Feitos e Factos
da “descolonização” da Guiné – 20
A Paz... nem sempre é mais fácil de gerir
do que a guerra
Situação desgastante, dizia
eu no meu anterior apontamento. Na verdade, aquela paz podre em que vivíamos
era bem pior do que o fragor mortífero das armas. Neste cenário, há planos,
preparação, determinação, coragem, resultados... Naquela, o imprevisível, o
desconhecido, o perigo escondido, a indefinição final. Mas, continuemos a ler o
que então escrevi, “ipsis verbis”:
“28 de Julho de 1974. É Domingo. Mais um Domingo. Já fiz umas coisas do
meu trabalho normal. ... Entrou agora o comandante aqui no meu gabinete... anda
abatido, como se lhe tivessem dado uma valente coça. É por causa daquele
soldado “comando” que ontem à noite elementos do PAIGC prenderam e levaram para
o acampamento. Hoje de manhã tivemos a confirmação, através de um aerograma que
uns “milícias” mandaram ao comandante, a informar o acontecido e a pedir para o
comandante mandar uma mensagem ao Batalhão de Comandos (pretos), em Bissau. O
problema resume-se ao fim e ao cabo nisto: um militar é preso pelo PAIGC dentro
da nossa área de responsabilidade. Isto é um incidente que pode dar reacções
imprevisíveis por parte dos outros militares africanos. Parece que já têm
acontecido outros actos noutras localidades. Estamos à espera de um major,
comandante das tropas africanas, de Bissau, a ver se vem tomar conhecimento do
problema. O mais engraçado é que os do PAIGC estiveram cá hoje de manhã e não
falaram no assunto. São estes os problemas que nos dão cabo da cabeça, dos
nervos e, sei lá, do coração. Estas situações são piores do que debaixo de
fogo, na guerra, onde se dominam perfeitamente os acontecimentos.”
E, adiante do meu escrito,
anotava mais:
“É que há uma organização, a FLING, que é contra o PAIGC, e está a
recrutar adeptos para combater o PAIGC. E este (soldado) comando parece que
andava por aí a dar com a língua nos dentes p’ro FLING. O PAIGC tem medo da FLING
como o diabo da Cruz. A FLING está proibida na Guiné, pois não interessa mais
guerra e não há dúvida que o PAIGC é o partido que está em condições de tomar
conta da Guiné. Mas - oxalá que não -, eu tenho a impressão de que quando as
tropas portuguesas de cá saírem, isto vai andar por aqui tudo à porrada. Até já
ouvi dizer que ontem ou há dias, houve para o sul uns problemas com a FLING, em
que teve de intervir a própria aviação portuguesa... Se é verdade, confirma o
que eu disse no princípio: “não me admira se um dia tivermos de pegar em armas
novamente para lutar, desta vez, ao lado do PAIGC”.
Era esta a situação
delicadíssima em que vivíamos, nunca imaginada, antes, como possível!... De
resto, em Angola e Moçambique viriam a desenrolar-se problemas semelhantes: em
Angola, com a actividade da UNITA, principalmente, e, em Moçambique, com a
RENAMO.
Mas voltemos ao meu
apontamento epistolar:
“Ontem, ouvimos na BBC que o Gen Spínola tinha reconhecido o direito dos
povos dos territórios ultramarinos à autodeterminação e independência. Oxalá se
chegue a uma solução para todos, porque o Ultramar Português, isso acabou e não
volta atrás. Os acontecimentos são irreversíveis e mais uma vez se prova que
não são os militares que perdem, mas sim a Politica dos homens que não sabem
governar os povos.”
E terminava, com a seguinte
notícia:
“Parece que já não vem para a Guiné mais ninguém, nem individualmente
nem em Unidades. Vão começar a mandar pessoal embora, de modo que até Dezembro
esteja na Metrópole 50% dos efectivos combatentes.”
Estas previsões viriam a
ser, afinal, antecipadas. O processo acelerou-se vertiginosamente, como na
oportunidade hei-de referir. Entretanto, no dia seguinte voltei a registar:
“Sempre veio cá o tal major que tínhamos pedido a Bissau para vir ajudar
a resolver o problema do “comando”, e outros de menos importância. O PAIGC
entrega o “sujeito”, mas temos de o enviar para Bissau, ao cuidado do
Comandante-chefe (Brig Fabião). Portanto, mais um problema
em vias de solução.”
Noutro passo da carta,
deixei este aparte,
“Hoje foi um dia de
trabalho insano, com os meus papéis. Dei graças a Deus, porque o comandante
está satisfeito com o meu serviço. Até agora (há pouco), apresentei-lhe uma
nota, a tratar de um problema, que era para o major levar para Bissau. Ele
disse: “Tu és uma máquina. Só tens uma coisa que deves corrigir. Tens grande
capacidade para resolver os assuntos, mas precisas de fazer um esforço no
sentido de sintetizar”.
Eu ri-me... E, afinal, este
meu saudoso comandante, tentou cortar algumas coisas no trabalho em mãos, mas,
por fim, ficou quase tudo na mesma...
Deus tenha em paz o saudoso e bom amigo Coronel Jorge Mathias, de quem sempre guardei a recordação do seu prestimoso conselho, mas que – me perdoe, lá do Céu – ainda hoje não consigo pô-lo em prática...
Deus tenha em paz o saudoso e bom amigo Coronel Jorge Mathias, de quem sempre guardei a recordação do seu prestimoso conselho, mas que – me perdoe, lá do Céu – ainda hoje não consigo pô-lo em prática...