segunda-feira, 22 de abril de 2013

Para que da memória se faça História




Feitos e Factosda “descolonização” da Guiné – 18


20 de Julho de 1974. Sábado, 4 horas da tarde. O comandante da Unidade (Ten Cor. Mathias) encontra-se em Bissau, para um reunião de Comando. A “barca” está pois entregue a este timoneiro de reserva, com as ondas mais ou menos calmas. A toda a hora esperamos algum vento adverso que sopre e agite as águas deste mar encapelado da Guiné, em consequência da revolução em marcha, a milhares de quilómetros de distância, no rectângulo lusitano da velha Europa. Os acontecimentos por aqui, e agora, surgem sempre inopinados, imprevisíveis e complicados.
Entretanto, sou chamado ao rádio... O comandante de uma companhia do batalhão tivera de ordenar prisão a dois soldados nativos, por problemas de indisciplina... Estava a ser difícil, as tropas naturais da Guiné aceitarem o que se estava a passar, pois o futuro, para estes militares, era uma incógnita. Desarmá-los, em consequência deste volte-face, constituía um grave mas necessário problema. A guerra tinha acabado... mas quem a perdeu ou quem a venceu?!... Que futuro iam ter os naturais do território que, a nosso lado, e de armas na mão, tinham defendido o seu chão, a sua tabanca, a sua família, o seu povo, contra a guerrilha do PAIGC? Eles tinham acreditado nos portugueses, em Spínola, Governador estimado... No futuro!... E agora?!... Quem os traiu?!... Quem os quer trair?!...
Os dois militares presos foram trazidos para o Comando do Batalhão, para, no dia seguinte, serem remetidos para Bissau, em avião entretanto solicitado. Mas o avião não apareceu e recebeu-se ordem para que fossem transportados para Nova Lamego, o que aconteceu. Soube-se depois que um dos presos se havia evadido daquele quartel, indo apresentar-se ao PAIGC, com queixas sobre a sua anterior situação e que a tropa portuguesa o tinha maltratado. Esperteza, para salvar a pele!?...
Por estes dias, recebo um aerograma do capitão Marques, que fora chefe de secretaria do meu batalhão de Moçambique (anterior comissão de serviço). Escreve da cidade do Mindelo, ilha de S. Vicente, Cabo Verde, para onde fora de novo mobilizado. Respigo o apontamento: “Diz que aquilo é uma paisagem lunar, árida, seca. Sobre a conjuntura presente, sente bastante tudo o que se está a passar, desde o 25 de Abril”. Diz ainda: “Politicamente, é a hora da Paz; qual, não sei ainda, não percebi bem ainda. Espero que seja a Paz de Deus embora saiba que existe também a paz do diabo”. E acrescenta que “”pede a Deus que ilumine o “Timoneiro” para que este possa levar a Pátria a bom termo””. Infelizmente, os receios deste meu “camarada” (hoje já no Reino Eterno) haviam de, mais tarde, concretizar-se. Na paz sobrevinda, muita dela veio a ser mesmo a paz do diabo, que levou à queda do referido “Timoneiro” (general Spínola) e à sua retirada “estratégica” para Talavera La Real, em 11 de Março de 1975. Só o “25 de Novembro”  desse ano haveria de restabelecer no País a “Paz de Deus”. Mas voltemos à Guiné:
Domingo dia 21 de Julho. Almoçam connosco dois comandantes do PAIGC, e de tarde o chefe da propaganda do partido chega a Pirada, para mais comícios-festa, manifestações de rua, como propaganda dirigida à população. Lá veio para a rua o elemento feminino, com os seus trajes garridos e capulanas vistosamente floridas. Algazarra, música gentílica, tambores, palavras de ordem. A própria filha de M. S. (o já referido comerciante) é figura de proa e porta-bandeira. Oferece-me um galhardete do PAIGC, que ainda hoje guardo, como recordação desse conturbado tempo.
Segunda-feira, 22 de Julho. Vindo de Bissau, aparece em Pirada o soldado comando (já referido na crónica passada), irmão do milícia detido pelo PAIGC, a tirar satisfações pela “entrega” deste, pelo Batalhão, ao partido, e a dizer que o PAIGC já o tinha matado. Isto foi motivo de grande preocupação. No dia seguinte, 23, contactados os elementos do PAIGC, negaram eles a morte do referido milícia, trouxeram-no, fardado como eles, a presença do dito soldado comando, a quem disse estar bem, de boa saúde, e que não desejava regressar, pois aderia ao partido. O soldado comando ficou radiante por ver o seu familiar vivo, e pôs de parte todo o desejo de vingança. Porém, nunca mais se soube, ao certo, nada sobre o destino do outro detido, o “negociante de carne”... Admitiu-se ter sido, entretanto, eliminado pelos seus captores: o lado negro desta situação de paz quebradiça que ali se vivia.
Terça-feira, 23 de Julho: Bobo Keita, comandante da frente leste do PAIGC, visita o Batalhão. Esteve nas conversações de Londres e em Argel. Demonstrou ser uma individualidade muito equilibrada, afável, culto e muito ciente do seu papel neste processo de paz para a Guiné. Retenho duas afirmações da afável conversa que manteve com o Comando, nessa ocasião:
Na Guiné, após a independência, “Toda a gente tem de trabalhar!”... “Cada homem terá uma só mulher!”... Nunca mais esqueci estas duas frases de Bobo Keita; deste homem que lutou, segundo as ideologias bélicas do seu tempo, pela independência política da sua terra, viveu em Cabo Verde (onde quis ser sepultado), e acabou por morrer em Lisboa - Portugal. A História tem destas ironias, e não é o fragor das guerras que endurece o coração dos homens bons, mas sim o ódio que as pode motivar. E no rosto sorridente de Bobo Keita, apenas vi transparente a alegria da paz alcançada e uma sublime esperança de futuro melhor para o seu povo. Pena que esse futuro não tivesse chegado ainda em sua vida, e até hoje se mantenha adiado e incerto. Em sua honra e memória, fica aqui, dele, o seguinte apontamento, que retirei, com a devida vénia, da Net:
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“31-01-2009 15:44
Cabo Verde
Morreu Bobo Keita-combatente do PAIGC



   
Cidade da Praia - O combatente Bobo Keita, que em Setembro completaria 70 anos, morreu hoje em Lisboa, de doença prolongada. Natural da Guiné-Bissau, Keita foi um dos primeiros guineenses a aderir ao PAIGC, tornando-se num dos  mais respeitados comandantes durante a guerrilha.
 Cabo Verde, país pelo qual também lutou, tornou-se a sua “pátria de coração”, fixando-se em 1980. E, cumprindo o seu desejo, ele vai ser enterrado na Cidade da Praia na próxima terça-feira.
 O corpo de Bobo Keita será trasladado na próxima segunda-feira, para ser enterrado na Várzea.
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 Homem digno e ponderado, Bobo Keita integrou a lista dos primeiros quadros formados pelo PAIGC. Na Guiné combateu em várias frentes.
 Fiel aos princípios do PAIGC, Bobo Keita é um dos comandantes guineenses que se recusou a aderir ao golpe de Nino Vieira. Em Cabo Verde, onde passou a viver, dirigiu o centro de recuperação de jovens em S. Jorginho, do Instituto Cabo-Verdiano de Solidariedade (ICS), granjeando a estima e o afecto dos seus pupilos.
 Foi através do futebol que Bobo Keita veio a Cabo Verde pela primeira vez, em 1958. Jogador do Benfica de Bissau, ele integra a Selecção da Guiné que foi jogar num torneio em S.Vicente, retornando dois anos depois, desta feita, para jogar na Cidade da Praia.
 Futebol foi também a via através da qual BK passou a interessar-se por politica. Depois de participar num torneio no Gana ele e os seus companheiros são recebidos pelo presidente Kwame N’Krumah.
 Com o 25 de Abril de 1974, negociada a transição da soberania, foi BK a comandar as forças do PAIGC que, a 8 de Novembro daquele ano, entraram em Bissau. A independência da Guiné, proclamada um ano antes, a 24 de Setembro, coincidiu de resto com o aniversário desse seu combatente, que, naquele mesmo dia, completava 34 anos.
(Cfr ANGOP – Agência AngolaPress 31-01-2009)

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