Feitos e Factosda “descolonização” da Guiné – 18
20 de Julho de 1974.
Sábado, 4 horas da tarde. O comandante da Unidade (Ten Cor. Mathias)
encontra-se em Bissau, para um reunião de Comando. A “barca” está pois entregue
a este timoneiro de reserva, com as ondas mais ou menos calmas. A toda a hora
esperamos algum vento adverso que sopre e agite as águas deste mar encapelado
da Guiné, em consequência da revolução em marcha, a milhares de quilómetros de
distância, no rectângulo lusitano da velha Europa. Os acontecimentos por aqui,
e agora, surgem sempre inopinados, imprevisíveis e complicados.
Entretanto, sou chamado ao
rádio... O comandante de uma companhia do batalhão tivera de ordenar prisão a
dois soldados nativos, por problemas de indisciplina... Estava a ser difícil,
as tropas naturais da Guiné aceitarem o que se estava a passar, pois o futuro,
para estes militares, era uma incógnita. Desarmá-los, em consequência deste
volte-face, constituía um grave mas necessário problema. A guerra tinha
acabado... mas quem a perdeu ou quem a venceu?!... Que futuro iam ter os
naturais do território que, a nosso lado, e de armas na mão, tinham defendido o
seu chão, a sua tabanca, a sua família, o seu povo, contra a guerrilha do PAIGC?
Eles tinham acreditado nos portugueses, em Spínola, Governador estimado... No
futuro!... E agora?!... Quem os traiu?!... Quem os quer trair?!...
Os dois militares presos
foram trazidos para o Comando do Batalhão, para, no dia seguinte, serem
remetidos para Bissau, em avião entretanto solicitado. Mas o avião não apareceu
e recebeu-se ordem para que fossem transportados para Nova Lamego, o que
aconteceu. Soube-se depois que um dos presos se havia evadido daquele quartel,
indo apresentar-se ao PAIGC, com queixas sobre a sua anterior situação e que a
tropa portuguesa o tinha maltratado. Esperteza, para salvar a pele!?...
Por estes dias, recebo um
aerograma do capitão Marques, que fora chefe de secretaria do meu batalhão de
Moçambique (anterior comissão de serviço). Escreve da cidade do Mindelo, ilha
de S. Vicente, Cabo Verde, para onde fora de novo mobilizado. Respigo o
apontamento: “Diz que aquilo é uma paisagem lunar, árida, seca. Sobre a conjuntura
presente, sente bastante tudo o que se está a passar, desde o 25 de Abril”. Diz ainda: “Politicamente, é a hora da Paz; qual, não sei ainda, não percebi bem
ainda. Espero que seja a Paz de Deus embora saiba que existe também a paz do
diabo”. E acrescenta que “”pede a Deus que ilumine o
“Timoneiro” para que este possa levar a Pátria a bom termo””. Infelizmente, os receios deste meu “camarada” (hoje já no Reino Eterno)
haviam de, mais tarde, concretizar-se. Na paz sobrevinda, muita dela veio a ser
mesmo a paz do diabo, que levou à queda do referido “Timoneiro”
(general Spínola) e à sua retirada “estratégica” para Talavera La Real, em 11 de Março de 1975. Só o “25 de Novembro” desse ano haveria de
restabelecer no País a “Paz de Deus”. Mas voltemos à Guiné:
Domingo dia 21 de Julho.
Almoçam connosco dois comandantes do PAIGC, e de tarde o chefe da propaganda do
partido chega a Pirada, para mais comícios-festa, manifestações de rua, como
propaganda dirigida à população. Lá veio para a rua o elemento feminino, com os
seus trajes garridos e capulanas vistosamente floridas. Algazarra, música
gentílica, tambores, palavras de ordem. A própria filha de M. S. (o já referido
comerciante) é figura de proa e porta-bandeira. Oferece-me um galhardete do
PAIGC, que ainda hoje guardo, como recordação desse conturbado tempo.
Segunda-feira, 22 de Julho.
Vindo de Bissau, aparece em Pirada o soldado comando (já referido na crónica
passada), irmão do milícia detido pelo PAIGC, a tirar satisfações pela
“entrega” deste, pelo Batalhão, ao partido, e a dizer que o PAIGC já o tinha
matado. Isto foi motivo de grande preocupação. No dia seguinte, 23, contactados
os elementos do PAIGC, negaram eles a morte do referido milícia, trouxeram-no,
fardado como eles, a presença do dito soldado comando, a quem disse estar bem,
de boa saúde, e que não desejava regressar, pois aderia ao partido. O soldado
comando ficou radiante por ver o seu familiar vivo, e pôs de parte todo o
desejo de vingança. Porém, nunca mais se soube, ao certo, nada sobre o destino
do outro detido, o “negociante de carne”... Admitiu-se ter sido, entretanto,
eliminado pelos seus captores: o lado negro desta situação de paz quebradiça
que ali se vivia.
Terça-feira, 23 de Julho:
Bobo Keita, comandante da frente leste do PAIGC, visita o Batalhão. Esteve nas
conversações de Londres e em Argel. Demonstrou ser uma individualidade muito
equilibrada, afável, culto e muito ciente do seu papel neste processo de paz
para a Guiné. Retenho duas afirmações da afável conversa que manteve com o
Comando, nessa ocasião:
Na Guiné, após a independência, “Toda a gente tem de
trabalhar!”... “Cada homem terá uma só mulher!”... Nunca mais esqueci estas duas frases de Bobo
Keita; deste homem que lutou, segundo as ideologias bélicas do seu tempo, pela
independência política da sua terra, viveu em Cabo Verde (onde quis ser
sepultado), e acabou por morrer em Lisboa - Portugal. A História tem destas
ironias, e não é o fragor das guerras que endurece o coração dos homens bons,
mas sim o ódio que as pode motivar. E no rosto sorridente de Bobo Keita, apenas
vi transparente a alegria da paz alcançada e uma sublime esperança de futuro
melhor para o seu povo. Pena que esse futuro não tivesse chegado ainda em sua
vida, e até hoje se mantenha adiado e incerto. Em
sua honra e memória, fica aqui, dele, o seguinte apontamento, que retirei,
com a devida vénia, da Net:
... ... ...
“31-01-2009 15:44
Cabo Verde
Morreu Bobo
Keita-combatente do PAIGC
Cidade da Praia - O combatente Bobo Keita,
que em Setembro completaria 70 anos, morreu hoje em Lisboa, de doença
prolongada. Natural da Guiné-Bissau, Keita foi um dos primeiros guineenses a
aderir ao PAIGC, tornando-se num dos mais respeitados comandantes durante
a guerrilha.
Cabo Verde, país pelo qual também lutou, tornou-se a sua “pátria
de coração”, fixando-se em 1980. E, cumprindo o seu desejo, ele vai ser
enterrado na Cidade da Praia na próxima terça-feira.
O corpo de Bobo Keita será trasladado na próxima segunda-feira,
para ser enterrado na Várzea.
... ... ....
Homem digno e ponderado, Bobo Keita integrou a lista dos primeiros
quadros formados pelo PAIGC. Na Guiné combateu em várias frentes.
Fiel aos princípios do PAIGC, Bobo Keita é um dos comandantes
guineenses que se recusou a aderir ao golpe de Nino Vieira. Em Cabo Verde, onde
passou a viver, dirigiu o centro de recuperação de jovens em S. Jorginho, do
Instituto Cabo-Verdiano de Solidariedade (ICS), granjeando a estima e o afecto
dos seus pupilos.
Foi através do futebol que Bobo Keita veio a Cabo Verde pela
primeira vez, em 1958. Jogador do Benfica de Bissau, ele integra a Selecção da
Guiné que foi jogar num torneio em S.Vicente, retornando dois anos depois,
desta feita, para jogar na Cidade da Praia.
Futebol foi também a via através da qual BK passou a interessar-se
por politica. Depois de participar num torneio no Gana ele e os seus
companheiros são recebidos pelo presidente Kwame N’Krumah.
Com o 25 de Abril de 1974, negociada a transição da soberania, foi
BK a comandar as forças do PAIGC que, a 8 de Novembro daquele ano, entraram em
Bissau. A independência da Guiné, proclamada um ano antes, a 24 de Setembro,
coincidiu de resto com o aniversário desse seu combatente, que, naquele mesmo
dia, completava 34 anos.
(Cfr ANGOP – Agência AngolaPress 31-01-2009)”