel-general e algumas individualidades
do PAIGC acreditadas junto daquele Comando. Disseram estes últimos que, a nível
superior, o Partido não tinha dado nenhuma ordem nesse sentido, e reuniram com
os elementos do partido instalados junto de Pirada para esclarecer a situação.
Depois de prolongada conferência entre eles, a situação de iminente abandono
das posições foi assim anulada. Voltámos a respirar... Até quando?!...
Como o PAIGC tinha retomado
as suas posições a sul de Pirada, era frequente ver dentro da área do nosso
quartel elementos da sua “tropa”. Confraternizavam com soldados nossos, e, às
vezes, “iam longe de mais” nestas confraternizações de amizade. A tal ponto que
registei o seguinte apontamento:
“Ontem (12 de Julho), dois soldados deles (guerrilheiros, antigamente
chamados “turras”) estavam à tarde aqui no quartel, junto da cantina das
praças, “com um grão na asa” (embriagados). O oficial de dia foi chamar um dos
chefes deles para os vir buscar, antes que os “copitos” fizessem qualquer
anormalidade. O tal chefe “foi aos arames” (irritou-se), e dizia que eles não
tinham autorização para beber (cerveja). Lá foram para o acampamento, e parece
que lhes deram uma valente sova”.
Outro aspecto algo
insólito, que respigo do meu arquivo epistolar:
“Ontem de manhã, veio à fronteira o “Q. M.” (o já referenciado comandante do PAIGC da zona Norte). Veio entregar as armas
que outro dia tinham roubado de noite aos destacamentos de milícias. Vinha
também despedir-se, pois ia para Moscovo. Esta saída dele daqui da zona foi
arranjada por influência dos nossos Chefes, pois o sujeito era um bocado rude
e. agora que a guerra acabou, estragava um pouco a acção politica. Traziam um
unimog (deles). Esta viatura avariou e daqui por um bocado estava ela a entrar
no nosso quartel, a reboque de um unimog nosso, para ir à oficina reparar. Foi
uma coisa pouca e rápida. De vez em quando, vêm-nos pedir gasolina para
bicicletas a motor que eles utilizam. Ontem chegaram-nos a pedir gasolina para
o tal unimog. ...Como as coisa se passam aqui! Alguma vez se pensou ser isto
possível? No Vietnam, assinaram acordos ... mas a guerra continuou; aqui os
acordos ainda não foram assinados, e contudo a guerra acabou efectivamente. E
não há ódio entre aqueles que se combateram. Mas isto não pode durar sempre,
indefinidamente. Isto não é solução nenhuma. É uma transição. ... A verdade é
que isto só tem um caminho: o reconhecimento da independência, e arranjar a
melhor maneira de irmos embora sem atropelos.”
Este comentário era
motivado pela situação que se vivia em Lisboa, a nível governamental, onde
parecia haver um desconhecimento completo da situação real que se passava nos
territórios ultramarinos, e na Guiné já não havia ponta por onde se pudesse
pegar, para alterar o curso dos acontecimentos.
Em Portugal... No
torrão-sede europeu de uma Nação pluricontinental e multi-racial, tinha
deflagrado uma revolução, iniciada por um “golpe de Estado... Os golpes de
Estado, substituem governos; as revoluções, que geralmente são iniciadas por
aqueles, e se lhes seguem, abalam as estruturas, destroem e reconstroem poderes
e sistemas, quase sempre sem tento e destino, e nunca se sabe onde vão parar...
Era essa a sensação que alguns daqueles que, longe da família, cumpriam missão
de soberania por terras de África, experimentavam, sem poderem modificar o
curso avassalador dos acontecimentos, mas cuidando por não deixar a honra, sua
e de um Povo, espezinhada pelas pedras da calçada da História.